Um ciclo para os que vivem nos limites da sobrevivência é a impiedosa eternidade que se renova, na seca, na cheia, e em todos os períodos do Pantanal. As comunidades ribeirinhas se adequam ao ritmo das águas.

A ideia de que povos tradicionais pantaneiros são seres que vivem em perfeito equilíbrio com o meio ambiente, é sufocada pelo cotidiano árduo de mulheres que trabalham exaustivamente para garantir a sobrevivência

de suas famílias.

A comunidade ribeirinha do Porto da Manga é formada por cerca de 250 pessoas, sendo 47 famílias, que vivem das atividades provenientes do turismo, a pesca, pilotagem e, principalmente, a coleta de isca viva, que mais gera trabalho e renda para as mulheres. A partir dos conhecimentos repassados pela anciã Maria do Carmo, as ribeirinhas fortaleceram a atividade de coleta trabalhando em conjunto, unidas para prover o alimento de cada dia. Na região, os serviços de guia e pilotagem são exercidos prioritariamente por homens, enquanto a captura de iscas é feita em sua totalidade pelas mulheres.

Uma ribeirinha se destaca na comunidade, não apenas pelo contraste de seus olhos verdes de tom esmeralda com as mechas loiras entrelaçadas nos fios de cabelo grisalhos, mas também por sua história, que cruza no labirinto da vida com a de tantas outras mulheres do Porto da Manga, que embarcam diariamente em jornadas de trabalho de mais de 10 horas.

Coletora profissional

Eliene é considerada uma das melhores coletoras de iscas da comunidade

Coletora há quase 29 anos, Eliene Garcia da Costa Soares, passou a maior parte de sua adolescência incumbida de ajudar no sustento da família. Residiu em Corumbá por alguns anos e casou-se muito jovem, logo após engravidar da primeira filha. Seu marido trabalhava com a caça de jacaré, nos tempos de contrabando e, quando muitos de seus colegas morreram em conflitos com policiais, devido à ilegalidade da atividade, Eliene decidiu procurar um local seguro para viver.

Durante um passeio de barco pelo rio Paraguai, avistou a região da Manga, onde muitos turistas frequentavam, e viu neste cenário a oportunidade de proporcionar à filha uma vida melhor do que aquela que até então havia conseguido. Eliene e seu marido seguiram à jusante de Corumbá e, graças a algumas economias, mudaram-se para a comunidade ribeirinha e construíram uma casa, próxima ao local onde são realizados o embarque e desembarque dos viajantes.

Oportunidades

Assim como outras mulheres da comunidade, Eliene foi em busca de oportunidades de trabalho

Eu vim aqui eu tinha só a minha filha mais velha. Ela tinha um aninho quando eu vim aqui e o meu marido... Sabe daquela época que tinha as caçadas de jacaré? Ele pegava a pele do jacaré e vendia prá fora e eu tinha recém ficado com ele. Daí passando por aqui de barquinho, a gente gostou. Tinha muito turista aqui... Turista, turista, turista. Aí a gente comprou um barraquinho. Era só dois quartinhos. Daí nós fomos construindo...

Ao chegar na comunidade, Eliene aprendeu a coletar iscas, atividade já desenvolvida por algumas mulheres que viviam no Porto da Manga. O turismo estava em ascensão e a pesca era a atividade mais procurada. Seu marido começou a trabalhar como piloto e guia na região. Dessa forma, estabelecia uma aproximação com os turistas e conseguia levar até eles as iscas, capturadas pela esposa para a pesca. Isto fez com que Eliene se tornasse uma das referências na comunidade, já que a proximidade com os turistas passou a ser relacionada à confiança na qualidade do serviço.

Para melhorar o desempenho na atividade e garantir rendimento suficiente, Eliene adquiriu um barco de dimensão maior, tela, roupa adequada, e convidou outras mulheres para juntar-se a ela durante as jornadas. Conforme formavam grupos, obtinham maiores ganhos e as ribeirinhas sentiam-se mais seguras para trabalhar durante horas dentro do rio.

— Eu comecei a pegar isca, eu gostei. Eu via as pessoas vendendo isca, aí eu fui pegar. Tem quase uns 29 anos que eu pego isca. Eu aqui vendo mais isca de todos. Tenho muito contato com esses comprador de fora. Daí liga né e eu pego isca de todo mundo da comunidade, aí vendo pra eles.

A atividade consiste em coletar, principalmente, caranguejos durante o dia, e tuviras durante a noite. Milhares de iscas vivas capturadas por semana fazem o trabalho parecer fácil, mas as mãos e pés calejados de Eliene, além das frequentes visitas ao hospital, por causa das intensas dores nas pernas, revelam um gosto amargo deste cotidiano. Eliene apresenta hematomas no corpo e cicatrizes, consequência do excesso de esforço físico e das ferroadas de arraiais.

As mulheres também denominam a atividade de “telar” e “mudinho”, porque as capturas são feitas com grandes telas de nylon e o trabalho precisa ser realizado em silêncio, para não espantar os peixes. Durante a coleta de tuviras, elas ficam separadas por cerca de 100 metros dentro d’água, e esperam pelas iscas pacientemente na escuridão. O corpo fica submerso até um pouco acima da cintura e a tela é apoiada nas pernas, por isso, as ribeirinhas apresentam, com extrema frequência, dores musculares e doenças ginecológicas.

Milhares de iscas

Noites de trabalho

As mulheres capturam quase mil iscas por semana para vender aos turistas

Ribeirinhas costumam telar, no período da noite, a partir das 22h para conseguir capturar tuviras

Prá pegar tuvira, a gente sai a noite e fica no escurão, com luz apagada. Daí joga o cupim dentro d’agua e tampa com lona preta. Quando elas tão comendo ali dentro, faz um barulhinho como “tchic, tchic, tchic”. Quando faz bastante, você sabe que é hora de puxar a corda da tela. Chega a sair de umas oitenta, por aí.

As mulheres fizeram da atividade sua principal fonte de renda e passaram a exigir do poder público melhores condições para exercer o trabalho com segurança. Por meio de uma pauta apresentada na Associação dos Moradores do Porto da Manga, articulada pela organização não governamental Ecoa, que atua na comunidade com projetos sociais, as ribeirinhas receberam do Ministério Público do Trabalho (MPT) vestimentas adaptadas para a coleta de isca viva.

Roupas adequadas

O uso do macacão é necessário para evitar doenças e ataques de animais

Antes de obterem roupas adequadas, as doenças contraídas e os machucados causados por ataques de cobras, jacarés e arraias, eram frequentes. Por não haver hospital e serviço de saúde para casos emergenciais na comunidade, algumas mulheres não sobreviveram. Entre elas, uma amiga de Eliene, mãe de sete filhos e grávida do mais novo. Foi picada por uma cobra durante a captura de isca e faleceu antes de chegar ao hospital mais próximo, localizado no município de Corumbá.

Minha amiga morreu grávida. Ela tava pegando isca e a cobra picou ela. Devia ser umas nove horas da noite. O marido dela remou a noite inteira. Remando! Quando tava clareando, cinco horas, ele chegou. E nóis que éramos amigas dela, as isqueiras, fomos tudo lá ver ela. Um turista que tava no hotel falou que ia levar ela pra Corumbá. Quando tava pra chegar lá, ela faleceu. Edna, o nome dela.

Com a crescente demanda por iscas, surgiram também outras implicações nos modos de trabalho das ribeirinhas, que sofrem com a exploração do mercado de turismo. As iscas, quando não são vendidas pelas mulheres diretamente para o turista, são revendidas por terceiros, chamados de atravessadores, nas cidades onde as mulheres não conseguem ir, porque não possuem carro e o único frete oferecido na comunidade custa em torno de 300 reais. Os atravessadores vendem a isca a um valor cinco vezes maior do que compram, que corresponde a 0,60 centavos pela unidade.

Coletivo

Alternativa de renda

A criação da Associação de Mulheres extrativistas foi uma grande conquista para as ribeirinhas

Os produtos vendidos pela Associação são fundamentais alternativas de renda para as mulheres

As mulheres vivem uma luta diária para o reconhecimento de seu trabalho e pela garantia de seus direitos, que muitas vezes não são contemplados pelas discussões proporcionadas nas reuniões da Associação de Moradores, composta majoritariamente por homens. Apesar de algumas conquistas, como as roupas para a coleta de isca viva, havia nas mulheres desejos maiores. A emancipação dos interesses individuais e a vontade de formar um coletivo resultaram na criação da Associação de Mulheres Extrativistas do Porto da Manga, idealizada por dez ribeirinhas.

Juntas, elas elaboraram uma alternativa de renda, necessária, principalmente, em época de cheia e no período de defeso, quando as principais atividades de subsistência são proibidas, ou controladas, para assegurar a reprodução das espécies. As mulheres fazem peças artesanais e produzem alimentos de derivados do Pantanal durante os meses em que o salário pago pelo governo, não é suficiente para atender as necessidades básicas das famílias.

O coletivo permitiu plantar a semente que deu início à colheita de novas conquistas para as mulheres. Quando começaram a vender os primeiros alimentos, como as geleias de laranjinha de pacu, todo o processo produtivo era realizado em suas casas, com poucos instrumentos de trabalho. Assim que consolidaram a Associação, puderam articular estratégias para obter recursos e aumentar as produções. Em 2016, com o apoio da Ecoa, as mulheres inauguraram uma cozinha comunitária, onde a produção de alimentos é atualmente realizada.

A presidente do grupo, Elizete Garcia da Costa Soares, ou Dona Zezé, como é carinhosamente chamada pelos membros da comunidade, tem 52 anos e vive há duas décadas na região ribeirinha. Quando é questionada sobre de onde emana toda a força que proporcionou esta conquista, ela responde que foi o sonho em comum que encontrou nas mulheres do Porto da Manga, o anseio pela independência.

Esposa, mãe de um casal e avó de uma menina, foi guiada pela esperança de encontrar oportunidades de trabalho, assim como muitas ribeirinhas, pois, nas cidades, eram exploradas nos empregos mais precários e acabavam por depender do salário de seus maridos.

Empreendedora

Zezé faz um levantamento mensal das vendas e gastos da Associação para melhorar o empreendimento

Nascida em uma colônia às margens do rio Negro, afluente do rio Paraguai, Zezé desde muito jovem carregou o fardo que outras tantas meninas também carregaram, as responsabilidades de ajudar a prover condições de sobrevivência para a família. Por isso, não conseguiu terminar os estudos e nem mesmo usufruir a doce fase da adolescência.

Aos 20 anos, deu à luz a primeira filha e decidiu mudar-se para Corumbá com o marido, para procurar trabalho e assistência médica de qualidade. Mas, os anos seguintes foram penosos com Zezé. O único emprego que a ofereceram, foi de balconista, em uma padaria. O salário não era suficiente para pagar as contas e a vida na cidade tornou as condições de moradia e o acesso à educação e saúde ainda mais difíceis.

De encontro com o rio

Às margens do rio Paraguai, Dona Zezé encontrou oportunidades de trabalho e condições para prover a sobrevivência da família

O salário mal dava para pagar as contas. Meu marido trabalhava na mineração, mas teve um corte muito grande e aí ele saiu. Quando eu engravidei do segundo, tive que procurar uma alternativa né. Então meu marido comprou um barco, com motor, e daí fomos em busca de outro lugar prá trabalhar.

Grávida do segundo filho, Zezé deixou no passado de sua história o pouco que construiu em Corumbá e seguiu de barco até a comunidade do Porto da Manga, onde sua irmã Eliene já residia. Tinha a esperança de que a ascensão do turismo na região pudesse ser a oportunidade de trabalho que buscava para oferecer um futuro melhor aos filhos.

Eu vim aqui eu tinha 29 anos. Foi através da minha irmã, Eliene. Ela já morava aqui. Falaram que aqui dava dinheiro com turismo, aí meu marido comprou um motor e daí viemo pra cá e tamo aqui até hoje. Quando eu vim pra cá, eu sentia muita falta de Corumbá. Mas, agora quando eu vou pra Corumbá, eu sinto falta daqui. Aqui que é minha casa.

Zezé acompanhou sua irmã nas coletas até aprender a realizar o trabalho. Viveu com o mínimo de mantimentos por meses, para economizar dinheiro, e conseguiu comprar um barco com motor. Seu marido é atendente no bar da comunidade e recebe um salário, enquanto Zezé contribui com a maior parte da renda, que ganha com a venda das iscas.

— Foi duro... Eu na época, hum... Minha perna ficava até... assim de tanto a unha coçar. Mulher ficava com inframação direto... Antigamente era melhor de turismo, aqui dava muito mais dinheiro né. Aí eu via que dava um bom dinheiro, aí fui aguentando. Daí depois... depois meu marido foi ficando mais velho, aí eu falei "não vamos mais arranjar serviço em Corumbá mesmo", aí vamo ficar por aqui e ficamo... ficamo.

Costumes

Subsistência

Zezé sempre morou à beira do rio e pretende permanecer na

comunidade, onde constituiu sua vida

As alternativas para renda ajudam as mulheres a manter um

salário mensal para arcar com as despesas da família

Apesar de os recursos não serem suficientes para garantir uma ideal qualidade de vida, Zezé realizou o sonho de poder proporcionar aos filhos estudo e oportunidades que não teve quando jovem. O filho mais novo mora na capital de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, onde cursa Engenharia Ambiental. Para que os estudos não sejam interrompidos por falta de dinheiro, Zezé encontra alternativas de renda. A criação da Associação das Extrativistas foi o que propiciou às ribeirinhas uma opção de trabalho, para os meses em que não podem realizar a atividade de coleta de iscas.

Tem época de cheia que não vem turista, não passa carro, fica abandonado aqui. Meu marido quase não vende nada. Fica água na estrada inteira, carro não passa e nóis não ganha seguro desemprego... Então a gente arruma uma alternativa prá fazer dinheiro.

Os conhecimentos adquiridos e compartilhados sobre a coleta de isca viva, produção de alimentos e artesanato representam o fortalecimento das relações sociais entre as ribeirinhas da região, que juntas vivem a luta pelo auxílio das políticas públicas e garantia de seus direitos. O empoderamento dessas mulheres nasce para subverter o ciclo imposto, o cotidiano de impiedosas eternidades, pois, ainda têm em sua independência algemas que as condicionam para situações rotineiras marcadas pela insalubridade, com a falta de assistência médica e moradia adequada, além da precariedade do ensino básico.

Ando muito completo de vazios.

Meu órgão de morrer me predomina.

Estou sem eternidades.

Não posso mais saber quando amanheço ontem.

Está rengo de mim o amanhecer.

Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.

Atrás do ocaso fervem os insetos.

Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu destino.

Essas coisas me mudam para cisco.

A minha independência tem algemas

— Manoel de Barros

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