Diário da repórter
Uma parte de mim
Construir uma narrativa sobre o cotidiano de mulheres ribeirinhas do Porto da Manga foi um dos trabalhos mais enriquecedores e gratificantes que realizei. Um desafio no qual me mergulhei profundamente desde a escolha do tema. Foram intensas leituras e estudos sobre mulheres, gênero e trabalho, além das pesquisas sobre o Pantanal e suas comunidades ribeirinhas tradicionais.
Sempre me atentei muito às pautas que tratam de mulheres nos limites da sobrevivência, principalmente, às margens das assistências básicas do Estado. Isto porque penso que ser mulher significa viver uma luta diária, em busca do reconhecimento de direitos fundamentais e, por isso, vejo a importância das temáticas que colocam em debate a desigualdade e o preconceito.
Comecei a trabalhar com estes temas no segundo ano de faculdade. Durante uma disciplina optativa, desenvolvi uma narrativa longform sobre parto e nascimento, tendo como foco as mulheres em busca do direito de escolha, o direito sobre seu próprio corpo. Em 2015, realizei outra narrativa para Web, sobre mulheres com deficiência física e sua luta por direitos básicos. Mulheres inspiradoras que muito me ensinaram sobre o que é o feminismo, o empoderamento, a luta contra violência e toda forma de opressão histórica, cultural, social, política e econômica.
Trabalhos que me amadureceram e me incentivaram a trazer para as pautas jornalísticas mulheres muitas vezes invisíveis pela mídia tradicional, ou, até mesmo, retratadas de forma romantizada, fora do contexto de vulnerabilidade social em que vivem.
Uma parte de mim
Desde que compartilhei com a minha orientadora o desejo de contar histórias de mulheres ribeirinhas, que vivem em situações precárias de saúde, moradia e educação, ela me apoiou e ajudou em cada passo que dei durante todo o processo deste trabalho. Não teria conseguido se não fossem os conselhos, os aprendizados compartilhados, a viagem que fizemos juntas até o local e todas as vezes que me disse que daria certo, entre tantos imprevistos e desafios.
Este diário é uma parte de mim, uma parte do que vivenciei, das experiências e percepções sobre o cotidiano das mulheres ribeirinhas do Porto da Manga. Um diário que se fez necessário dentre esta aventura que embarquei com pessoas maravilhosas.
Meus agradecimentos são para as mulheres, guerreiras, de luta, que incansavelmente buscam pelo reconhecimento de seus direitos. À minha orientadora, Katarini, um presente que a vida me deu, que faz de mim uma mulher melhor, e uma pessoa que acredita no jornalismo como instrumento de mudança social. À equipe da Ecoa, que deu todo o suporte para a realização das viagens, principalmente ao André, Vanessa e Nathália. Ao meu querido amigo, professor Silvio, que tanto recebeu e respondeu meus e-mails com os desabafos, do que deu certo e errado, das angústias e de muita, muita ansiedade. Ao meu namorado Victor, que me inspira, acalma meu coração e me fortalece. À minha família, que mesmo a 700 k m de distância me apoiou intensamente. Pessoas que fizeram possível toda a realização deste trabalho.
Dia 22/03/2016 - Primeira viagem ao Porto da Manga
Impactos de uma primeira visita
Acompanhada por membros da Ecoa, com os quais fiz um contato anterior para verificar a possibilidade de realizar esta primeira viagem, dei início ao projeto experimental para obtenção do diploma do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
Era madrugada do dia 22 de março de 2016, e acordei às 2h quando deveríamos sair às 5h para a comunidade, mas a ansiedade não se calava dentro de mim. Organizei algumas roupas, peguei a câmera, microfone e tripé, coloquei em uma mochila, e esperei impaciente pelo horário combinado.
Ao apontar cinco no relógio, logo fui me encontrar com a equipe da organização, que iria para a comunidade finalizar a construção da cozinha comunitária para a Associação de Mulheres Extrativistas do Porto da Manga.
Foi uma viagem não tão longa, mas cansativa, devido à noite mal dormida e um turbilhão de perguntas, dúvidas, e incertezas que vinham à minha cabeça. Estava exausta e animada, era uma mistura de sentimentos.
Assim que chegamos à região ribeirinha, tive meus primeiros impactos e percepções: homens no bar, bebendo com turistas e, enquanto isso, mulheres coletando iscas, pescando, e crianças saindo de uma pousada, provavelmente da aula, em direção a um campo de areia, improvisado, para jogar futebol.
Dia 22/03/2016 - Primeira viagem ao Porto da Manga
Impactos de uma primeira visita
A vista, paisagem, o céu, tudo parecia mais bonito do que nas cidades, mas estes cenários logo ficaram em segundo plano. As grandes protagonistas da história, vivem às margens das políticas públicas e trabalham em condições insalubres.
Nesta viagem, me dediquei a estabelecer um primeiro contato. Passei de casa em casa, conversei com as mulheres, expliquei a proposta do trabalho e disse que retornaria entre alguns meses para começar a produzir o material. Sem empecilhos, as mulheres se prontificaram a ajudar e demonstraram interesse em compartilhar suas histórias. Fiz poucos registros fotográficos durante a visita, priorizei o contato com as ribeirinhas, pois, era importante que elas entendessem a proposta do trabalho.
Para uma primeira visita, foi um grande impacto. Não imaginava encontrar apenas as belezas exuberantes da fauna e flora pantaneira, mas também me surpreendi com o árduo cotidiano que as ribeirinhas enfrentam.
Dia 11/06/2016 - Segunda viagem ao Porto da Manga
Cotidiano das mulheres ribeirinhas
Esta segunda viagem foi a principal, feita em julho, e realizada junto a minha orientadora. Era interessante que ela pudesse acompanhar o processo e também conhecer a região da qual trataria a narrativa. Então, saímos às 6h30 de Campo Grande e seguimos de carro até o Porto da Manga, onde chegamos por volta das 13h.
Ficamos hospedadas na casa da Eliene, uma coletora de iscas que aluga quartos para turistas. Os quartos são muito bem organizados, espaçosos, assim como os banheiros. Ela nos recebeu com muitas cobertas em cima das camas, pois, naquele dia, fazia frio. A temperatura oscilava entre 10 a 12 graus. Isto, confesso, atrapalhou um pouco a disposição que planejei para o dia. Sou cuiabana, desacostumada com o frio, e à beira do rio, sentia meu corpo estremecer a cada vento. Mas, não quis descansar por um minuto e logo retomei o contato com as ribeirinhas.
Combinei um horário diferente com cada uma, para realizar a entrevista. O rendimento foi melhor do que o esperado. Ao todo, consegui conversar com 11 mulheres e acompanhá-las nas mais diversas atividades que compõem suas rotinas. Para os breves três dias que passamos na comunidade, rendeu um ótimo material.
Dia 11/06/2016 - Segunda viagem ao Porto da Manga
Cotidiano das mulheres ribeirinhas
Conheci a casa onde vivem estas mulheres, a cozinha, agora já construída e em uso pela Associação das Extrativistas, o trabalho de coleta das iscas, os remédios feitos com plantas, e vários outros elementos e situações contempladas por este cotidiano. Minha vontade era construir uma narrativa que trouxesse estas peculiaridades e, além disso, os problemas sociais enfrentados. Atentei-me para as oralidades, os movimentos, sons, cheiros, as cores e as formas, para realizar a difícil tarefa de traduzir em palavras e retratar por fotos, as belezas e tristezas da rotina.
Esta viagem se resume a uma das experiências mais incríveis da minha vida. Não consigo conter as lágrimas quando memórias sobre estes dias são resgatadas. Deparar com o diferente, tentar se colocar no lugar do outro e conhecer as condições impostas a estas mulheres, mexeu profundamente comigo, assim como imagino que após conhecer as histórias, o leitor sinta-se mudado de alguma forma, em seus conceitos, seus sonhos, suas vontades, desejos, ou percepções sobre o mundo.
Dia 23/10/2016 - Terceira viagem ao Porto da Manga
Fim de um capítulo
Durante a segunda viagem, finalizei a coleta de materiais para produção da narrativa longform, mas tive a imensa necessidade de retribuir de algum modo todo o carinho com o qual as mulheres ribeirinhas me receberam. Decidi então ampliar várias fotografias, que registrei delas e de membros de suas famílias, e entreguei para cada uma junto a uma carta de agradecimento.
A gratificação do trabalho estava nestas simples coisas, na felicidade delas ao receber as fotos e nas brincadeiras que fizemos ao ver algumas das fotografias engraçadas. As gargalhadas ecoam em minha memória e me trazem muita alegria. Em meio a tanta tristeza que vi daquele cotidiano, estas boas lembranças também se fazem presentes.
Nesta última viagem, aproveitei para realizar alguns registros a mais. Fiz vídeos do local, fotografias das paisagens e conversei novamente com as ribeirinhas. Isto até ser interrompida por um senhor alto, que com um tom ranzinza gritou comigo e pediu para que eu parasse de fazer contato com as mulheres. No momento, não entendi muito bem o que estava acontecendo e fiquei assustada. Ele estava agressivo e ameaçou que seria mais violento, se eu não respeitasse sua vontade. Apesar de uma das ribeirinhas me defender, dizendo que eu era apenas uma acadêmica, fazendo um trabalho de faculdade, e que elas me conheciam há um tempo, o senhor insistiu que eu saísse de perto delas e parasse com os registros.
Dia 23/10/2016 - Terceira viagem ao Porto da Manga
Fim de um capítulo
Para evitar maiores problemas, voltei para perto dos membros da Ecoa, com os quais realizei a última viagem. Contei a eles sobre o ocorrido e decidi então que só me despediria das mulheres e o processo de coleta do material estava finalizado.
No dia 24 de outubro partimos de volta para Campo Grande. Deste mês em diante, dediquei os dias para a construção do texto e do trabalho hipermídia. Em março de 2017, finalizei a narrativa.
Levo desta experiência o jornalismo que foge da pretensa objetividade, que mostra as diversas facetas da realidade, do contexto histórico e social, no qual me inseri para a produção do trabalho de conclusão de curso. Além disso, um amadurecimento e gratificação de um tamanho infinito
Iasmim.
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