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O Pantanal das alturas

15 minutos de leitura
(Créditos: Arquivo Ecoa)

Via UOL

Deixamos Corumbá tardeando. Empeixado e cor de chumbo, o Rio Paraguai flui entre árvores com sono…”

Nossa partida em direção à Serra do Amolar, em um dos primeiros roteiros de ecoturismo para esta região lindamente inóspita do Pantanal, bem poderia ser descrita assim, com a poesia do saudoso Manoel de Barros (1916-2014).

Em seu “Roteiro para uma excursão poética no Pantanal”, do “Livro de Pré-Coisas” (1985), o poeta mato-grossense brinca com as palavras para descrever o cenário de aparente monotonia de sua terra natal. Para nosso grupo de nove viajantes, de Corumbá até a Serra do Amolar são cinco horas navegando em meio a céu, mata, vento e rio, como diria Manoel, “em lombo de água”.

Ao fim da jornada rio acima, um Pantanal diferente nos dá as boas-vindas. Uma muralha montanhosa em forma de pedra de amolar se ergue por trás da vasta planície pantaneira. Estamos na terra de pescadores ribeirinhos onde basta caminhar ao alto da montanha para contemplar o raro horizonte do Pantanal visto das alturas.

A chegada ao pé da serra

Os homens deste lugar são mais relativos a águas do que a terras”

Quando a lancha rápida atraca perto das palmeiras acuris da Reserva Acurizal, nossa base ao longo dos próximos cinco dias, o cênico entardecer do Centro-Oeste já avermelha a Serra do Amolar. O grupo de anfitriões acolhedores que nos leva da beira-rio dessa base científica aos seis quartos recém-adaptados como lodges para turistas dão uma mostra de um dos diferenciais dessa viagem: o contato com a comunidade.

Que não se espere encontrar aqui, porém, o pantaneiro celebrizado 30 anos atrás pela novela Pantanal — que aliás terá um remake em 2022. Em vez de peões circulando a cavalo em fazendas de gado alagáveis em parte do ano, neste Pantanal montanhoso à beira do Rio Paraguai o habitante é pescador e lida com água o ano todo. “Os homens desse lugar são uma continuação das águas”, bem define Manoel de Barros no livro que me acompanha na viagem.

Como veríamos ao longo dos passeios, o barco é meio de transporte para tudo. Desloca passageiros nas chalanas cantadas por Almi Sater. Leva crianças para escolas distantes e mantimentos para todo canto. E é veículo de trabalho dos pescadores profissionais e também de amadores, uma vez que o turismo de pesca se estabeleceu nesses arredores de Corumbá há três décadas.

Crédito: Arquivo Ecoa

Caminhada entre resquícios do fogo

No Pantanal ninguém pode passar régua. A régua é existidura de limite. E o Pantanal não tem limites”

O nascer e o pôr do sol são horas sagradas de contemplação nos 220 mil quilômetros quadrados do Pantanal, que se espalha por Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Bolívia e Paraguai. Por isso ninguém reclama de acordar de madrugada todo santo dia para admirar o amanhecer. Nosso despertar vem acompanhado do canto escandaloso do arancuã, ave típica que “abre as manhãs” pantaneiras, nas palavras do poeta das pequenas grandes coisas.

Passado o êxtase da alvorada em meio ao canto de muitos outros pássaros, partimos para um trekking de 12 quilômetros rumo a uma piscina natural na mata. Nosso guia Adriano Kirchner é o cuidador de uma das cinco reservas particulares que desde o ano 2000 integra a rede de proteção da Serra do Amolar.

Ele passa as mãos nas árvores que viraram carvão e mostra o estrago do incêndio de 2020. “Foi triste ver a fauna e a flora morrendo em chamas,” conta Adriano, um dos moradores que atua na Brigada Alto Pantanal.

Em 2021, os incêndios voltaram fortes mas não chegaram à Serra. “Ainda bem que a natureza se regenera”, celebra Adriano, exibindo as novas árvores que brotaram na trilha Zogue-Zogue. O caminho foi batizado em homenagem a uma espécie endêmica de macaco comum no pedaço, mas que não chega a dar as caras para nós.

Aventuras no Pantanal da Serra

Quando meus olhos estão sujos da civilização, cresce por dentro deles um desejo de árvores e aves”

O banho nas águas geladas da piscina natural, ao fim de duas horas de trekking, é um bálsamo para amenizar o calor pantaneiro quando o sol está alto. Na volta, regressamos por outro caminho em bicicletas. Elas costumam ser levadas até um ponto do percurso por uma espécie de jipe sem capota, que vira o transporte estratégico para quem cansa de andar e pedalar.

A vocação da Serra do Amolar para atividades esportivas ao ar livre é reforçada no dia seguinte. É quando encaramos o trekking ao alto do Morro do Cará-Cará a partir da reserva vizinha, Eliezer Batista (batizada em homenagem ao antigo proprietário da terra, o pai do empresário Eike Batista).

A Trilha Morrinhos tem apenas seis quilômetros, mas desafia com uma subida íngreme no final (e felizmente sombreada). Lá do alto da para ver, de uma altitude de 250 metros, a vastidão do Amolar e do Paraguai, esse rio que “se entedia de tanta planura, de tanta lonjura, de tanta grandura”, como define Manoel de Barros.

Com mais de 100 trilhas em seus 80 quilômetros de extensão e altitude de cerca de 900 metros, a Serra do Amolar é um convite a caminhadas mais longas — como durante o Mundial de Corridas de Aventura, que cruzou a serra em 2015. Uma travessia de 48 quilômetros leva quatro dias para ser percorrida.

Flutuação em águas cristalinas

Parece uma gema de ovo o nosso por do sol do lado da Bolívia. Se é tempo de chover desce um barrado escuro por toda a extensão dos Andes e tampa a gema”

Se as manhãs na Serra do Amolar são o melhor período para caminhar e pedalar, as tardes se mostram o horário mais propício do dia para observar a fauna. Capivaras, macacos, ariranhas, lontras, tuiuiús e colhereiros surgem enquanto navegamos pelo Rio Paraguai e seus corixos — como são chamados os braços de rio que serpenteiam mata adentro.

Tanto no passeio para a cênica Baía Gaíva, que faz fronteira com a Bolívia, quanto na viagem para as águas do Parque Nacional do Pantanal, na tarde seguinte, paramos para observar alguns dos 42 pontos com surpreendentes inscrições rupestres da região — como as do Complexo Arqueológico do Morro do Cará-Cará, com 3 mil anos.

Na esticada ao Rio-Paraguai-Mirim, diferente das águas cor de chumbo do Rio Paraguai, um trecho de águas incrivelmente cristalinas faz lembrar os rios de Bonito, consagrado destino de ecoturismo do estado. É onde boiamos e temos a deliciosa sensação de flutuar e ser levados pela lenta correnteza do riacho, acompanhados de perto pela lancha que nos segue.

Confesso que, a princípio, estávamos receosos de mergulhar no mesmo rio onde vimos jacarés de todos os tamanhos e onde pescar piranha é parte da rotina. Mas confiamos que estávamos em águas seguras e foi incrível.

Imersão na comunidade local

As pessoas são cheias de prenúncios: chegam de ver pregos nadar e bugio pedir a bênção”

Por do sol na Serra do Amolar (Crédito: Jean Fernandes/ Arquivo Ecoa)

Nas longas horas em que se viaja pelo Rio Paraguai e seus afluentes, é surpreendente notar como não há povoados, de fato. Só uma casinha aqui e outra bem distante acolá, o que torna qualquer visita uma experiência marcante para o anfitrião e o forasteiro. Tivemos verdadeiras aulas de cultura e realidade pantaneira em duas paradas ao longo da nossa exploração fluvial.

Na Escola Jatobazinho, a 92 quilômetros de Corumbá, conhecemos a escola-modelo em que um grupo de 61 crianças tem o privilégio de cursar o Ensino Fundamental sob os cuidados do Instituto Acaia Pantanal, idealizado pela família Bracher, de banqueiros paulistas. As crianças estudam em regime de internato de segunda a sexta-feira e têm aulas até de gastronomia. Com energia solar, a estrutura inclui brinquedoteca e biblioteca com 9 mil títulos.

Em outra parada, visitamos a Barra do São Lourenço, onde algumas das nove moradoras artesãs apresentam, aos poucos viajantes que chegam, os cestos e outras criações feitas com fibras de aguapé, vegetação comum nas margens dos rios. “Meu sangue é meio quilombola e meio guató”, diz, referindo-se à etnia indígena nativa, a artesã Leonida de Souza, conhecida como Dona Eliane. “Sou parte desse lugar, me sinto como essa árvore”, poetiza, no melhor estilo Manoel de Barros.

O encontro com a onça

Sente-se pois então que árvores, bichos e pessoas têm natureza assumida igual. Todos se fundem na mesma natureza intacta. Sem as químicas do civilizado. O velho quase-animismo”

É em uma dessas saídas de lancha para observar a fauna que acontece a maior surpresa da viagem. “Uma onça!”, quebra o silêncio outro Manoel, o da Silva, piloto do barco, já reduzindo os motores. O susto é tamanho que nem dou conta de pegar a câmera (a imagem acima é de André Zumak, que fotografa esse mesmo grupo de onças para o programa Felinos Pantaneiros do Instituto Homem Pantaneiro – IHP).

Em segundos, a pintada que estava tomando sol à margem do rio rapidamente se refugia e some na mata. Que emoção é avistar, pela primeira vez na vida, o maior felino das Américas solto na natureza.

Tanto o barqueiro Manoel quanto o guia Adriano já tinham, é claro, suas próprias histórias de encontro com a mítica fera do Pantanal.

No incêndio de 2020, eles ajudaram a resgatar duas onças com patas queimadas. Uma delas ganhou o apelido de Jou Jou em homenagem a Juana Huampo, cozinheira boliviana responsável pelas delícias que comemos na Reserva Acurizal, muitas vezes em mesas dispostas ao ar livre, sob o céu incrivelmente estrelado.

No jantar antes da viagem de volta, Jojô, a cozinheira que recentemente virou também brigadista, conta como cuidou da onça ferida. “Não tive medo”, diz a guerreira que alimentou mais de 100 combatentes do fogo na queimada do ano passado. Nossa última noite segue entre causos pantaneiros deliciosos da apaixonante Serra do Amolar, esse Pantanal ainda tão pouco conhecido na poética terra de Manoel de Barros.

Porque a maneira de reduzir o isolado que somos dentro de nós mesmos, rodeados de distâncias e lembranças, é botando enchimento nas palavras”

 

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