Via BBC
Por Evanildo da Silveira
Nascido e criado no Cerrado brasileiro, o biólogo Cristiano de Campos Nogueira, do Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências (IB) da USP, sempre se interessou pela região, principalmente pelas cobras que lá vivem. Na época de sua juventude, elas praticamente não eram estudadas.
Então, quando cursava Biologia, na mesma USP, em 1996, começou suas pesquisas sobre a diversidade de serpentes do bioma, o segundo maior do Brasil, com 22% do território nacional.
O resultado desse trabalho é o livro Serpentes do Cerrado – Guia Ilustrado, que registra em imagens todas as cobras identificadas até hoje na chamada savana brasileira.
A obra, produzida com seu colegas Otavio Augusto Violo Marques, do Instituto Butantan; André Eterifica, da Universidade Federal do ABC; e Ivan Ázima, da Unicamp, reúne 185 fotografias de 135 espécies de serpentes, muitas delas difíceis de serem encontradas e várias até mesmo na lista de espécies ameaçadas de extinção.
Algumas foram fotografadas no Instituto Butantan, mas a grande maioria foi mesmo capturadas no campo, em locais como o Parque Nacional das Emas e Chapada dos Veadeiros, em Goiás; no Jalapão, em Tocantins; na região de Brasília; na Chapada dos Guimarães, no Mato Grosso; e no Parque Nacional Grande Sertão Veredas, na divisa entre Minas Gerais e Bahia, entre outras.
“Os maiores obstáculos foram a imensa extensão territorial do Cerrado, que cobre quase 2 milhões de quilômetros quadrados, e a extrema dificuldade me encontrar serpentes na natureza”, conta Nogueira.
“Cobras são o grupo de vertebrados mais difícil de se amostrar em campo. Para um bom inventário desses animais, ainda mais em regiões ricas como o Cerrado, onde uma mesma localidade pode abrigar até cerca de 60 espécies diferentes, são necessários muitos anos para que haja uma boa amostragem.”
Ele conta que em um mês em campo só é possível ver, em média, de cinco a 10 espécimes, número que, com muito trabalho e sorte, pode chegar a 20.
Segundo Nogueira, antes do seu trabalho, praticamente não se sabia nada sobre serpentes do Cerrado. Por isso, suas pesquisas procuraram determinar o número de espécies existentes, quais as mais comuns e as mais raras, em que ambiente vivem, quantas e quais são endêmicas (que só existem na região), qual a sua dieta e quando e como se reproduzem. “São questões básicas de História Natural, que não eram conhecidas”, diz.
“Era como estudar dois temas cercados de total desconhecimento e muito preconceito. Primeiro, as próprias cobras, que por falta de conhecimento são tidas como animais perigosos e muitas vezes perseguidos. O segundo, o Cerrado, completamente desconhecido e desvalorizado dentro e fora do Brasil. Foi uma descoberta atrás da outra.”
O objetivo do trabalho de Nogueira não é exclusivamente científico. “Também queremos ensinar as pessoas que encontram serpentes na natureza a identificá-las e conviver com elas”, explica. “No nosso trabalho percebemos que a população tem um desconhecimento muito grande sobre as cobras, o que gera um preconceito contra elas. Como não sabem diferenciar as venenosas das que não são, acaba matando todas que encontram, até mesmo alguns lagartos que, por não terem patas, são confundidos com serpentes.”
De acordo com Nogueira, a maior parte das cobras do cerrado não são venenosas, mas mesmo assim são perseguidas e mortas, indiscriminadamente, em todas as áreas rurais onde foram feitos os estudos. Nesse sentido, o seu trabalho já trouxe resultados. “Ao mostrar as espécies aos moradores locais, ao explicar sua relevância e que são, em geral inofensivas, muitas pessoas pararam de matá-las em fazendas e localidades de estudo por onde andei ao longo de meu mestrado e doutorado”, conta.
No área científica propriamente dita, o trabalho de Nogueira também trouxe resultados significativos, como a descoberta de espécies já ameaçadas de extinção. É o caso da corre-campo (Philodryas lívida), registrada pelo pesquisador no Parque Nacional das Emas. Como seu nome popular sugere, essa serpente vive em regiões de campo, onde praticamente não há água e a vegetação se limita a gramíneas.
“Essas áreas são as primeiras a desaparecer, para dar espaço à agricultura mecanizada”, diz. “São chapadas, planas, altas e fáceis de operar as máquinas, e, por isso, muito cobiçadas para produção de milho e soja, por exemplo.”
A descoberta de novas espécies de cobras foi outro resultado dos estudos de Nogueira, muitas ainda não descritas, sem nome científico disponível. “Houve também o encontro de espécies do gênero Siagonodon, como S. acutirostris”, diz. “Em geral são espécies fossórias, ou seja, que vivem a maior parte do tempo sob o solo, em galerias subterrâneas, onde se alimentam e evitam os efeitos de variação de umidade e de temperatura e da ação do fogo. É uma adaptação importante, e muitas novas espécies nestes grupos vêm sendo descobertas e depois descritas. A fauna fossorial é bastante rica no cerrado.”
Segundo Nogueira, essas descobertas e os conhecimentos agregados ao longo deste trabalho serviram, por exemplo, para auxiliar a revisão da lista brasileira de espécies ameaçadas de extinção. Além disso, integraram também um estudo mundial recente mapeando, pela primeira vez, todas as espécies de répteis do planeta. “Nesse trabalho, o cerrado surgiu como uma zona de alta riqueza e relevância”, diz o pesquisador. “Sem os estudos de base, como o nosso, teria sido um grande vazio nos mapas, uma ‘terra incógnita’, como era até bem recentemente.”
Os bons resultados e o livro não encerram o trabalho de Nogueira, no entanto. “Ele ainda está em andamento”, diz. “Hoje passamos de uma fase de documentação básica da diversidade para estudar a conservação das serpentes, e para entender o papel delas e dos répteis em geral do cerrado no contexto de sua distribuição no planeta. No início era fazer o básico: quais são, onde estão. Hoje, é entender no contexto de conservação da diversidade global de répteis, e também divulgar as descobertas para fora do meio científico, para o público geral, que se mostra muito interessado, sempre, em cobras.”
Seus estudo o levam a fazer um alerta: caso não sejam tomadas medidas mais efetivas e enérgicas para conservar o que restou do cerrado, hoje reduzido a menos de 30% de sua cobertura original nativa (tomada cada vez mais por monoculturas de grãos, como soja, milho e sorgo), em breve será perdida grande parte das espécies de flora e fauna endêmicas da região, incluindo boa parte de suas cobras.
“Isso será uma perda irreparável, e teremos destruído uma das regiões mais ricas e intrigantes do planeta”, diz. “Como pesquisador desse bioma e de sua riquíssima diversidade biológica, me entristece muito ver que a savana mais biodiversa da Terra continua a ser desmatada em ritmo muito rápido, desaparecendo numa taxa de perda muito superior à verificada, por exemplo, na Amazônia.”