Matéria BBC News Brasil
As inundações que atingiram o Rio Grande do Sul nas últimas semanas já levaram à morte de pelo menos 148 pessoas e deixaram outras 538 mil pessoas desalojadas.
A chuva não vem dando trégua, os boletins meteorológicos e hidrológicos apontam para um possível recrudescimento da situação na região nos próximos dias e as enchentes já são consideradas o pior evento climático da história do Rio Grande do Sul e um dos piores do Brasil.
A dimensão da tragédia, as perdas de vidas humanas e a destruição de comunidades inteiras têm despertado uma discussão sobre os fatores que levaram a essa catástrofe ou que poderiam ter ajudado a diminuir sua intensidade.
Um dos aspectos apontados por especialistas ouvidos pela BBC News Brasil é o possível impacto da redução da vegetação nativa no Estado.
Dados produzidos pelo MapBiomas e obtidos pela BBC News Brasil mostram que, entre 1985 e 2022, o Rio Grande do Sul perdeu aproximadamente 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa.
Isso é o equivalente a 22% de toda cobertura vegetal original presente no Estado em 1985 formada por florestas, campos, áreas pantanosas e outras formas de vegetação nativa.
Os dados mostram ainda que ao mesmo tempo em que isso acontecia, houve um aumento vertiginoso de lavouras de soja, silvicultura e da área urbanizada do Estado.
Cientistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que a perda de cobertura vegetal original pode ter contribuído para as dimensões das inundações que afetaram o Estado porque a vegetação nativa:
- diminui a velocidade com a qual a enxurrada chega ao leito dos rios;
- aumenta a quantidade de água infiltrada no solo, o que diminui a quantidade de água disponível para inundações;
- protege o solo diminuindo a quantidade de sedimentos que assoreiam os rios da região.
Procuradas, as assessorias de imprensa da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura do Rio Grande do Sul e do governo do Estado não responderam às questões enviadas pela reportagem.
Cidades e florestas ‘artificiais’
A relação entre a perda de vegetação nativa e os impactos das inundações no Rio Grande do Sul começou a ser feita por pesquisadores que estudam a ocupação do solo no Estado gaúcho há décadas.
Um deles é o pesquisador do MapBiomas Eduardo Vélez, um dos responsáveis pelo levantamento feito pela organização.
O MapBiomas é uma iniciativa que reúne organizações não-governamentais e empresas de tecnologia, e que utiliza imagens de satélite para estudar a mudança nos padrões de uso do solo em todo o Brasil.
Vélez explica que o levantamento tomou como ponto de partida o ano de 1985 porque é o primeiro ano da série histórica do conjunto de satélites Landsat.
“Para estudar esse fenômeno, a gente precisa de dados comparáveis de longo prazo”, explica Vélez.
O pesquisador explica que o levantamento comparou as coberturas vegetais de diferentes categorias ao longo dos anos para estimar a quantidade de vegetação nativa perdida e o que ocupou o seu lugar no Rio Grande do Sul.
Vélez diz que a perda de vegetação nativa no Rio Grande do Sul atingiu o Estado como um todo, mas quase um terço dela se deu na bacia hidrográfica do Guaíba, uma das mais afetadas.
Lá, a perda de vegetação nativa foi de 1,3 milhão de hectares.
“O Rio Grande do Sul tem um bioma diferente da Amazônia, por exemplo. Temos algumas florestas nativas, mas a maior perda não se deu pelo desmatamento de florestas. Essa perda se deu, na maior parte, nas formações campestres”, diz Vélez.
As formações campestres do Rio Grande do Sul são um tipo de vegetação adaptada ao clima sub-tropical do Estado composta, em sua maioria, por gramíneas e arbustos de pequeno porte.
Em geral, ela vem sendo utilizada historicamente nas atividades de pecuária extensiva, preservando, segundo especialistas, suas características originais biológicas e suas funções ambientais em relação à chuva e ao solo.
De acordo com o MapBiomas, o Estado perdeu 3,3 milhões de hectares em formações campestres entre 1985 e 2022, quase a totalidade de tudo o que o Estado perdeu em vegetação nativa no período.
Trata-se de uma perda de 32% em relação ao que havia desse tipo de vegetação em 1985.
O MapBiomas também mostra qual o destino dado às áreas onde a vegetação nativa foi suprimida.
Os dados apontam que houve um crescimento de 366% no total da área destinada à lavoura de soja no período.
Em 1985, o Estado tinha uma área de 1,3 milhão de hectares ocupada pela soja. Em 2022, essa área saltou para 6,3 milhões. O crescimento foi de 4,99 milhões de hectares.
Essa área é maior do que o total da perda de vegetação nativa porque, segundo Vélez, além de crescer sobre as áreas naturais do Estado, a soja também avançou sobre outras atividades como pastagens.
De acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), vinculada ao Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), o Rio Grande do Sul era, em junho de 2023, o terceiro maior produtor de soja do Brasil, atrás de Paraná e Mato Grosso.
Outra atividade cuja área cresceu mudando a configuração do solo do Rio Grande do Sul é a silvicultura.
A silvicultura consiste na plantação de florestas novas ou no manejo de florestas nativas para a sua exploração comercial.
No Rio Grande do Sul, a principal forma de silvicultura é a plantação de florestas novas de espécies como eucalipto, pinus e outras espécies que são usadas para a produção de madeira, lenha e celulose.
De acordo com o MapBiomas, a área destinada à silvicultura no Estado saltou de 79 mil hectares para 1,19 milhão de hectares, um crescimento de 1.399%.
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Rio Grande do Sul é o quinto maior Estado do Brasil em silvicultura, atrás de Paraná, Mato Grosso do Sul, São Paulo e Minas Gerais.
O levantamento também mostra que houve um crescimento de 145% nas áreas urbanizadas do Estado no período estudado.
Em 1985, as áreas urbanizadas saíram de 97 mil hectares para 238.607 em 2022.
De acordo com o IBGE, a população do Estado era de 8,4 milhões em 1985. Em 2022, a população estimada era de 10,8 milhões.
Freio, reservatório e contenção
O professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e coordenador de uma rede de pesquisadores sobre os campos do Sul do país, Valério Pillar, disse à BBC News Brasil que a redução na área de vegetação nativa e sua substituição podem ter contribuído para o agravamento dos impactos das inundações.
“A mudança no uso da terra provavelmente aumentou o impacto negativo dessas chuvas”, afirma o professor à BBC News Brasil.
Ele explica que há três motivos pelos quais isso aconteceria.
O primeiro é que a vegetação nativa funcionaria como uma espécie de “freio” para a água da chuva.
“A vegetação nativa nas margens dos córregos, riachos e rios cria mais obstáculos para a água da chuva em seu caminho até os leitos dos rios. Esses obstáculos diminuem a velocidade do escorrimento da água e reduzem a força com que ela chega às áreas mais baixas do território, como aquelas afetadas pelas enchentes”, explicou o professor.
Pillar diz ainda que, mesmo após um rio transbordar, a vegetação nativa nas margens de um curso d’água funciona como um freio para a drenagem da água, diminuindo a velocidade com que ela atinge as áreas rio abaixo.
O segundo motivo é que a vegetação nativa funcionaria como uma espécie de “dreno” para parte da água da enxurrada.
“A vegetação nativa e suas raízes mantêm o solo mais permeável e assim ajudam a infiltrar a água da chuva no solo, reduzindo a quantidade que fluiria diretamente para os leitos dos rios”, disse o professor.
O terceiro motivo é o fato de que a vegetação nativa teria a capacidade de mitigar a erosão do solo e o assoreamento dos rios da região.
“A supressão da vegetação nativa, sobretudo dos campos nativos nessa região, expõem o solo à erosão causadas pelas chuvas. Quando a chuva cai com intensidade, ela carrega uma enorme quantidade de terra pro leito dos rios. Isso causa o assoreamento, que diminui a profundidade do rio. Assim, fica mais fácil para haver uma inundação porque o rio comporta menos água”, disse o professor.
“Se você vir as imagens de satélite, vai notar que a cor barrenta das inundações. Tudo isso é sedimento carregado pela água de áreas rio acima”, afirmou.
A agrônoma e doutora em Ciências do Solo pela UFRGS Bruna Winck disse à BBC News Brasil que apesar de a soja cobrir o solo e consumir água durante o seu crescimento, ela não teria as mesmas condições de reter água e o solo durante as chuvas que atingiram o Rio Grande do Sul.
“O sistema de raízes da vegetação nativa é mais diverso quanto à sua capacidade de captação de água no solo, podendo fazer isso em diferentes profundidades”, explica ela.
“Na cultura da soja, há etapas em que o solo está menos protegido, como o preparo do solo e na fase inicial de crescimento das plantas. Mesmo que haja palha sobre o solo, ela apenas favorece a infiltração de água, mas não a sua absorção”, explicou.
‘Boom’ nas commodities e mudanças legislativas
Para Bruna Winck, um dos motivos por trás da redução na área de vegetação nativa e a sua transformação em lavouras de soja se deu, possivelmente, por conta do “boom” no preço das commodities, no início dos anos 2000.
“Como o Rio Grande do Sul tem solos de boa qualidade, férteis, bem drenados na parte norte, isso fez com que essa expansão se acelerasse nessa região. O preço teve um papel fundamental nessa aceleração”, disse a pesquisadora.
Para Valério Pillar, essa diminuição da área de vegetação nativa aconteceu por conta de um histórico de permissividade de sucessivos governos estaduais.
“Em 2015, houve um decreto estadual que permitiu que pecuaristas cujas propriedades fossem em áreas de vegetação campestre pudessem declarar essas fazendas como áreas de uso consolidado. Isso reduziu uma série de exigências para o desmate dessa vegetação. Em 2019, essa mudança foi consolidada no Código Florestal do Estado”, afirmou o professor.
Para o presidente da Associação dos Servidores da Sema-RS, Pablo Pereira, a perda de vegetação nativa no Rio Grande do Sul foi agravada por decisões políticas.
“Esta perda das formações naturais foi acentuada, respaldada e incentivada por mudanças na legislação ambiental e também por procedimentos e decisões das gestões estaduais e municipais que dificultam a devida proteção da vegetação nativa e de áreas de grande interesse ecológico”, disse uma nota assinada por ele enviada à BBC News Brasil.
Na semana passada, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma reportagem mostrando que o governo de Eduardo Leite (PSDB) alterou 480 normas ambientais desde que assumiu o comando do Estado pela primeira vez, em 2019.
Em resposta ao jornal, o governo do Estado enviou uma nota dizendo que as alterações teriam apenas atualiazado a legislação ambiental local.
“A atualização alinhou a lei estadual à legislação federal. A modernização acompanhou as transformações da sociedade, tornando a legislação aplicável, priorizando a proteção ambiental, a segurança jurídica e o desenvolvimento responsável”, diz um trecho da nota.
A BBC News Brasil enviou questionamentos sobre o assunto à Sema-RS, mas nenhuma resposta foi enviada até a publicação desta reportagem.
A reportagem também enviou questões à Associação de Produtores de Soja do Rio Grande do Sul (Aprosoja-RS), mas também não recebeu nenhuma resposta.
Futuro incerto
Bruna Winck, Eduardo Vélez e Valério Pillar concordam ao afirmar que a redução na vegetação nativa não seria a causa das inundações no Rio Grande do Sul.
Segundo eles, as causas são as mudanças climáticas causadas pela ação humana sobre o meio ambiente com a liberação de CO₂ na atmosfera a partir da queima de combustíveis fósseis e outras atividades como o desmatamento.
“A previsão para o Rio Grande do Sul é de aumentos de extremos climáticos, incluindo o de chuvas. Mesmo um solo bem drenado, com vegetação nativa, pode ser completamente saturado, o que pode levar a aumentos de água nos leitos de rios”, diz a pesquisadora.
Ela, no entanto, defende que a vegetação nativa do Estado seja recomposta.
“Essas mudanças do clima devem-se sobretudo aos aumentos de CO₂ na atmosfera. E para reduzir isso, a única maneira é aumentar o seqüestro do CO₂ pela vegetação e pelo solo. E diversos estudos já mostram que as vegetações nativas são mais eficazes na captura do CO₂ e os solos sob essa vegetação geralmente estocam mais carbono”, disse Winck.
Na nota enviada pela associação de servidores da Sema, a necessidade de recomposição da vegetação nativa do Estado também foi mencionada.
“O Governo do Estado até hoje não institucionalizou as metas de recuperação de vegetação nativa previstas no Plano Nacional de recuperação de Vegetação Nativa (Planaveg), que prevê, minimamente a recuperação de 300 mil hectares de áreas degradadas no Bioma Pampa, sem contar a porção de Mata Atlântica subtropical do Rio Grande do Sul”, disse um trecho da nota.
Questionados pela reportagem sobre os planos de recomposição da mata nativa, a Sema-RS e o governo gaúcho não enviaram resposta até a publicação desta reportagem.