Texto originalmente publicado em 24 de janeiro de 2023.
De um lado, a necessidade de criar áreas que permitam a proteção da biodiversidade. Do outro, seres humanos que vivem isolados e que dependem da natureza ao seu redor para sobreviver.
A criação de Unidades de Conservação (UCs) é uma das ferramentas utilizadas para conservação de ecossistemas considerados prioritários. Entretanto, é recorrente que, na tentativa de evitar qualquer tipo de impacto ambiental, pessoas que já viviam ali antes tenham seus direitos cerceados e até sejam expulsas do território.
Em diversos casos conflituosos, o alvo são populações tradicionais como extrativistas, ribeirinhos, pescadores e indígenas, cujo modo de vida é baseado em relações ecológicas, econômicas e culturais com o ambiente natural ao seu redor.
Uma situação emblemática vivenciada no Pantanal é tema da dissertação de mestrado de André Luiz Siqueira, diretor presidente da Ecoa. Foi defendida em 2015, no Programa de Mestrado em Estudos Fronteiriços, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, com orientação do professor doutor Aguinaldo Silva.
Leia a dissertação completa aqui.
O trabalho tem como enfoque os conflitos socioambientais decorrentes da implementação de áreas naturais protegidas no entorno da comunidade da Barra do São Lourenço, localizada próxima à Serra do Amolar, fronteira oeste do Pantanal.
A dissertação reforça que essas pessoas “vivem em um ambiente moldado pelos movimentos das águas, que trazem para aqueles que lá vivem um modo de pensar, sentir, olhar e agir único, que devem ser considerados quando políticas públicas de manejo e conservação são propostas”.
A região da Serra do Amolar destaca-se pela grande diversidade de fauna e flora tais como vegetação do Chaco, da Amazônia e do Cerrado. Por ser considerada de extrema importância para conservação, durante a década de 90 foram implementados na região o Parque Nacional do Pantanal e Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN).
No entanto, em razão das restrições de uso de recursos pelas UCs, as pessoas que viviam dispersas na região foram expulsas e constituíram a comunidade da Barra de São Lourenço, na margem esquerda do rio Paraguai. Atualmente, 23 famílias vivem no local.
Com a criação da reserva particular, tive que deixar minha casa de um dia pro outro. Deixamos nossas coisas “pra” trás, apenas pegamos a mala e colocamos no barco. Grávida e com muito medo, acabei perdendo a criança. Era “pra” se chamar Ana Rosa.
(Declaração de uma moradora da Barra de São Lourenço)
Conforme apresentado na dissertação de André, essas pessoas passaram a ser impedidas de fazer o que sempre fizeram: acessar o território para pescar, coletar iscas, lenha e palha para a cobertura das moradias, assim como migrar para territórios seguros durante as cheias. Além disso, a comunidade relatava um clima de tensão, com ameaças diretas, intimidação e monitoramento constante por parte de pessoas ligadas às RPPNs.
É importante frisar que a comunidade tradicional é formada em partes por descendentes diretos de indígenas Guató, conhecidos como o “povo canoeiro”, que tinham como característica a migração para se adaptar aos períodos de cheia e seca do Pantanal.
A mudança para áreas mais altas durante as cheias foram algumas das marcas Guató que permaneceram no costume local. No entanto, com o estabelecimento das áreas de conservação ambiental, os moradores foram impedidos de migrar e precisaram sobreviver durante meses em diques construídos dentro das casas, conhecidos como “girau”, mas perdendo seus pertences e a criação de animais domésticos.
Em seu trabalho, André reforça que “há urgente necessidade de compreender possíveis formas de convívio entre a proteção ambiental e os povos e comunidades tradicionais no Pantanal”.
Entre os recursos apresentados da dissertação e utilizados para garantir a permanência dessas populações ribeirinhas em seu território, estão a distribuição do Termo de Autorização do Uso Sustentável, o TAUS, e o desenvolvimento do Turismo de Bases Comunitárias.
Leia também: TAUS no Pantanal – um instrumento protetor de comunidades vulneráveis
Nos últimos anos, a Ecoa atuou em conjunto com outras instituições como o Ministério Público Federal de Corumbá e a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) para garantia de direitos da comunidade da Barra de São Lourenço. Entre as melhorias alcançadas, estão a construção de uma escola para as crianças da região, chegada da energia elétrica, a constituição de uma associação local, assim como acesso à direitos básicos como aposentadoria e auxílio defeso.
O trabalho conclui que a implementação das Unidades de Conservação na região da Serra do Amolar, em especial das Reservas Particulares, geraram inúmeros impactos ao modo de vida tradicional em nome da “proteção da biodiversidade”, aumentando assim, o mapa do conflito ambiental no país. Além disso, enfatiza que é necessário cooperação e suporte da população local para a gestão bem-sucedida dessas áreas.
“Uma forma de assegurar a participação efetiva das populações locais na gestão da unidade de conservação é incluir suas potencialidades sociais, cognitivas, culturais e cosmológicas numa proposta de desenvolvimento socioeconômico sustentável com criação de fontes alternativas de renda. […] A atenção aos povos e comunidades tradicionais vai além da obrigatoriedade, é uma mudança no olhar sobre o ser humano, como cidadania em plena democracia”.
Leia a dissertação completa aqui.
Uma decisão histórica
Desde 2019, os ribeirinhos da comunidade tradicional estão autorizados por lei a praticarem a pesca e coleta de iscas em áreas da Zona de Amortecimento do Parque Nacional do Pantanal.
A decisão foi proferida com base em uma série de estudos, inclusive parecer técnico elaborado pela Embrapa Pantanal, que garantem que as atividades pesqueiras e extrativistas da comunidade não comprometem os recursos naturais do local. Pelo contrário, o conhecimento por elas aplicado ajuda a garantir a preservação desses recursos que, por sua vez, garantem a sobrevivência dos ribeirinhos. Saiba mais aqui.