por Fernanda Wenzel em 15 Março 2024 |
- Construção de hidrovia no Rio Paraguai pode deixar o Pantanal ainda mais seco, impactando áreas prioritárias de conservação e o modo de vida de comunidades tradicionais.
- Portos já estão sendo licenciados ao longo do rio e um contrato assinado no governo Lula abre brecha para a obra de dragagem, necessária à passagem de barcaças carregadas de minério e grãos.
- Os riscos ao Pantanal levaram a Associação para a Biologia Tropical e Conservação a publicar uma resolução pedindo que o projeto não vá adiante.
Um tiro no pé com impactos ambientais irreversíveis. É assim que ambientalistas e pesquisadores descrevem a proposta de construção de uma hidrovia no Rio Paraguai, principal formador do Pantanal. O projeto, que prevê o aprofundamento do leito do rio para atender aos interesses do agronegócio e da mineração, vem sendo paulatinamente implementado e ganhou fôlego no governo Lula.
Distribuído entre Brasil (91,6%), Bolívia (6,6%) e Paraguai (1,8%), o Pantanal é a maior área úmida de água doce do planeta e Patrimônio Natural Mundial da Humanidade. A alternância entre períodos de cheia e seca torna o bioma um berço de biodiversidade que abriga milhares de espécies de aves, plantas e peixes, além de ser o lar de comunidades tradicionais adaptadas aos pulsos de inundação.
A gravidade dos impactos da Hidrovia Paraguai-Paraná levou a Associação para a Biologia Tropical e Conservação (ATBC, da sigla em inglês) a publicar uma resolução apelando para que o projeto não seja levado adiante. Segundo a entidade, que se autoproclama a maior organização científica do mundo dedicada aos ecossistemas tropicais, diversos estudos já demonstraram, “de forma clara e inequívoca, os danos ambientais e sociais previstos para este projeto”.
As obras aconteceriam no Tramo Norte do Rio Paraguai, como são chamados os cerca de 700 quilômetros entre os municípios de Cáceres, em Mato Grosso, e Corumbá, em Mato Grosso do Sul. O trecho é utilizado por pequenas embarcações de turismo e pesca, mas o leito sinuoso e estreito impede a navegação de embarcações maiores e mais pesadas.
Há décadas, isso é motivo de frustração para empresários que veem ali a rota perfeita para reduzir os custos da exportação de minérios e grãos — que seriam levados rio abaixo até os portos marítimos da Bacia do Rio da Prata, na Argentina e Uruguai — e da importação de insumos como agrotóxicos, fertilizantes e combustíveis.
Como solução, o setor privado propõe a remoção de milhares de metros cúbicos de sedimento do fundo do rio para abrir espaço para grandes comboios de barcaças de até 120 metros de comprimento e 1,8 metros de profundidade. Em alguns trechos, pode ser necessário fazer a retificação do rio, o que significa acabar com as curvas do leito e torná-lo uma via reta, como forma de cortar caminho em direção aos portos do sul.
Entre as áreas afetadas pelas obras estão a Estação Ecológica de Taiamã, que tem a maior densidade de onças-pintadas do mundo, o Parque Estadual do Guirá, um refúgio de animais em épocas de cheia, e o Parque Nacional do Pantanal Mato-grossense, um Sítio Ramsar (área úmida de importância internacional) e Patrimônio Natural da Humanidade, além de diversas reservas particulares (RPPNs) e da Terra Indígena Guató.
“Esse trecho deveria ser extremamente conservado”, diz Débora Calheiros, pesquisadora da Embrapa cedida ao Ministério Público Federal (MPF) em Mato Grosso do Sul. Alcides Faria, biólogo e diretor da ONG sul mato-grossense Ecoa, explica que o Parque Nacional e a Estação Ecológica de Taiamã são as áreas mais intocadas do Pantanal: “São duas regiões únicas no mundo. Têm uma quantidade de fauna visível impressionante. É uma festa de vida”.
Os ambientalistas alertam que os impactos não ficarão restritos ao Tramo Norte, já que esta região é crucial para o controle do volume de água em todo o bioma. Segundo a ATBC, a dragagem “resultaria numa redução da dimensão da planície de inundação e da duração das cheias, comprometendo a integridade do ecossistema, a sua fauna e flora altamente adaptadas e as estratégias tradicionais de utilização dos recursos pelas populações humanas locais”.
A explicação é simples: a água, que em condições normais se espalha por centenas de quilômetros nos períodos de cheia, ficaria concentrada no leito do rio — artificialmente rebaixado —, por onde escorreria mais rapidamente para fora do Pantanal, ao invés de inundar os campos.
“O Pantanal é como se fosse uma esponja. Ele recebe bastante água e drena lentamente, justamente por ser uma planície. Por isso a água fica mais tempo no sistema,” explica Calheiros, para quem a obra seria um desastre ecológico. “O funcionamento do Pantanal, para abundância de aves, de peixes, precisa ter água no sistema.”
Tiro no pé
O escoamento acelerado da água em função da dragagem, aliado a secas severas e às mudanças climáticas, podem virar um problema para a própria navegação. Um levantamento do MapBiomas comparou picos de cheia do Pantanal e concluiu que as áreas alagadas diminuíram 29% no bioma entre 1988 e 2018.
O receio é que esteja se repetindo o fenômeno da década de 1960, quando o Pantanal enfrentou uma seca que se arrastou por vários anos. “Então como eles vão navegar? Eles vão dragar mais ainda?”, questiona Calheiros. Ela está entre os 42 autores autores de um artigo publicado no final de 2023 na revista Science of The Total Environment, alertando que a diminuição da vazão pode levar à “interrupção da navegabilidade” e tornar a dragagem uma “tarefa perpétua” com altos custos de manutenção.
Entre 2019 e 2021, a falta de água já impossibilitou a navegação por longos períodos do ano, mesmo em áreas já dragadas do Rio Paraguai, entre Corumbá e a capital paraguaia, Assunção. “Assim, apesar dos consideráveis esforços financeiros e técnicos, o sucesso do projeto de navegação é duvidoso, enquanto enormes impactos ambientais, culturais e sociais podem ser previstos”, afirmam os pesquisadores.
A redução da planície de inundação também deixaria áreas maiores do Pantanal expostas ao avanço de monoculturas, como soja e cana-de-açúcar, e às queimadas, acelerando um processo de destruição que já está em curso. Em 2020, incêndios de grandes proporções atingiram quase um terço do bioma, uma área do tamanho da Suíça, e mataram quase 17 milhões de animais. Em 2023, novas queimadas atingiram um milhão de hectares no mês de novembro, época em que isso não costumava acontecer.
“Nessas dezenas de anos em que eu trabalho e pesquiso o Pantanal, eu nunca tinha visto um quadro como este, em que o desmatamento avança aceleradamente e por outro lado temos os impactos visíveis das mudanças climáticas”, diz Faria. “A situação é tão estranha que tivemos incêndios em novembro e agora estamos com muito pouca água, mesmo no período da chuva.”
Segundo o site de jornalismo ambiental ((o))eco, uma área do tamanho do Rio de Janeiro foi desmatada no Pantanal entre 2019 e 2022, abrindo espaço principalmente para a pecuária e, mais recentemente, para a soja. Enquanto isso, no planalto de Mato Grosso, o agronegócio avança sobre as nascentes dos rios que desaguam no Pantanal.
“Você já está mexendo nas fontes de água, no início do sistema. Depois você ainda faz uma dragagem que favorece uma vazão maior. Você vai drenar o sistema. Com menos água você tem menos produção de peixes, que é o que sustenta a economia regional e a biodiversidade”, alerta Calheiros.
Além da importância para as populações locais, o Pantanal é peça-chave para o controle do aquecimento global, já que as áreas úmidas são importantes armazenadoras de carbono. Como alternativas à hidrovia, cientistas e ambientalistas da ABTC sugerem o investimento em outros meios de transporte de cargas, como a melhoria de ferrovias já existentes.
Projeto já começou
A primeira tentativa de implementação da hidrovia ocorreu na década de 1990, quando embarcações desproporcionais à largura do rio começaram a se chocar contra as margens no afã de escoar a crescente produção de commodities. A iniciativa, que era uma parceria entre Brasil, Bolívia, Paraguai, Uruguai e Argentina, acabou abandonada pelo alto custo ambiental.
Mas no ano 2000 diversos portos começaram a ser licenciados ao longo do Rio Paraguai, em uma nova estratégia para emplacar a hidrovia. “Projetos foram estruturados em diferentes trechos do rio sem publicamente evidenciar a conexão entre eles. O licenciamento ambiental seria localizado, intervenção por intervenção, e solicitado aos órgãos ambientais dos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e não ao Ibama”, escreveu Faria em um relatório publicado pela Ecoa em 2014.
A estratégia, barrada na época pelo MPF do Mato Grosso, voltou a ser aplicada nos últimos anos. Em Cáceres, Mato Grosso, estão sendo licenciados os portos de Paratubal e Barranco Vermelho. Já o Porto Fluvial de Cáceres, desativado desde 2012, voltou a operar em 2020 graças a uma parceria entre a Companhia Mato-grossense de Mineração e a Associação Pró-Hidrovia do Rio Paraguai, uma entidade formada por produtores rurais e que tem entre suas lideranças o deputado estadual Vanderlei Reck Junior (PSD).
“Quem mais força essa situação são políticos do Mato Grosso, principalmente de Cáceres, e o setor de produção de soja”, explica Calheiros.
O MPF-MT chegou a conseguir uma liminar suspendendo os licenciamentos e determinando que os processos fossem conduzidos pelo Ibama, e não pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente. O órgão também argumentou que os impactos dos portos não poderiam ser analisados isoladamente e sem considerar a obra da hidrovia, sem a qual os terminais não teriam por que ser construídos.
“Não há o menor sentido lógico-jurídico em ser licenciada uma Unidade Portuária ou Porto pela SEMA-MT [Secretaria Estadual do Meio Ambiente de Mato Grosso] que não possa se valer juridicamente da navegabilidade em escala industrial da hidrovia, em relação à qual não há licenciamento ambiental pelo IBAMA ou Avaliação Ambiental Integrada pelo IBAMA! Afinal, embarcações paradas não importam e nem exportam!”, declarou o MPF na ação civil pública.
A liminar, no entanto, foi derrubada por uma decisão do TRF1 em abril de 2021, abrindo caminho para a continuação dos empreendimentos. Segundo ((o))eco, terminais em Mato Grosso do Sul também estão recebendo vultosos investimentos privados, entre eles os de Porto Murtinho, Ladário e Gregório Curvo.
Em 2023, o governo Lula incluiu a dragagem do Tramo Norte no Novo Programa de Aceleração do Crescimento (Novo PAC). Questionado pela Mongabay, o Ministério de Portos e Aeroportos informou que a obra se refere à dragagem de manutenção — que é realizada todos os anos — e não à dragagem mais ampla, que seria necessária para a passagem das barcaças. Ainda segundo a pasta, o contrato de realização destas obras teve início em 2023 e prevê dragagens anuais até 2028.
Em março de 2023, uma auditoria do Tribunal de Contas da União neste mesmo contrato revelou que o documento prevê dragagens de manutenção, mas também deixa a porta aberta para a realização da dragagem ampliada. Segundo o documento do TCU, “como o horizonte contratual é de 5 anos, dentro desse período, poderia ser iniciada a movimentação de cargas”.
Via Mongabay