Via MidiaNews
Cíntia Borges
Cerca de 80% de toda energia consumida no Brasil é produzida por meio de hidrelétricas. Isso porque o potencial hídrico do País é o maior do mundo. Uma porcentagem dessa produção vem das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs), que vendem sua produção ao sistema. PCHs são definidas como usinas com produção máxima de 30.000 kW (Quilowatt) e reservatório inferior a 13 quilômetros quadrados.
Dentre as vantagens de uma PCH, de acordo com seus defensores, os custos com processo e implantação são pequenos e os impactos ambiental e social são baixos, quase nulos. Entretanto, para o economista e ambientalista João Andrade, coordenador do Núcleo de Redes da ong Instituto Centro de Vida (ICV), esse é um dado falso.
Conforme o ativista, os danos acumulados podem impactar tanto quanto uma grande hidrelétrica.
“Na PCH não é criado um represamento […]. A questão principal, porém, é o impacto cumulativo. Você tem uma, outra e mais outra. Na Bacia do Juruena, temos construções em sequência. Este acúmulo impacta não só no volume, mas principalmente a ictiofauna [conjunto de peixes de uma região], fora os impactos sociais”, disse.
Como caso concreto de impacto social, o ambientalista cita os índios enawenê-nawê, que vivem na região da bacia do Rio Juruena. Eles comem exclusivamente peixe e um dos rituais mais importantes do povo é feito por meio da pesca. Com a construção de diversas PCHs na região, os enawenê-nawê não conseguem mais pescar o volume de peixe que tradicionalmente capturavam.
Nesta entrevista ao MidiaNews, Andrade ainda cita que a Amazônia passou a ser a bola da vez do setor energético brasileiro, já que se trata de uma região que ainda tem muito a ser explorado.
Confira a entrevista na íntegra:
MidiaNews – Como avalia o processo de implantação de empreendimentos hidrelétricos na Amazônia?
João Andrade – É um movimento superacelerado. A Amazônia é a bola da vez. A energia no Brasil é de base hidrelétrica e o que resta a explorar neste sentido está na Bacia Amazônica – que tem muito potencial. Estamos falando em dobrar a produção energética que existe hoje. Costuma-se dizer que energia hidroelétrica é energia limpa, mas não é bem assim. Há vários estudos mostrando que se trata de um discurso falho. Do ponto de vista social, por exemplo, ela não é limpa. Esse planejamento não está nem aí para terras indígenas ou áreas protegidas. É um planejamento do setor elétrico.
MidiaNews – E Mato Grosso, como se encaixa neste contexto?
João Andrade – Só na Bacia do Juruena, estamos falando de 101 PCHs [Pequenas Centrais Hidrelétricas] planejadas, e algumas já em estágio de construção. É uma bacia preciosa, que tem um volume de água bom e é encachoeirada. Não é à toa que se tem uma série de etnias indígenas nessa região. No Teles Pires, quatro de seis usinas hidrelétricas planejadas estão em construção e até com licença de operação – que é o estágio final para possam operar.
Midianews – No caso das PCHs, existe um discurso de que se trata de um empreendimento com baixo impacto. Isso é a realidade?
João Andrade – Na PCH não é criado um represamento. O rio se mantém, é feito um canal e lá na frente a água sai. Para os leigos, essas usinas só diminuem o nível da água no outro ponto. Mas em algumas circunstâncias, a redução chega a 70% da vazão normal. A questão principal, porém, é o impacto cumulativo. Você tem uma, outra e mais outra… Na Bacia do Juruena, temos construções em sequência. Este acúmulo impacta não só no volume, mas principalmente a ictiofauna [conjunto de peixes de uma região], fora os impactos sociais.
Midianews – O senhor poderia citar alguns desses impactos sociais?
João Andrade – Quando falamos em PHCs planejadas próximas de terras indígenas, há uma desestruturação. Às vezes o dinheiro da compensação não chega, às vezes ele chega e muda a estrutura social – do pajé, cacique – e faz surgir uma associação, que passa a ter um poder que desestrutura toda aquela sociedade.
Midianews – E o processo de licenciamento?
João Andrade – A Sema fala que tem que ter um estudo de impacto ambiental, com medidas compensatórias e mitigatórias, que são os Planos Básicos Ambientais [PBA]. Só que, às vezes, o próprio EIA/Rima [Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental] tem falha na construção. Por exemplo, há estudos de impacto ambiental usando uma bibliografia que não é da região. Às vezes, aparece peixe do Canadá, umas coisas absurdas.
MidiaNews – Mas como conciliar o aproveitamento deste potencial com um menor impacto ambiental?
João Andrade – É uma pergunta para a qual não tenho resposta, apenas suposições. Nós temos um superpotencial hídrico, mas também temos potencial eólico e solar. Essas são energias intermitentes, pois nem sempre tem Sol, nem sempre tem vento. Existem tecnologias que poderiam melhorar a questão da perda de energia elétrica, por exemplo. É uma perda alta, significativa. Outra coisa é que não podemos ignorar que muitas dessas grandes obras também existem para alimentar partidos.
MidiaNews – Essas grandes usinas não são necessárias para o desenvolvimento do País?
João Andrade – Da forma como elas estão planejadas, eu aposto que não. Um exemplo é a UHE de Castanheiras, que está em processo de construção. Contratamos um estudo econômico que indica que não há viabilidade econômica naquela obra. Então, o que explica ter uma obra ali? Em Belo Monte, por exemplo, você também vai encontrar artigos que dizem que não há viabilidade econômica, porque a geração oscila muito. A decisão da matriz não é técnica, é política. É evidente. Belo Monte não precisava ter saído. Ela não é economicamente viável. Ela aconteceu porque o PT bancou e disse: teria que sair e ponto final.
MidiaNews – E na questão das PCHs? O que motiva tantos projetos?
João Andrade – O mesmo processo. PCHs são hidronegócio. Um capitalista, como o Blairo Maggi, tem alguns milhões sobrando e investe. As taxas de retorno são altíssimas. A compra dessa energia é garantida – o Governo Federal compra. O empresário participa de um leilão e diz: eu vou ofertar determinada porcentagem da minha produção e o Governo compra pelo menor preço.
MidiaNews – Em relação a essas quatro grandes obras no Teles Pires, elas estão em andamento e algumas em operação. Como se deu esse processo?
João Andrade – Nós temos um documento que chama “Dossiê Teles Pires”, em que listamos uma série de irregularidades, desde o planejamento. Existe um acordo internacional que diz que, antes da construção dessas usinas, as populações às margens dos rios devem ser consultadas e consentir com a obra. O Brasil assinou esse termo, mas nunca o implementou. Até mesmo o Município normalmente toma conhecimento do projeto por meio de audiência pública.
Midianews – As compensações não acabam favorecendo os Municípios atingidos?
João Andrade – Há um professor na USP [Universidade de São Paulo] que catalogou todas as UHE, e analisou os indicadores econômicos, sociais e ambientais, antes e depois da implementação das usinas. Ele verificou que mesmo com os royalties das usinas, os Municípios não cresceram tanto quanto o entorno. Então, esse papo de “a hidrelétrica chega para promover o desenvolvimento”, não é real. Paranaita, por exemplo, tem 30 mil habitantes e, no pico da obra, chegaram seis mil pessoas. Essas pessoas levaram doenças, como DSTs, os hospitais e escolas não conseguiam atender à demanda.
MidiaNews – Mas e o dinheiro que vai para os Municípios?
João Andrade – A conta da compensação financeira é feita assim: o reservatório ocupa “x” de área do Município e essa usina gera “y” de recurso. Então o Município tem que ganhar um percentual pela área de inundação. Esse recurso entra com uma rubrica livre. O prefeito pode investir o dinheiro em uma coisa que não tem nada a ver com o impacto da usina. E são recursos consideráveis, que em alguns Municípios chegam a R$ 10 milhões. Em alguns casos, a arrecadação dobra. E tem prefeito que fala: ‘Não era tudo isso que a gente imaginava’. Então vejo que falta estratégia: todos os recursos de compensação deveriam vir antes, para preparar o Município.
Midianews – Voltando aos impactos ambientais, já é possível mensurar as consequências das grandes usinas do Teles Pires?
João Andrade – O biólogo Francisco Machado, o “Chico Peixe”, fez análises que comprovam que há impacto na reprodução dos peixes, com reflexos em toda a bacia. Os indígenas hoje não têm mais aquela fartura. Precisam pescar em lugares mais afastados, o que os torna mais dependentes de insumos como o combustível.
MidiaNews – Há algum exemplo concreto de impacto social?
João Andrade – Tem os enawenê-nawê, que vivem na região da Bacia do Rio Juruena. É uma etnia que vivia muito da pesca. Com a construção das PCHs na região, não existe mais a quantidade de peixes que havia antes. E eles não vivem mais da pesca. O ritual, que é reconhecido pela Unesco, não existe mais. Esse é um caso concreto de impacto forte.
MidiaNews – E, no caso das PCHs, qual o cenário?
João Andrade – O que falamos é que é preciso analisar essas obras sobre o ponto de vista global. Porque, em alguns casos, a soma dos impactos de várias PCHs pode ser mais significativa do que a construção de uma grande usina. Hoje o licenciamento de cada uma das PCHs individualmente é mais simples e requer menos recurso. Em algumas delas, não é preciso nem Estudo de Impacto Ambiental, apenas um relatório. Mas, se não se medir os impactos sinérgicos, em conjunto, esses relatórios não vão refletir o dano real.
MidiaNews – Há algum movimento para mudar essa realidade?
João Andrade – Existe um conceito que o MMA [Ministério do Meio Ambiente] já discutiu algumas vezes, que se chama Avaliação Ambiental Estratégica. É olhar para o território inteiro. É mais que um estudo de impacto ambiental, pois vai considerar todo o acúmulo, o potencial da região e as políticas a serem aplicadas. Na Bacia do Alto Paraguai, que tem o Pantanal, que é uma área muito mais frágil e tem muitas PCHs projetadas, há um trabalho para que não haja licenciamentos de hidrelétricas se não houver antes a definição de uma política para a região.
MidiaNews – Falando agora sobre outro foco do ICV, que é a questão do desmatamento: por que o modelo de compensação por créditos de carbono nunca engrenou?
João Andrade – É uma ideia interessante, mas que na prática tem dificuldades de ser implementada. O mecanismo foi muito discutido, para que fizesse parte dos acordos climáticos globais. De lá para cá, existem tentativas de começar ao menos com alguns pilotos. Em Mato Grosso já existem mercados paralelos sobre negociação de carbono. Funciona? Pode funcionar, mas depende de uma série de encadeamentos. Imagine o Brasil, que metade dele está em um mar de floresta, será que interessa para o Governo Brasileiro dizer que não vamos desmatar nos próximos 30 anos?
MidiaNews – Segundo o Governo, o desmatamento caiu 36% em dois anos. A que fatores atribui esse resultado?
João Andrade – Eu não acho que isso vem acontecendo porque o Estado está entrando forte com instrumentos de fiscalização ou incentivos econômicos para barrar o desmatamento ilegal. É mais uma questão de circunstância.
A gente tem um País que está crescendo no setor da agropecuária, mas as fronteiras estão avançando. Quando voltarmos o crescimento econômico em áreas que se transformaram, e precisarem de uma hidrelétrica e uma estrada, o desmatamento volta a crescer.