Por Leandro Barbosa, O Eco
Jean Claro de Anunciação, de 44 anos, cresceu à beira do Rio Cuiabá, no Pantanal, em Barão de Melgaço – a 110 km da capital mato-grossense. Próximo da sua casa, fica a terceira maior baía do bioma, a Chacororé. Um berçário de peixes que tem sofrido com a intensa ação humana e a mudança do clima, fatores que têm favorecido a seca do lugar. A baía, que já teve 6.271 hectares inundados, chegou a perder mais da metade de sua área nos últimos 2 anos. Vários pontos que antes eram cobertos por água agora estão com uma extensa vegetação que obstrui os canais que levam à baía . Com isso, conta Jean, “os peixes estão sumindo”.
A vegetação que tem obstruído os corixos faz parte do processo ecológico natural do Pantanal. Normalmente, ela é levada no período de inundação do bioma, mas devido à seca a correnteza não foi forte suficiente para isso. “A baía tá secando. O peixe tá acabando. O Pantanal precisa de água. A pouca água que tem não dá pro peixe criar mais. Já teve cheia aqui que a água quase chegou na minha janela. Eu pegava isca na porta de casa. Tinha muita fartura. A esperança é que melhore, né!”, afirma Jean.
Diferentes de outras baías do Pantanal, a Chacororé tem uma formação peculiar. De um lado dela, estão 14 canais estreitos, chamados de corixo, que ligam o Rio Cuiabá à baía. Do outro lado, a água vem de dois córregos: Cupim e Água Branca. Eles nascem no planalto e descem pelas morrarias até a baía. O sistema é único no bioma.
“O sistema de Baías Chacororé e Siá Mariana tem uma conexão delicada e diferenciada com o Rio Cuiabá. O tradicional nessa relação de rios e lagoas, são baías ou lagos parentais geomorfologicamente relacionados com o rio. No caso da Chacororé, essa relação é única. Não tem outra no Pantanal. E eu também não conheço isso em qualquer outro sistema alagado como esse. Um desenho único, que soma a interação do planalto, planície e baía”, afirma a professora e pesquisadora Carolina Joana da Silva, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat).
O que faz a baía secar
Entre os dias 2 a 4 de agosto de 2021, uma equipe multidisciplinar de diferentes órgãos como Ibama, Ministério Público, Universidades Federal e Estadual do Mato Grosso e da Delegacia de Meio Ambiente realizou uma inspeção na região. A visita rendeu uma nota técnica que culminou em uma Ação Civil Pública contra o Estado do Mato Grosso.
O documento aponta diversos fatores que estão afetando a baía: a extrema seca que castigou o Pantanal nos últimos dois anos; o assoreamento da área úmida dos ribeirões Cupim e Água Branca, que abastecem a baía – ambos às margens da Rodovia Estadual MT-040; a obstrução do fluxo de água na Rodovia Estadual MT-040, em razão da elevação do aterro e instalação de manilhas acima do nível de base e da própria insuficiência das estruturas de drenagens para atender ao regime hidrológico característico do bioma pantaneiro; e a construção de aterros, barragens, drenos e diques em diversas propriedades particulares.
A nota técnica ainda descreve outras situações graves, como: obstrução de corixos; alterações na qualidade da água e na vazão do Rio Cuiabá relacionadas à dinâmica de operação do reservatório da Usina Hidrelétrica de Manso; existência de estradas vicinais e de acesso às propriedades construídas sem a adoção da técnica adequada, assim, obstruindo o fluxo de água; aumento do desmatamento em área de preservação permanente (APP) dos cursos hídricos e nas cabeceiras das nascentes; ocupações irregulares, agricultura e pastagem intensiva em área de APP.
Profissionais do Instituto Centro de Vida (ICV) e da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) analisaram a cobertura de água na baía de Chacororé entre os anos de 2016 a 2020 e constataram a perda considerável de água. De acordo com a análise, em 9 de setembro de 2016, a cobertura de água era 6.271 hectares. Já em 22 de novembro de 2020, foram apenas 2.566 hectares, representando uma perda de 59% de área coberta. “Para a análise foram utilizadas imagens do satélite Sentinel, que mostraram pouca variação na baía entre os anos de 2016 a 2018. Em 2019 houve ligeira redução. Já, em 2020, a redução foi significativa”, explica Vinícius Silgueiro, coordenador de inteligência territorial do ICV.
No ano passado, houve uma pequena melhora. De acordo com Silgueiro, uma análise feita em 22 de novembro de 2021 indicou que a área coberta por água da baía de Chacororé era de 3.183 hectares, o que corresponde a 51% de sua cobertura em relação à 2016. Outros 2.131 hectares (34%) encontram-se em processo de alagamento. E outros 957 hectares (15%) ainda se apresentam predominantemente secos.
Para salvar Chacororé
Carolina fez parte da equipe que produziu a nota técnica sobre as causas da seca da Chacororé e da baía vizinha que se conecta a ela, a Siá Mariana. A pesquisadora explica que a causa é um conjunto de fatores: “está relacionado à mudança climática; à mudança da interação da floresta amazônica com o Pantanal [a maior parte das chuvas desta região vem da Amazônia]; e têm as interferências locais. Essa interação global, regional e local fizeram a baía secar desta forma”.
Para a professora, a ação humana também tem colocado em risco a dinâmica das baías. Apontando causas como o desmatamento em área de preservação ambiental do Rio Cuiabá – da onde vem boa parte de água para a Chacororé – e corixos entupidos. Além disso, afirma Carolina, a principal causa que tem influenciado a seca da Chacororé é a hidrelétrica do Manso. “A hidrelétrica cortou os picos de cheia do Cuiabá. Então, a dinâmica de inundação do bioma foi afetada. Acaba que o rio não enche como antes e nem seca como deveria secar. Isso inviabilizou a entrada de água na Chacororé. O manejo dessa hidrelétrica e abertura de canais podem favorecer a cheia da baía. É possível fazer isso”, diz Carolina.
A seca nas baías significa perda da biodiversidade. “Esse avanço dos ambientes mais úmidos para seca já está sendo uma tendência. E ela não é só no volume da água ou na extensão da inundação, mas, também, na substituição de determinados grupos de plantas por outros grupos”, explica a professora. “Depois da cheia deste ano, iremos fazer uma pesquisa para buscar saber com os pescadores quais têm sido as percepções deles sobre essa mudança”, conta Carolina.
A fim de apresentar soluções para uma das principais causas que têm influenciado na seca das baías, foi criada uma frente para discutir as hidrelétricas no rio Cuiabá. “A gente vai em cima de produção de energia mais sustentável. Cuiabá é a capital do investimento em energia solar. Nós temos soluções que estão sendo aceitas, tanto que há um grande investimento neste tipo de energia no estado. E nós temos alternativa energética devido ao calor da região. Não precisamos de mais hidrelétricas”, conclui Carolina.
Em julho de 2021, a Justiça determinou a suspensão imediata da análise e aprovação de processos de licenciamento ambiental e da emissão de outorgas para operação de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH/UHE) ao longo do Rio Cuiabá. Para que os processos retornem, o governo de Mato Grosso terá que apresentar um estudo detalhado sobre a questão à Agência Nacional de Águas (ANA).
A Justiça também determinou que o Estado apresentasse um plano de ação de curto, médio e longo prazo para salvar a Chacororé e a baía vizinha que se conecta a ela, a Siá Mariana. Este plano deve levar em consideração todas as problemáticas apontadas pela nota técnica, anexada à ação pelo MP. Caso o governo não cumpra a ordem judicial, foi fixada uma multa de R$150 mil por dia de descumprimento.
Águas Encantadas
Os trajetos a Chacororé cada vez mais fechados interrompem o dia a dia das cerca de 40 comunidades tradicionais pantaneiras que vivem na região. A seca coloca em xeque não apenas o estilo de vida dessas pessoas, mas também todo imaginário criado e perpetuado sobre o lugar. A baía é envolta por uma história de que de suas águas emergem seres encantados, o que a torna sagrada para muitos ribeirinhos.
O que se conta é que a Chacororé é um grande ser de águas encantadas. Vários mitos são criados a partir de suas águas que não suportam o barulho humano e reagem, com raiva, criando ondas que viram barcos e afundam navios. No fundo dela, há uma cidade onde seus seres vivem, como: a mãe d’água, a dona das águas, que perfuma a baía e abençoa os azóis dos pescadores; a serpente “dono da baía” presente nas ondas que se levantam quando a Chacororé fica ‘brava’; um boiadeiro com seu rebanho de gados; negrinhos d’água que levam pescadores para a cidade de baixo d’água e devolvem dias depois; e tantos outros.
Todos estes seres constam na tese de doutorado Águas Encantadas de Chacororé: Paisagens e Mitos do Pantanal, do professor doutor Mário Cezar Silva Leite. De acordo com Leite, todos esses mitos são manifestações da própria baía. “O grande ser sobrenatural ali é a própria baía de Chacororé. Por exemplo, se você está à beira da baía e vê alguns destes mitos, eles são a manifestação da sobrenatureza da Chacororé. São chamados de ‘gente da baía’. A ideia básica é que o que nós temos aqui na terra, existe embaixo d’água também”, explica o professor.
Para Leite, todo esse imaginário é ameaçado pela seca. “Não é exclusividade da população do Pantanal ter esse tipo de relação e percepção com a água. Neste momento, com tudo o que tem acontecido com as águas brasileiras, isto está profundamente ameaçado”, afirma o professor.
Outro lado
Por meio da Secretaria de Meio Ambiente (Sema), o governo de Mato Grosso disse ao ((o))eco que, junto à Assembleia Legislativa e Ministério Público Estadual, foi definido um conjunto de ações emergenciais para restabelecer o fluxo da água para a Baía de Chacororé, em Barão de Melgaço, no início de 2021. A Sema também afirmou que foi criado um Plano de Ação com medidas a médio e longo prazo para garantir a biodiversidade das baías.
Apesar da inundação ainda estar em 50% do território da baía, o governo afirmou que “em fevereiro deste ano, representantes da Sema, Corpo de Bombeiros e MPE sobrevoaram de helicóptero o Pantanal mato-grossense para monitorar o bioma e verificar os níveis de água das Baías de Chacororé e Siá Mariana, que foi considerado satisfatório”.
Embora a reportagem tenha presenciado canais obstruídos e resíduos de obras em trechos da MT-040, o governo afirmou “ter feito desobstrução de canais e a retirada das estruturas de aterros em obras de pontes, e de matérias orgânicas que impediam as drenagens de curso d’água superficiais, para melhorar a transposição da água do rio, fazendo com que o sistema se torne mais eficiente”.
Os repórteres viajaram ao Pantanal com o apoio da iniciativa Observa-MT