Por Lalo de Almeida e Fabiano Maisonnave, da Folha de São Paulo, publicado em 6 de julho de 2021
Na madrugada de 3 de março, o pescador profissional Louismar da Silva pegou o seu barco e subiu o rio Jauru, como faz há quatro décadas no trecho ao redor de Porto Espiridião, a 323 km a oeste de Cuiabá. Cinco horas depois, voltou com apenas um abotoado, espécie de bagre que ele normalmente devolve à água. Mas naquele dia, pela primeira vez, decidiu comê-lo no almoço. Não gostou.
Desde que começou a se aventurar pelo Jauru, ainda criança, Silva, 50, estima que os peixes diminuíram 70%. Ele não tem dúvidas sobre o principal motivo: já são seis hidrelétricas barrando o Jauru no caminho do planalto para a planície pantaneira, onde deságua no Paraguai.
“O rio não para, oscila muito. Tem dia que baixa 1m, 1,20m. Você arma o anzol fundo, você não acha o peixe. Você arma raso, na volta o anzol está pendurado fora d’água. Não funciona”, afirma Silva.
Com um terço destruído pelos incêndios de 2020, o Pantanal não está acossado apenas pelo fogo. Localizado em terras baixas, toda a água que inunda a maior planície alagável do mundo nasce no planalto do seu entorno, dominado pelo agronegócio e pontilhado por diversas cidades.
“A bacia tem de ser olhada como um todo”, afirma o pesquisador Ibraim Fantin, do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). “Se a água que vem de cima não chegar ao Pantanal, o sistema será comprometido.”
Como ocorre na Amazônia, a maior responsabilidade recai sobre o Brasil. O país possui 362 mil km² da BAP, entre os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Desse total, 148 mil km² formam o Pantanal, e o restante, 214 mil km² (59%) estão no planalto, a maioria tomada pelo agronegócio.
Durante oito dias, a reportagem da Folha percorreu 1.143 km da parte mato-grossense da BAP. Em meio a pastos e plantações de milho e soja, fragmentos de vegetação nativa e centrais hidrelétricas, ali estão as nascentes dos principais pantaneiros, incluindo o mais importante, o Paraguai.
No caso das hidrelétricas, são 38 empreendimentos em operação na BAP, 4 em construção, 7 outorgados e 11 em fase de estudo, segundo levantamento da ONG Ecoa publicado no final de 2020.
O rio com mais barramentos é o Jauru, em Mato Grosso, com seis hidrelétricas em operação, construídas em sequência próximas à cidade de Indiavaí, a 370 km de Cuiabá. No trecho percorrido pela reportagem de barco, praticamente toda a mata nativa já deu lugar ao pasto.
“O que ficou para a cidade foi o impacto ambiental”, diz o pedreiro e pescador amador Francisco Freire, durante um passeio de barco. “As usinas se sentem donas do rio, fazem o que querem no nosso Jauru. Solta água no dia que quer, fecha no dia que quer. Não estão aí para os peixes nem para as pessoas.”
O sétimo projeto hidrelétrico no Jauru deve ser construído a algumas dezenas de quilômetros rio acima, no município de Reserva do Cabaçal. Em março, a licença prévia da PCH (Pequena Central Hidrelétrica) Estivadinho 3 foi aprovada pelo Conselho Estadual de Meio Ambiente de Mato Grosso (Consema).
Para aprovar a obra, houve apenas uma confusa audiência pública, em outubro de 2018. Pessoas ligadas à prefeitura entraram com cartazes defendendo a obra, enquanto movimentos sociais críticos da PCH foram boicotados, segundo relato do professor de geografia Evandro Félix, na época secretário do conselho municipal de Meio Ambiente.
“O coordenador não obedeceu a sequência de fala, simplesmente olhava para aquele que ia defender o projeto e dizia: “Você fala primeiro””, lembra Félix. “Isso deixou a empresa em situação confortável, porque ela não precisava adequar o projeto em quase nada, houve uma manipulação em que as pessoas ligadas à prefeitura eram obrigadas a dizer que eram ligadas ao empreendimento sem questionar a viabilidade ou exigir a compensação.”
Localizado na transição do planalto para a planície, Cabaçal registra também assoreamento dos rios devido ao desmatamento ligado principalmente à pecuária leiteira. O motivo é que, sem a vegetação nativa, o terreno em declive favorece o surgimento de voçorocas, grandes buracos de erosão cavados pelas águas da chuva.
“Estudos apontam que a BAP apresenta baixa proteção das matas ciliares. Foi uma ocupação da década de 1970, quando não tinha essa preocupação, é uma herança do passado”, diz o professor. “O impacto nos rios é muito alto. No córrego Dracena, a ponte está soterrada pela areia. Há registros de que, no passado, tinha 3, 4 metros de profundidade. Hoje, não passa de 20 cm.”
O principal impacto da PCH Estivadinho 3 será na Terra Indígena Figueiras, em Tangará da Serra (MT), habitada por algumas dezenas de paresis. A obra será a alguns quilômetros da única aldeia, em região próxima do divisor de águas entre as bacias do Paraguai e amazônica.
No dia em que a reportagem esteve na aldeia, em 6 de março, os paresis ainda não haviam sido informados sobre a decisão da licença prévia, tomada três dias antes. Em 2018, participaram da audiência com o transporte fornecido pelo empreendedor.
O cacique da aldeia, Rivelino Canezomae, disse que estava preocupado que o empreendedor pague a compensação para uma associação, e não diretamente para a sua comunidade.
Ele apresentou uma lista, escrita à mão, com as seguintes reivindicações: uma escola nova (a atual, de madeira, está inabitável), seis casas de alvenaria, duas pontes, roda d”água e dois automóveis.
“[O projeto] da PCH já existe há 13 anos. Eu estou lutando por causa do meu povo. Se eu fosse sozinho, eu não ia lutar”, afirma Canezomae, em um português precário.
Com 10 mil hectares, a TI é uma ilha cercada por fazendas de soja, milho e algodão. Os paresis dizem que a região foi grilada por paranaenses. Em uma tentativa de expulsá-los, um fazendeiro vizinho jogava constantemente veneno na água, o que obrigou a aldeia a se mudar da beira do córrego Figueiras, há cerca de 30 anos.
As nascentes da região foram desmatadas e, quando chove, as águas viram lama. Além disso, o agrotóxico e o assoreamento escassearam os peixes. Os paresis deixaram de comer anta e ema porque esses animais consomem soja cheia de agrotóxico, contaminando a carne. A esperança agora é que a compensação da PCH amenize esses problemas trazidos pelos brancos.
Em uma tentativa de mitigar os impactos da agricultura mecanizada, o governo de Mato Grosso criou, em 2006, a APA (Área de Proteção Ambiental) Nascentes do Rio Paraguai, nos municípios de Diamantino e Alto Paraguai, a cerca de 200 km ao norte de Cuiabá.
A APA é a categoria de unidade de conservação com o nível de proteção mais baixo do país. No caso das Nascentes do Paraguai, há grandes propriedades rurais privadas, que desmataram cerca de 40% dos 78 mil hectares para atividades agropecuárias. Trata-se da mesma porcentagem de desmatamento do planalto da BAP, segundo relatório da Embrapa Pantanal publicado em 2014, em parceria com as ONGs WWF e SOS Pantanal.
Na região do rio Sete Lagoas, espécie de marco zero do rio Paraguai, a paisagem é a mesma das fazendas de fora da APA: uma vasta plantação de milho, cercas, tratores despejando agrotóxicos, fragmentos de vegetação nativa e algumas emas solitárias.
Situadas em pequenas ilhas de vegetação, apenas três das sete lagoas ainda estavam com água, e parte da mata ciliar havia sido queimada pelos incêndios do ano passado.
No decreto que regulamenta a APA, não há restrição para o uso de agrotóxicos e fertilizantes, desde que de acordo “com as normas ou recomendações técnicas oficiais”.
Em 2017, um relatório da Universidade Federal do Mato Grosso, a UFMT revelou a existência de dez princípios ativos tóxicos na água e no solo, concluindo que a APA é “ambientalmente contaminada por agrotóxicos”.
Nos últimos anos, o Ministério Público de Mato Grosso, por meio da Promotoria de Justiça de Diamantino, ingressou com ações contra todas as fazendas próximas a Sete Lagoas para racionalizar o uso de agrotóxicos.