Por Ana Aranha – Agência Pública / Repórter Brasil
Gerlene Silva dos Santos escolhe as menores frutas quando vai ao mercado em Limoeiro do Norte, Ceará. Quanto mais imperfeita, melhor. Os abacaxis agigantados, desses que chamam a atenção dos outros clientes, lhe trazem a memória do “olhar amarelado” do marido. Foi o primeiro de uma série de sintomas que tiraram a vida dele um mês depois ser internado no hospital universitário de Fortaleza, em novembro de 2008.
Segundo laudo médico, a causa da morte de Vanderlei Matos da Silva foi “hepatopatia grave de provável etiologia induzida por substâncias tóxicas”. “Traduzindo: “doença do fígado gerada por substâncias químicas”, explica Ada Pontes Aguiar, médica da Universidade Federal do Ceará que participou das investigações sobre a morte.
Vanderlei trabalhava com os agrotóxicos da multinacional norte-americana Del Monte Fresh Produce. A maior vendedora de abacaxis do mundo. Por mais de três anos, foi o responsável por estocar, pesar e transportar esses produtos dentro da fazenda da empresa, na região rural de Limoeiro do Norte, no Ceará.
Dez anos depois, Gerlene ainda se abala ao narrar os sintomas de falência do corpo do marido. Sua respiração fica curta, as mãos tremem. Seu filho, hoje com 11 anos, não esconde a ansiedade. Faz mímicas para a mãe encerrar a entrevista, reclama de dor de cabeça.
Mas detalhar o quadro clínico de Vanderlei foi o que fez a história dele virar um marco. “O caso é icônico, foi a primeira vez que se conseguiu mostrar evidência científica, dentro de um processo judicial, ligando o agrotóxico ao desenvolvimento da doença que levou a morte de trabalhador”, afirma Ranielle Carolina de Sousa, pesquisadora da Universidade Federal de Goiás, onde faz pesquisa de doutorado sobre a atuação do judiciário em conflitos envolvendo agrotóxicos.
Ao contrário de quando o trabalhador passa mal depois de uma contaminação intensa, são raros os casos em que a medicina demonstra o efeito do contato prolongado. A falta de produção científica é um dos grandes gargalos nessa área no Brasil, deixando milhares de trabalhadores rurais expostos a um impacto desconhecido.
Sousa explica que as pesquisas são produzidas a pedido da empresa interessada em usar a substância: um estudo que avalia os riscos da intoxicação. Mas esse estudo é feito em ambiente controlado, com apenas um ingrediente, cenário bem diferente da rotina nas fazendas.
Como funcionário do almoxarifado, Vanderlei tinha contato diário com diversos químicos. Eram 13 os agrotóxicos usados nessa fazenda em 2006, um ano antes da sua morte, quando a Del Monte entregou a lista à secretaria estadual do meio ambiente. “Ou seja, ele estava em contato com uma composição múltipla de agrotóxicos, não há estudo que preveja isso”, afirma Sousa. “Vanderlei é prova que essas pesquisas não dão conta da realidade”.
Foi justamente esse o ponto explorado pela Del Monte, que entrou com dois recursos na Justiça do Trabalho para negar a sua responsabilidade sobre a morte do trabalhador. O principal ponto da defesa era o argumento de que não havia evidência científica provando a relação de causa e efeito entre a doença de Vanderlei e sua atividade na empresa. Procurada diversas vezes pela reportagem, por email e telefone, a empresa optou por não responder as perguntas enviadas.
Investigação inédita
Para chegar ao laudo que levou à condenação da Del Monte, a equipe médica teve de descartar todas as outras possíveis causas para a falência do seu fígado. Foi um diagnóstico por exclusão. “Vanderlei era jovem, saudável e não bebia. Não havia outra explicação”, afirma a médica Aguiar. “Todos os outros diagnósticos foram descartados, só sobrou o agrotóxico”.
Para chegar à inédita sentença, que reconheceu a “existência do nexo causal entre a atividade exercida pelo obreiro e a patologia que causou sua morte”, foi preciso produzir uma ampla investigação médica. A equipe levantou o histórico de Vanderlei, seus hábitos pessoais e práticas no trabalho. Além de recuperar os exames e os diagnósticos que ele recebeu durante a internação.
Dificilmente a família de um trabalhador rural consegue mobilizar tantos esforços. O levantamento só foi possível porque, além de ser internado em um hospital universitário, Vanderlei passou a ser monitorado pelo núcleo Tramas, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Ceará que se dedica a estudar os impactos dos agrotóxicos na região. O núcleo foi criado um ano antes da morte de Vanderlei, em 2006.
Quando ele adoeceu, havia uma equipe pesquisando justamente a contaminação dos trabalhadores no cultivo do abacaxi na região. A pesquisa colheu exames de funcionários das grandes empresas e visitou as instalações da Del Monte. Do total de pesquisados, 48% apresentaram alterações hepáticas. Ou seja, quase a metade dos exames de sangue dos trabalhadores indicaram alguma anormalidade para as funções do fígado.
Desde então, foram vários os estudos que apontaram para a contaminação dos trabalhadores do local, assim como do ar e das águas que abastecem a região. Em 2009, o órgão estadual de gestão de recursos hídricos encontrou agrotóxicos em 60% das amostras. No ano seguinte, pesquisa da universidade federal encontrou químicos em 100% das amostras colhidas, cada uma delas com de 3 a 10 ingredientes ativos diferentes.
Hoje, quem pode, compra água mineral. Não só nas comunidades rurais que rodeiam as plantações, mas também na cidade de Limoeiro do Norte. “Não tome água na casa das pessoas”, foi uma das tristes recomendações que ouvimos ao visitar o local.
Como muitos, Gerlene conhece os riscos de beber da torneira – ela tem apenas um filtro em casa, mas que não dá conta dos agrotóxicos. A viúva não pode comprar água mineral todos os dias. “É colocar na mão de Deus e beber a água que tem, que a gente não vai morrer de sede. Nem de fome”, ela diz, lembrando que gostaria de poder comprar alimentos sem agrotóxicos para o seu filho.
Devido aos anos em que conviveu com o marido, Gerlene desenvolveu uma rara consciência crítica sobre os riscos dos alimentos “mais perfeitos”. Como todos os funcionários da empresa, as vezes Vanderlei ganhava as frutas cultivadas ali. Levava para casa, mas não deixava a esposa comer, muito menos o filho de um ano. Preferia que a fruta fosse jogada fora. “Só eu sei o que tem aí dentro”, lembra a viúva sobre a resposta do marido quando ela questionava porque desperdiçar um abacaxi tão bonito. “Era grande, bem grande mesmo”, ela ressalta, braços estendidos para desenhar o tamanho da fruta.
Por isso, hoje a viúva prefere escolher as menores frutas no mercado – sob protestos do filho. Ela não pode investir na compra de produtos orgânicos. Embora tenha ganhado o caso na justiça, Gerlene ainda não recebeu a indenização da Del Monte.
Do sertão para o mundo
Cravada no sertão do Ceará, a Chapada do Apodi tem solo generoso em nutrientes. A riqueza local, somada a um farto programa de isenções fiscais e à construção de um canal de irrigação, foram os fatores que atraíram grandes exportadoras ao local, entre elas a norte-americana Del Monte.
É muito provável que as frutas plantadas no local já tenham passado pela sua mesa, pois são enviadas para mercados de diversas cidades do país. As maiores e mais perfeitas vão para a Europa e Estados Unidos.
Em seu site, a multinacional apresenta o portfólio: são 15 fazendas e sete mil trabalhadores produzindo frutas e legumes para consumo em mais de 100 países. Mas a logística não funcionou para amparar a família do funcionário doente, que teve de ser internado na capital. Com o marido a 5 horas de distância, Gerlene tinha que se adaptar às caronas da empresa. “Eles levavam na hora que tinha alguém indo fazer serviço em Fortaleza”, ela diz.
Ainda amamentando o filho, e sem saber que perderia Vanderlei tão rápido, foram poucas as vezes que ela conseguiu se encaixar no esquema. Um detalhe na logística da multinacional, um arrependimento para a vida da viúva.
O número de empregos criados na região também foi explorado pela defesa da Del Monte no processo movido por Gerlene. “É um argumento que não tem nada a ver com a questão”, afirma Francisco Cláudio Silva, advogado do caso. “Na minha visão, é quase uma chantagem com a sociedade. Como se uma coisa justificasse a outra”.
O argumento parece “tosco”, nas palavras do advogado, mas pode surtir efeito. Embora veneno seja o nome popular para agrotóxicos na região, o assunto é tabu. Tanto na cidade de Limoeiro do Norte quanto nas comunidades rurais, as portas se fecham quando se introduz o tema. A reportagem conversou com diversos trabalhadores e familiares, que abrem a porta e falam sobre diversos temas, mas fecham o semblante quando o assunto é agrotóxicos.
Vivendo um período de seca há sete anos, as empresas de fruticultura estão cortando postos. Quem já foi demitido teme nunca mais conseguir uma vaga. Quem está empregado não quer estar no lugar do demitido. Não é um bom momento para reivindicações.
Esta reportagem faz parte do projeto Por Trás do Alimento, uma parceria da Agência Pública e Repórter Brasil para investigar o uso de Agrotóxicos no Brasil. A cobertura completa está no site do projeto.