Da relação com a natureza floresce saberes tradicionais para enfrentar as penúrias do cotidiano. Entre ciclos de seca e cheia, as mulheres vivem do saber, para se adequar às peculiaridades do meio ambiente. A rotina está sob os moldes da vida pantaneira, que à beira do rio é construída e reconstruída, como quando uma grande cheia atingiu a região do Porto da Manga em 1974. Águas encobriram mangueiras, casas, barcos e histórias. Muitas famílias da comunidade tiveram seus sonhos afogados e foram submetidas
ao recomeço.
Conhecimentos tradicionais
A partir de saberes tradicionais sobre técnicas para sobreviver as mudanças climáticas extremas, Dona Lourdes construiu a casa que abrigou os filhos e netos durante períodos de cheia. A senhora se mostra acostumada a enfrentar o cotidiano com os poucos recursos e assistência disponíveis.
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A pequena habitação de madeira, erguida com a força de uma mulher que se instalou na região para criar dez filhos, abandonados pelo pai desde a infância, foi destruída por obra da natureza. Mais uma vítima às margens das políticas públicas, que não oferecem construções adequadas para fazer frente aos eventos climáticos extremos e coloca em risco o lar e a família.
Mulher de luta
Dona Lourdes vive a luta diária pelo reconhecimento de seus direitos, principalmente, à moradia adequada
A mulher de voz grave, rouca e de tom um pouco ranzinza, é detentora de conhecimentos tradicionais pantaneiros, responsáveis por garantir sua sobrevivência ao longo dos anos. Maria de Lourdes da Silva, Dona Lourdes, como assim prefere ser chamada, edificou sozinha uma casa com materiais improvisados, disponíveis na região, para abrigar os filhos. Um único cômodo tornou-se aconchegante, comparado aos lugares que morou no passado, onde as picadas de mosquito e os ventos frios da noite perturbavam o sono das crianças.
Nascida em Porto Esperança, um distrito do município de Corumbá, Dona Lourdes, senhora de 58 anos, aprendeu a pescar com sua mãe durante a infância. Esteve diante às desventuras da sobrevivência e da fragilidade do círculo familiar. Casou-se quando nova e sofria com a violência do marido. Por anos enfrentou as dores dos insultos e das agressões. Sem acesso a um atendimento especializado para mulheres vítimas de violência, não teve escolha, se não procurar outro lugar para se reerguer.
Violência contra mulher
Dona Lourdes pôde sentir o desabrigo e descaso com a falta de assistência especializada para vítimas de violência doméstica. Além disso, a ausência dos serviços de saúde pioram os casos, e muitas mulheres acabam inseridas também no ciclo da violência.
Dona Lourdes viajou até o Porto da Manga, onde insistiu em morar com os dez filhos. Com as poucas oportunidades que a comunidade oferecia, conseguiu ao menos garantir uma renda para a família, suficiente para o alimento e educação. Teve como prioridade assegurar um lar seguro que, por vezes, custava a se manter devido às instabilidades dos períodos de cheia. Mas, ainda assim, conquistou a alegria de proporcionar aos filhos, uma vida além das cercas do cotidiano que enfrenta.
Desconfiança
Vento Sul
A comunidade, que detêm peculiares tradições pantaneiras, faz relação entre os movimentos dos pássaros e o clima. Chamam de vento sul quando as aves avisam que o frio se aproxima.
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Após sofrer com a violência do marido, Dona Lourdes evita ter intimidade com as pessoas
— Eu moro aqui faz muitos anos. Aí saí daqui e levei minhas criança pra estudar em Corumbá e depois voltei de novo. Hoje, aqui, bem dizer, é só eu e Deus. O resto tudo casaram e procuraram seu rumo. Tenho contato com eles direto. Ixi, um sempre vem aí. Alguns que é mais difícil porque moram longe, aí tem que vim de barco ou de carro.
Dona Lourdes percebe que os dias de chuva não mais se prolongarão quando pássaros seguem o vento que vem do sul, indicando a chegada de um período frio. Os climas e suas peculiaridades, necessários para renovação e manutenção das espécies, têm impactos extremos sobre comunidades ribeirinhas, que se adaptam para sobreviver.
Peixes de refeição
Habitação reerguida
Peixeis são o principal alimento das famílias ribeirinhas, que evitam gastos com a compra de comida das cidades
Dona Lourdes construiu uma nova casa sozinha após longos períodos de cheia, que destruíram sua antiga habitação
— Aqui quando faz frio, é frio! E aqui a lei da sobrevivência é tela e pesca. Por exemplo, agora tá ruim de isca e tá ruim de peixe por causa do frio. Saí ontem cedo e cheguei tarde e num peguei um peixe. Fui telar anteontem e sabe quanto caranguejo peguemo? Vinte! Dia inteiro! Isso... Deus me livre... É muito pouco. Não compensa você se maltratar na água, nesse frio.
Nos dias em que a temperatura diminui drasticamente e a água fria torna insuportável coletar as iscas dentro do rio, Dona Lourdes, que hoje vive sozinha, se alimenta da sobra dos peixes guardados no freezer. O clima, que impossibilita o trabalho, também traz o devagar das horas, que não costuma ser bem vindo para a mulher que sempre esteve ativa, trabalhando exaustivamente, sem tempos definidos, para garantir a sobrevivência da família. Lazer e momentos recreativos são até confundidos na memória de Dona Lourdes com as lembranças dos trabalhos dentro e às margens do rio.
Fora da rotina
Como não estão acostumadas com o frio, as famílias têm de se adaptar para sobreviver
Baixa temperatura
O tempo frio dificulta exercer as principais atividades de subsistência pelas mulheres
Trabalho prejudicado
Em dias muito frios, as mulheres não conseguem coletar iscas suficiente
Se o rio não está para peixe, a inquietude logo arranja o que fazer. Os destroços de uma cheia passada deixaram frestas nas portas e janelas da casa de Dona Lourdes, por onde passam os ventos gelados nas madrugadas. Logo ela reparou os danos, arranjou novos materiais para consertar a casa, reconstruiu seu espaço e se adaptou aos ciclos da natureza.
Para além de conhecimentos que ajudaram Dona Lourdes a prover o sustento familiar, com a coleta de iscas, e a edificar a casa para abrigar os filhos, aprendeu também sobre as plantas para uso medicinal, tradições repassadas pelas pantaneiras mais antigas da região.
Com a flora local, produz remédios para as doenças mais comuns, causadas por ingestão frequente de água suja, ou contaminada, como a gripe, diarreia e febre. A assistência médica oferecida na comunidade ainda é incipiente. Em alguns meses, a Marinha do estado de Mato Grosso do Sul leva alguns remédios para as ribeirinhas, mas a falta de um serviço de saúde adequado, um hospital para atender as famílias, resulta em alternativas medicinais para os tratamentos. Dona Lourdes atribui as curas milagrosas aos remédios caseiros, comumente utilizados pelos ribeirinhos.
Raizada
A raizada é uma famosa bebida feita para uso medicinal, muito utilizada pelos ribeirinhos
A fonte que sacia a sede é o rio Paraguai, com águas não apropriadas para consumo sem o devido tratamento. Para que as mulheres ribeirinhas possam ferver o alimento, tomar banho, entre outras atividades rotineiras, fazem uma mistura à base de cloro e sulfato de alumínio. No período da decoada, as águas do rio ficam ainda mais contaminadas, e a falta de saneamento básico na região submete as famílias muitas vezes ao consumo impróprio, precisando realizar sempre o tratamento de forma adequada para prevenir maiores riscos à saúde.
Água suja na decoada
A comunidade sofre sem o tratamento adequado da água do rio, principalmente, no período da decoada, um fenômeno natural caracterizado pelo processo de decomposição de matéria orgânica, em que há consumo de oxigênio e liberação de dióxido de carbono livre, que resultam na contaminação da água do rio.
A natureza para Dona Lourdes revela-se como desafiadora da sobrevivência, que molda o cotidiano para se adaptar ao meio ambiente. Mas, não se restringe a isso, vai muito além. O Pantanal deu às mulheres a paz que não encontraram nas cidades, o silêncio, a beleza das paisagens, a simplicidade, a valorização de pequenas coisas do dia a dia.
— Aqui é um ponto prá você ficar em silêncio, tranquilo, ninguém te mexe, sabe? Daqui ali na beira do rio, da beira do rio é aqui dentro deitada, vou assistir minha televisão. Eles [crianças] que guenta barulho de carro passando toda hora na sua casa. E aqui na parede da gente não passa carro, passa a lua... alá!
As ribeirinhas impulsionam os filhos e netos para o mundo, além das grades que cercam a precariedade dos dias. Mas elas querem a permanência, a garantia do direito de viver onde desejam e ter acesso à saúde, educação, saneamento básico, moradia adequada e todas as necessidades básicas. O cotidiano de mulheres ribeirinhas do Porto da Manga é imposto pela ausência do Estado, que deveria possibilitar a liberdade e segurança, pela qual Dona Lourdes, e todas as mulheres da comunidade, tanto lutam.
Se as águas da chuva molham e criam a desesperança do futuro é porque vias de sobrevivência são abaladas. As ribeirinhas são o símbolo da resistência, que também permeia no cotidiano, de luta contra a violência, praticada em suas mais diversas facetas, opressão política, econômica, história, cultural e social.
Ontem choveu no futuro.
Águas molharam meus pejos
Meus apetrechos de dormir
— Manoel de Barros
Meu vasilhame de comer.
Vogo no alto da enchente à imagem de uma rolha.
Minha canoa é leve como um selo.
Estas águas não têm lado de lá.
Daqui só enxergo a fronteira do céu.
(Um urubu fez precisão em mim?)
Estou anivelado com a copa das árvores.
Pacus comem frutas de carandá nos cachos
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Diário da repórter