Por Luiza Rosa.
A Ciência Cidadã é uma metodologia milenar de coleta de dados por não-cientistas que são analisados de forma científica, sistematizada na década de 1960, depois da grande contribuição de Paulo Freire no entendimento de que minorias também precisavam ser ouvidas na coleta de dados de pesquisas científicas.
A Ecoa passou a utilizar essa metodologia a partir de 2013, para mapear o território da comunidade ribeirinha Barra do São Lourenço, que fica no Pantanal, a 223 Km a montante da cidade de Corumbá (MS). A introdução dessa metodologia se deu por Rafael Morais Chiaravalloti, atual diretor científico da Ecoa, que a aplicou por meio de um aplicativo de celular chamado Sapelli, criado por dois professores e pesquisadores da Universidade Colégio de Londres, Jeromy Lewis e Muki Haklay.
A partir de então, a Ecoa vem utilizando o aplicativo Sapelli e a metodologia Ciência Cidadã para atuar na conservação do Cerrado e do Pantanal e mapear dinâmicas de pesca, de coleta de frutos nativos e de assentamentos rurais nos processos de restauração e recuperação de nascentes. Os estudos desenvolvidos já influenciaram tomadores de decisão na elaboração de políticas públicas mais adequadas para a região.
Rafael concedeu uma entrevista à Ecoa para trazer mais detalhes sobre a introdução dessa metodologia e aplicativo na organização e, também, sobre os resultados até agora alcançados com o uso da Ciência Cidadã. Ele é graduado em Biologia, pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, fez mestrado em Biologia da Conservação no Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), fez doutorado na área de Antropologia, na Universidade Colégio de Londres, hoje faz pós-doutorado no Smithsonian Institution, nos Estados Unidos, e é pesquisador da Emperial College, de Londres.
A ciência cidadã vem transformando, ao longo dos anos, o modo como as pessoas coletam dados. O que é a Ciência Cidadã e desde quando você iniciou o uso da metodologia para realizar coletas de dados científicos?
A Ciência Cidadã é uma metodologia de coleta de dados em que não-cientistas coletam dados que são avaliados de maneira científica. Isso existe desde a Idade Média, com os monges. Antes do ano 1000, há referências de japoneses que coletavam dados de cerejeiras e como é que elas estão florindo. Tudo isso é Ciência Cidadã: desde os monges coletando dados sobre espécies, japoneses coletando dados sobre cerejeiras até as pessoas coletando dados sobre aves no mundo, que é o “e-birds”. São pessoas não-treinadas coletando dados.
É possível envolver comunidades rurais isoladas na produção de informações científicas? Esse é o objetivo da Ciência Cidadã.
Isso começou a se fortalecer na década de 1960. Na verdade, a primeira pessoa no mundo que começou a falar que as pessoas, as minorias, os que não tinham acesso à educação também teriam que ter voz na coleta de dados, foi o Paulo Freire. No mundo isso ficou muito importante, “A pedagogia do oprimido” chama-se o livro dele. E aí, pegaram isso e começaram a criar métodos de coleta de dados.
Dentro da metodologia Ciência Cidadã foi criado o aplicativo Sapelli, por dois professores da Universidade Colégio de Londres, Jeromy Lewis e Muki Haklay.
Comecei a trabalhar com essa metodologia em 2013. Eu apresentei um projeto a um professor da Universidade Colégio de Londres, do departamento de Antropologia, que fazia uso dessa metodologia e a ideia era coletar dados científicos de comunidades tradicionais, que era um grupo isolado, muitas pessoas não letradas. Nosso objetivo era entender o território das comunidades, aonde elas vão, como é que elas pescam. Aí que eu comecei a me envolver com o Ciência Cidadã, fiz o meu doutorado durante 2014, 2015 e aí a gente começou a usar para outras coisas.
Em que situações você utilizou essa metodologia?
A gente usou para duas coisas: usamos para os pescadores, no Pantanal, para entender como é que eles utilizam os recursos na região e definir como é que é a estrutura da pesca deles e onde eles vão pescar dentro do território da comunidade. Isso teve um impacto importante, que a gente conseguiu delimitar o território das comunidades, conseguimos utilizar isso num relatório para o Ministério Público Federal e isso levou à criação de uma área, uma reserva para as comunidades. E o segundo, a gente usou para o reflorestamento em assentamentos rurais, para que eles pudessem monitorar o progresso do reflorestamento das áreas.
Como funciona o aplicativo Sapelli?
O aplicativo funciona da seguinte maneira: primeiro você tem uma pergunta, que você quer responder e a ideia é que ele seja o mais adaptável possível, que se adapte a qualquer pergunta que você queira fazer. Então, as comunidades vão pescar, o reflorestamento está caminhando, esse tipo de coisa. Tendo a pergunta, você cria uma árvore de decisão, é o segundo passo, que é você estruturar como é que as pessoas vão coletar os dados. Você vai anotar sobre as comunidades no Pantanal, o primeiro ponto é se aquilo é peixe ou aquilo é isca, se é peixe, é um peixe de escama ou peixe de couro, se é peixe de couro, é pequeno ou grande? Você vai criando essa árvore para que a pessoa possa coletar o dado. E a segunda coisa, depois que você criou a pergunta, a árvore de decisão, vem as figuras. A ideia é que qualquer pessoa possa usar o Sapelli. Então, não precisa saber ler. A ideia é que se consiga representar as decisões por figuras. Então, no Pantanal, por exemplo, eu usei figuras científicas, era a figura científica de um peixe, figura científica de um caranguejo, etc. Aí depois você estrutura aquilo num código html, você tem que escrever aquela árvore de decisão em um código de computador. Isso é o programa, aí você coloca as figuras junto desse código, cria uma pastinha e sobe no aplicativo Sapelli, aí você criou o seu programa de monitoramento. Você pode vincular isso a um site, por exemplo, de mapeamento. Então, todas as relações que foram coletadas por aquela pessoa pelo celular vão ser mandadas para o site.
Como a Ecoa trabalha conservação do Cerrado e Pantanal através do Ciência Cidadã?
A gente tem duas maneiras, no caso, a primeira em relação ao Pantanal, a Ciência Cidadã tem ajudado a gente a entender melhor a sustentabilidade da pesca pelas comunidades tradicionais e, também, a entender os territórios tradicionais das comunidades. Isso nos leva a auxiliar tomadores de decisão em políticas mais adequadas diante das realidades locais, por exemplo, a pesca eles estão pescando muito, então tem que reduzir a pesca, ou estão pescando de maneira sustentável, a gente consegue ver isso com o Ciência Cidadã. E, também, por exemplo, eles têm esse território, que é a área tradicional deles, eles têm direito de ter acesso a essa área. Isso em relação ao Pantanal.
No Cerrado temos utilizado principalmente para entender o progresso do reflorestamento. Um dos grandes problemas de reflorestamento é a dificuldade de monitorar como é que está caminhando o reflorestamento. A gente tem comunidades monitorando e, elas mesmas, aprendendo a como é que funciona esse ciclo de regeneração.
A gente vai começar agora um programa de reflorestamento no Pantanal para utilizar essa mesma metodologia.
Quais são os principais públicos com os quais a Ecoa trabalha a metodologia e como eles vêm lidando com isso?
A gente trabalha com comunidades tradicionais, ribeirinhas, e trabalha com assentados rurais. Isso é uma coisa difícil, porque a gente está trabalhando dados científicos com pessoas que têm um entendimento diferente da realidade. Então, é importante que a gente dê tempo para que as coisas caminhem, para que a gente consiga fazer com que as pessoas entendam. Não é simples, mas a gente tem feito bastante coisa interessante.
Você já utilizou o Sapelli, a Ciência Cidadã em outros países depois que você teve acesso a isso na Inglaterra e adaptou para o Brasil?
A gente fez isso na Bolívia. A gente ajudou o pessoal da Bolívia a implementar um programa de Ciência Cidadã na Laguna Marfil.
Aplicado a quê?
À pesca.
Saiu um artigo na revista Nature, né, sobre o Ciência Cidadã?
Não foi um artigo, foi uma nota, dizendo que o Ciência Cidadã é uma das ferramentas interessantes em termo de conservação no futuro.
Tem algo que você gostaria de falar sobre o Sapelli e Ciência Cidadã que eu não te perguntei?
Acho que o importante é falar que, por exemplo, um dos grandes sucessos que a gente teve foi essa conquista das comunidades tradicionais de poderem utilizar seus territórios tradicionais, acho que isso foi uma das grandes conquistas que a gente teve e a Ciência Cidadã possibilitou isso. É um resultado concreto de uma ferramenta super importante.