Via ClimaInfo
-Relação direta do desmate com diminuição na vazão dos rios se dá tanto pela diminuição das chuvas quanto pela troca da vegetação nativa pela monocultura.
“Acabaram as árvores. Gente, quem puxa água são as árvores! E cadê as árvores, pelo amor de Deus? Os bichinhos eu não sei o que é que viraram. Eles derrubaram tudo, aí não sei para onde vão os bichos.”
O desabafo é do agricultor Felicio Simplicio da Guarda, de 72 anos. Ele viu o lugar em que vive, na zona rural do município baiano de São Desidério, a 872 km de Salvador, mudar completamente nos últimos 40 anos. A transformação veio com as grandes fazendas, que começaram a se espalhar e substituir o Cerrado, que até então cobria tudo, mostra a Folha em mais uma matéria da série “Cerrado loteado”, que mostra o avanço crescente do desmate no bioma.
Morando desde a juventude às margens do rio Guará, Guarda se acostumou a organizar a vida ao redor do seu regime de secas e cheias, que já não é o mesmo. No meio de março, quando a reportagem o visitou, em plena estação chuvosa, o rio estava correndo dentro de sua calha natural, e não transbordando pelo vale, como era esperado.
São Desidério, na região do MATOPIBA – área dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – é o município que mais desmatou o Cerrado em 2023. Segundo dados do sistema PRODES, do INPE, foram 417 km² de vegetação perdidos nos limites territoriais da cidade.
Por toda parte há áreas muito extensas demarcadas por cercas, onde não se enxerga o final das plantações, e as fazendas são guardadas por seguranças armados. Há também diversos trechos recém-desmatados, em que as raízes das árvores estão empilhadas em longas fileiras, conhecidas como leiras, ao longo do terreno. Elas serão queimadas para abrir espaço para a produção.
A relação direta do desmatamento do Cerrado com a diminuição na vazão dos rios se dá tanto pela diminuição das chuvas quanto pela troca da vegetação nativa pela monocultura – da soja. As plantas nativas têm raízes que chegam a ser de 2 a 3 vezes maiores do que a parte visível fora da terra. Já cultivos como a soja têm raízes curtas. Isso torna o solo compactado, impedindo a absorção da água e prejudicando a recarga dos aquíferos, já que as plantações estão localizadas, em grande parte, nos chapadões, onde chove mais.
Com o acelerado processo de destruição e a falta de manejo adequado das áreas remanescentes do bioma, extensas porções do território brasileiro estão se transformando em Cerradão. Trata-se de uma formação florestal pobre em biodiversidade, na qual espécies típicas do Cerrado se misturam com espécies generalistas, que ocupam matas de galeria e outras estruturas.
É o que mostra o estudo “Tree community dynamics in the cerradão (2002-2016): A case of biome shift”, publicado no Forest Ecology and Management e repercutido por Folha, Gigante 163 e Agência FAPESP. A pesquisa investigou as mudanças registradas ao longo de 14 anos em 256 parcelas, somando uma área de 10,24 hectares, em um Cerradão no interior de uma Unidade de Conservação de São Paulo, a Estação Ecológica de Assis.
Os pesquisadores descobriram que mais da metade das mais de 20 mil árvores que existiam no levantamento inicial já haviam morrido em 14 anos. E outras 10 mil, aproximadamente, haviam nascido e crescido até atingir 5 cm de diâmetro. Como se trata de um intervalo de tempo muito curto para uma reconfiguração vegetal tão grande. Em outras palavras, uma vez desencadeada, a degeneração do Cerrado em Cerradão pode ser bastante rápida.
Em tempo: Um grupo de 50 trabalhadores em condições análogas à escravidão foi resgatado em uma área de desmatamento ilegal no sul do Amazonas. E os responsáveis pelo desmatamento instalaram em meio à floresta uma antena para acessar a internet através da Starlink – serviço de banda larga via satélite provido pela SpaceX, do bilionário Elon Musk. A Repórter Brasil procurou a Starlink para saber se a empresa possui algum mecanismo de controle de venda dos equipamentos e uso do sinal de internet em atividades ilegais, mas a empresa não retornou até a publicação da reportagem. “Hoje a Starlink é um dos maiores gargalos para as ações de fiscalização do IBAMA e fonte rápida de solicitação de suprimentos, por parte dos garimpeiros e desmatadores, além de avisos de que a fiscalização está chegando”, comenta Jonathan Paixão dos Santos, agente ambiental do órgão que participou da operação.