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Um gesto de fé no futuro: Por que devemos celebrar a RPPN Água Branca?

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Se fosse possível dizer que uma cachoeira tem madrinha, a da Água Branca certamente seria dona Edir Martins Mira. Ela e o marido, seu Nelson Mira Martins, são os proprietários da recém-criada RPPN Água Branca, estabelecida justamente para garantir a proteção integral da cachoeira.

Durante todo o processo de mobilização para salvar a cachoeira da construção de uma represa hidrelétrica, foram os laços de afeto de dona Edir que sustentaram com firmeza a ideia de preservar o lugar onde viu crescer filhos, sobrinhos e, agora, os netos – palavras dela e do próprio Nelson.

No último dia 2 de agosto, durante a celebração da criação da unidade, o casal relembrou os dias de angústia diante do risco de perder a cachoeira. Rejeitaram todas as propostas da empresa interessada em instalar a represa, mesmo diante de promessas financeiras tentadoras.

“Nós ia entrar numa incoerência muito grande. Nós protegendo a cachoeira, falando dela pra todo mundo e se beneficiar com isso. A vantagem financeira era boa, né? Mas aí preferimo optar pela preservação”, afirmou seu Nelson, de mãos dadas com dona Edir.

A celebração reuniu, na sede da RPPN, familiares, amigos e representantes do Ministério Público Estadual (MPE/MS), ICMBio, Prefeitura de Pedro Gomes — incluindo o prefeito Murilo da Silva — além de parceiros que atuaram na mobilização, como Fernanda Cano, pesquisadora da Ecoa, André Siqueira, diretor de programas e projetos da organização, Paula Isla, bióloga e uma das primeiras articuladoras do processo, e Laércio Machado, consultor da Ecoa especializado em RPPNs.

O evento marcou o ápice de uma trajetória iniciada ainda nos anos 2000, quando a família decidiu enfrentar a ameaça da instalação da represa. A articulação técnica, jurídica e política resultou na suspensão da licença da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) e, posteriormente, na criação da unidade de conservação federal.

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Para Paula Isla, que começou acompanhando o processo como parte da equipe técnica da Ecoa e depois seguiu envolvida por meio da PEW — entidade financiadora do projeto —, o momento representa o desfecho de uma construção coletiva sustentada na confiança mútua:

“Pra mim, foi um dos trabalhos mais gratificantes da minha vida. Sem dúvida, a vontade e o engajamento da família foram o diferencial. Seu Nelson e dona Edir foram maravilhosos, determinados e guerreiros. Confiaram no nosso trabalho e, juntos, conseguimos esse caso de sucesso: proteger a cachoeira para sempre.”

Parcerias

A suspensão do projeto da PCH só foi possível após a identificação de falhas graves no processo de licenciamento ambiental — entre elas, a ausência de menção à própria cachoeira. Não havia qualquer avaliação sobre o impacto cênico ou ecológico da obra, nem estudos sobre a bacia hidrográfica afetada. Dados do documento mencionavam a captação de apenas 30% da vazão, quando na prática esse índice superava os 80%.

O Ministério Público Estadual (MPE/MS) teve papel decisivo. A mobilização institucional começou com o envio de uma carta-denúncia assinada pela Rede Pantanal e pela Ecoa, recebida pelo promotor Luciano Loubet, coordenador do Núcleo Ambiental do MPE/MS. Loubet se envolveu diretamente no caso, contribuindo para desmontar o processo de licenciamento aplicando o princípio da proteção da paisagem. “Foi uma das grandes conquistas da minha carreira. Ter contribuído para que não houvesse a destruição dessa cachoeira foi uma coisa muito gratificante”, afirmou.

Na sequência, o promotor Thiago França assumiu a linha de frente no território. Após visitar a área, constatou as irregularidades e recomendou a suspensão imediata da licença.

Seu Nelson fala com gratidão do esforço de todos e lembra bem do dia em que o promotor Thiago França apareceu por lá: “Fez questão de vir. Almoçou com a gente, aí levamo ele na cachoeira.” Para ele, sem o apoio do Ministério Público, dificilmente a suspensão da represa teria sido possível.

Conservar é resistir

André Siqueira destaca o impacto técnico e simbólico da criação da RPPN. Em um território historicamente pressionado por empreendimentos de alto impacto, proteger um rio ainda livre de barragens é motivo de orgulho:

“Nos orgulha muito ver mais um rio livre de barragens. É cada vez mais raro mantermos corpos d’água íntegros, e sabemos que o que acontece no planalto impacta diretamente a planície, como mostram casos graves de assoreamento, como do Taquari. A conservação aqui é uma forma de prevenir danos irreversíveis em todo o sistema, e por isso essa conquista tem um valor enorme.”

Segundo ele a criação da RPPN Água Branca contribui também para preencher uma lacuna importante: a baixa representatividade de áreas protegidas na região do Pantanal e seu entorno.

Paula Isla reforça que o caso da Água Branca se tornou referência para toda a Bacia do Alto Paraguai. Com mais de 100 novas represas previstas para a região, muitas delas sem considerar seus impactos acumulados, a criação da RPPN representa uma resposta prática e replicável: “Ter mais RPPNs significa proteção vitalícia do bem mais precioso que temos, a natureza.”

🌱Leia também: MPE-MS lança vídeo sobre a RPPN Cachoeira Água Branca, conquista para a Bacia do Alto Paraguai. Assista aqui.

O que fica?

A RPPN Água Branca passa agora a integrar a rede de mais de 2.900 Reservas Particulares do Patrimônio Natural existentes no Brasil. Como lembra Laércio Machado, sua criação é sempre um gesto de generosidade e visão de futuro:

“A RPPN é um ato voluntário. Ela não é imposta, jamais pode ser. Não existe obrigação! Vocês [Seu Nelson e dona Edir] estão escrevendo, literalmente, o nome de vocês na Terra, porque nós nos vamos, mas isso aqui vai ficar pra sempre”.

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Novos começos

Fernanda Cano, que segue acompanhando a implementação da unidade, lembra que, com o reconhecimento oficial, inicia-se uma nova etapa: a construção do Plano de Manejo e do Plano de Uso Público — ferramentas que vão orientar o zoneamento, a conservação e o turismo ecológico no local.

“A RPPN Água Branca é um marco, um ponto final de um processo, mas o início de outra história”, diz.

Uma história que é conquista ambiental, e também um gesto de fé no futuro — de uma família, de uma rede de pessoas e instituições, e de um território que resiste.

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