Por Diálogo Chino
A China mantém sua aposta na criação de um novo corredor logístico na América do Sul e está preparando o relatório final sobre a viabilidade do projeto, sem estudar e considerar os impactos sociais e ambientais da construção de uma ferrovia com cinco mil quilômetros de extensão entre Brasil e Peru. Segundo apurou a reportagem do Diálogo Chino, a rota preferida dos chineses para a passagem do empreendimento cruza rios, uma reserva indígena e áreas de preservação. A expectativa é começar a obra em 2017.
A Ferrovia Transcontinental pretende atravessar a Floresta Amazônica e a Cordilheira dos Andes para possibilitar o embarque, pelo Pacífico, de milhões de toneladas de grãos e minérios, evitando o canal do Panamá. Os chineses vêm trabalhando nos relatórios de viabilidade do empreendimento desde maio de 2015, quando foi assinado um acordo entre os presidentes da China, Brasil e Peru.
Desde então, a China Railway Eryuan Engineering Group (CREEC), empresa responsável por conduzir os estudos, disponibilizou para os órgãos responsáveis brasileiros e peruanos relatórios prévios que apontam os possíveis trajetos para o empreendimento e suas principais vantagens e desvantagens. O último deles, intitulado “relatório intermediário”, foi enviado à Valec, estatal brasileira responsável pela construção de ferrovias no país, e recebeu críticas dos técnicos brasileiros por não apresentar clareza em relação às questões ambientais.
Inicialmente, foram pensadas cinco possíveis rotas para a ferrovia. Muito estranhamente, duas delas previam cortar o Parque Nacional da Serra do Divisor, que se estende pela fronteira brasileira no estado do Acre e o Peru. Pela lei de ambos os países, nenhum empreendimento poderia cruzar uma área de proteção federal, como aquela da Amazônia. Mesmo assim, as duas rotas figuram no primeiro relatório de viabilidade feito pelos chineses, o que mostra o total desconhecimento por parte deles das leis ambientais de ambos os países.
Já no relatório intermediário, três rotas são consideradas: a norte (C1), a central (C2) e a sul (S). De todas, a rota sul é a que apresenta menor impacto ambiental e não atravessa terra indígena ou área de preservação. Contudo, esta é a menos preferida pelos chineses, pois apresenta mais custos e desafios geológicos de alta complexidade, porque incluem a construção da ferrovia em altitudes de até 4.400 metros.
A rota preferida dos chineses é a norte, alternativa C1, que cruza uma terra indígena no Peru e várias áreas protegidas na Amazônia. “Se for esse o caminho, a ferrovia vai cortar os rios em suas cabeceiras”, observa o secretário-geral da ONG SOS Amazônia, Miguel Scarcello.
A proposta original de ferrovia previa um trajeto que se estenderia do Rio de Janeiro até a região do Pacífico peruano. Depois de muito debate, optou-se por realizar a obra em fases e iniciá-la a partir de Lucas do Rio Verde, cidade localizada na região central do Brasil, no estado do Mato Grosso, maior polo produtor agrícola do país. Dali, o traçado do empreendimento segue 3,3 mil quilômetros até a fronteira com o Peru, no estado brasileiro do Acre, de onde segue por mais cerca de 1,7 mil quilômetros.
Para atravessar a fronteira entre Brasil e Peru, a Transcontinental implica a construção de uma estação de transbordo, já que a bitola (largura dos trilhos) é diferente no Brasil (1,6 metro) e no Peru (1,4 metro). “Um sistema enorme”, de acordo com a avaliação da Valec, “além da necessidade de implantar uma cidade nova para acomodar todos empregados envolvidos no processo, isso tudo numa região muito sensível ambientalmente e pouco habitada”, conclui o documento.
Preocupação peruana
Um documento obtido pela ONG peruana Derecho Ambiente y Recursos Naturales (DAR) afirma que os ministérios da Cultura e do Meio Ambiente do Peru expressaram preocupação em relação aos impactos da rota norte, pois ela atravessaria comunidades indígenas.
O Ministério do Meio Ambiente do Peru declarou que, apesar de a rota norte cruzar a reserva protegida de Altomayo, ela continua sendo uma opção viável. O órgão afirmou ainda que este trajeto evitaria áreas onde vivem índios isolados, que nunca tiveram contato com outras pessoas, mas que ainda assim impactaria comunidades nativas e que seria necessário realizar audiências públicas com essas populações para avaliar os impactos.
Pesquisadores do DAR, membro da Regional Group of finance and Infrastructure, disseram ao Diálogo Chino temer que o projeto da ferrovia repita o que aconteceu com a rodovia intercontinental que desconsiderou as populações das comunidades Amazônicas.
Os dois ministérios afirmaram à ONG que ainda não tiveram acesso ao relatório intermediário feito pela CREEC e que não poderiam tecer mais comentários em relação às outras rotas sem antes ter acesso aos documentos. Os ministérios dos transportes do Peru e do Brasil não responderam aos pedidos de entrevista feitos pelo Diálogo Chino.
Escalar montanhas
A empresa responsável pelos estudos, China Railway Eryuan Engineering Group (CREEC), prevê a operação completa em 2025, a um custo total estimado de US$ 10 bilhões. “Dizem que a geologia pode ser um obstáculo. Entretanto, na China, a geologia é ainda mais complexa, o que forçou a tecnologia chinesa de construção de ferrovias a se aperfeiçoar. Entendemos que os possíveis obstáculos geológicos serão superados”, afirmou o engenheiro Zheng Jianya, da CREEC, ao Diálogo Chino, sem considerar os outros desafios do projeto.
Metade do trajeto previsto pelos chineses já possui licença ambiental prévia no Brasil e corresponde a 1,6 mil quilômetros que atravessam a principal região agrícola brasileira, graças às licenças ambientais da Ferrovia de Integração do Centro-Oeste (FICO), antigo projeto do governo brasileiro que nunca saiu do papel e acabou entrando nos planos da Transcontinental. Os chineses estão negociando convênios com os estados que esperam, desde 2003, a construção desse traçado.
Os estudos de impacto ambiental da FICO preveem a travessia de 96 rios perenes entre os estados de Goiás, Mato Grosso e Rondônia. “O empreendimento terá que apresentar uma metodologia para a construção das pontes”, adianta a coordenadora de Transportes do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais (IBAMA), Larissa Amorim. Segundo ela, nenhum pedido de licenciamento foi feito ao órgão ambiental brasileiro desde o anúncio da ferrovia Transcontinental.
Os Ministérios dos Transportes e do Planejamento brasileiros, que priorizavam o projeto no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), agora se recusam a comentá-lo. O processo de impeachment mudou de maneira radical a agenda pública do governo e os ministérios ainda esperam um decreto do presidente em exercício, Michel Temer, com novas definições para o orçamento público. Portanto, não é certo que a ferrovia permaneça entre as prioridades de investimento, embora haja um grupo de senadores e técnicos influentes a defendê-lo em Brasília.
Financiamento
O modelo de financiamento para a construção da Transcontinental é uma incógnita. Segundo fontes consultadas pela reportagem, a intenção dos chineses é emprestar dinheiro para o Brasil construir a ferrovia, o que torna o projeto pouco atraente para o país do ponto de vista financeiro. “O que os chineses estão propondo é mais ou menos o seguinte: eu construo a casa e você paga, tá bom?”, critica o consultor de logística da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), Luiz Antônio Fayet.
O modelo defendido pelos entusiastas do projeto são as Parcerias Público-Privadas (PPPs) – algo cada vez mais comum no Brasil. Eles acreditam em parcerias com empresas locais, nos estados, para induzir o desenvolvimento regional nos principais trechos da obra. Contudo, Fayet, que trabalha com a principal entidade do agronegócio brasileiro, observa que “a iniciativa privada está totalmente cética em relação ao projeto”.
Segundo Fayet, a tendência para o escoamento de grãos e minérios do Brasil para a China, após a construção da BR-163 no Centro-Oeste produtivo, em 2014, é por meio da hidrovia do Rio Tapajós, rumo ao extremo norte do Brasil. Após passar pela estrada, as cargas são embarcadas na cidade de Miritituba (PA) e sobem até o Porto de Santarém, no Pará, de onde partem para a China por meio do Canal do Panamá ou o Cabo da Boa Esperança.
A Cargill, uma das maiores exportadoras de soja e milho do mundo, com vasta operação no Brasil (80% das exportações destinadas à China), está transferindo seus embarques para esse modal, com dois novos terminais portuários em Miritituba e Santarém (PA). “O que faz mais sentido é escoar a produção pelo Norte, e o modal mais econômico é o hidroviário”, diz o diretor de Transportes da multinacional na América do Sul, Rodrigo Koelle. “Os primeiros estudos que vi sobre a Transcontinental estão longe de superar outros projetos de logística. O custo é muito grande”, comenta o executivo da Cargill.
“A iniciativa dos chineses tem a ver com a visão de que é preciso desenvolver a infraestrutura dos países exportadores. Na visão deles, o Brasil tem custos extremamente altos por conta da logística”, observa a diretora da Vallya, companhia brasileira que presta consultoria para investidores chineses, Larissa Wachholz.
Segundo as estimativas prévias do projeto, a Ferrovia Transcontinental teria capacidade para reduzir o custo das exportações de grãos e minérios em US$ 30 por tonelada, em relação aos preços praticados atualmente. Como alternativa aos corredores logísticos já existentes (os portos do Norte e o Porto de Santos, em São Paulo), ela abarcaria um terço das exportações totais do Brasil para China, com 35 milhões de toneladas de soja em 2025, de acordo com as previsões dos chineses.
Dúvidas
Mas ainda parece difícil de acreditar, de acordo com as fontes ouvidas pela reportagem, que uma obra fadada a cruzar a Amazônia e os Andes possa realmente vingar. As licenças ambientais demoram pelo menos um ano para serem liberadas no Brasil, apertando o prazo proposto pelos chineses de começar a obra já no ano que vem.
Coordenados pela Empresa de Planejamento e Logística (EPL), os brasileiros envolvidos no projeto esperam o relatório final de viabilidade dos chineses para as próximas semanas. Durante audiência pública, realizada do dia 29 de junho deste ano, no Senado Federal brasileiro, o representante da CREEC deixou claro, em sua apresentação, que toda a responsabilidade de realizar estudos ambientais pela ferrovia cabe ao Brasil e ao Peru.