Via Folha de São Paulo
O céu amanheceu vermelho na manhã deste sábado (15) na capital argentina. A razão da cor alterada e do forte cheio de fumaça que os portenhos sentiam vinha de Canning, uma localidade na província de Buenos Aires que abriga casas de veraneio. Os bombeiros lutaram cinco dias contra as chamas para conter o incêndio, que não deixou feridos.
Esta foi a semana mais quente que já viveu a Argentina desde 1906, quando começaram as medições oficiais. O Serviço Meteorológico Nacional informou que a madrugada de sábado (15) registrou 30°C em Buenos Aires, a maior temperatura mínima da história.
A Organização Meteorológica Mundial, vinculada às Nações Unidas, afirmou que a situação da Argentina será crítica neste verão e alertou as autoridades para que “a onda de calor não afete a saúde, a distribuição de água e energia, além da agricultura”.
Em Córdoba, onde nos últimos anos vêm-se registrando grandes incêndios, as autoridades esvaziaram a localidade turística de San Marcos Sierras. Os bombeiros contam que tiveram dificuldades para controlar o fogo devido à temperatura acima de 40°C e aos fortes ventos, que estenderam a amplitude da região atingida pelas chamas.
Em Mar del Plata, região turística na costa argentina, 27 focos de incêndio ocasionaram internações de pacientes com problemas respiratórios por conta da ingestão de fumaça. Desses focos, seis continuavam ativos. Foram registrados, também, pontos de incêndio na região de Bariloche, Entre Ríos e Corrientes.
Em Buenos Aires, as temperaturas permaneceram altas durante toda a semana, com mínimas de 26°C e máximas de 46°C. O calor provocou diversos problemas, como a falta de água na região da capital e no “conurbano” (populosa periferia da cidade) e cortes de luz que chegaram a durar de 10 horas a vários dias.
Na terça-feira (11), 700 mil pessoas ficaram sem energia e sem água na região metropolitana. Neste sábado, 35 mil ainda estavam às escuras. A fumaça dos incêndios atrapalhou também a visibilidade do Aeroparque Jorge Newbery, que fica na cidade de Buenos Aires, e causou atrasos em pousos e decolagens.
“As ondas de calor que estamos tendo na Argentina estão ficando mais recorrentes e mais fortes, acompanhadas por secas e inundações. Todos esses fenômenos tendem a ser mais intensos. São provocadas pela mudança climática e pela ação do homem. No caso argentino, por conta do avanço da fronteira agrícola sobre a área verde que originalmente havia no país”, diz à Folha Enrique Viale, fundador da Associação Argentina de Advogados Ambientalistas.
O desmatamento dos bosques naturais argentinos de modo sistemático teve início nos anos 1970, acelerando-se nas últimas décadas, por conta dos bons preços da soja no mercado internacional. “A corrida pelo desmatamento para plantar soja disparou nos anos 1990, quando o governo autorizou a produção da soja transgênica. Para que se tenha uma ideia, a província de Córdoba tem hoje apenas 3% da cobertura verde que tinha originalmente”, diz Viale.
Como a soja é um produto que precisa de pouca mão de obra, a desertificação em várias províncias tem sido também humana. Milhares de pessoas têm deixado essas regiões para se somar ao cordão de pobreza das grandes cidades. “Isso não é sustentável. Qualquer plano de governo regional tem de levar em conta a necessidade de manter a diversidade das produções locais, a dinâmica da economia das pequenas e médias cidades”, afirma Viale.
A desertificação da Argentina vem sendo mais intensa em duas regiões. Na Patagônia, o desmatamento já data de meados do século 20, com o plano de aumentar a área de criação de ovelhas, logo depois, também para a produção agrícola. No norte, na região conhecida como Gran Chaco, que se espalha também por Brasil, Bolívia e Paraguai, mas tem 60% de seu território na Argentina, também houve grande investimento na produção de soja e desmatamento de bosques, causando grandes transformações climáticas.
Nos dois casos, parte importante da população rural que teve de deixar seus cultivos e partir para grandes cidades é formada por povos nativos, os mapuches na Patagônia e os wichís, no norte, que perderam suas terras para a produção em escala industrial de soja.
“Na região do Gran Chaco está nosso maior problema. Sem bosques, não há chuva. Sem outras plantações que não a de soja, durante meses as terras ficam expostas ao sol forte e a erosão. A degradação é muito rápida. Tudo está interconectado”, diz à Folha o biólogo Matías Mastrangelo, do Conicet (Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas).
“Se chove pouco na Amazônia, virão poucas correntes de nuvens do norte e haverá ainda menos precipitações para o sul. E nas cidades, por mais que a seca no interior pareça algo distante, não é, pois as grandes secas, ondas de calor, inundações estão relacionados ao sistema como um todo.”
“A população urbana terá de se dar conta, senão por esses eventos climáticos dramáticos, pela afluência de pessoas que fogem das tragédias em outras partes do país, de produtos que passam a faltar nos supermercados. Outra tragédia que estamos vivendo, e que está relacionada a tudo isso é a falta de nevascas na cordilheira, o que leva os rios que nascem lá a secar. Então, cidades e plantações inteiras não têm água, não podem ser irrigadas, e portanto não chove, e a temperatura aumenta. Há vários povoados desabitados porque os rios secaram e as pessoas foram embora”, declara Mastrangelo.
“Pressão social contra os políticos é a única maneira que vejo de fazer com que as coisas sejam mais equilibradas com o cumprimento da lei. Mas por ora, salvo alguns grupos de jovens, mais conscientes com o ambiente, não vejo a sociedade preocupada como um todo”, diz Mastrangelo.
“Aí você liga a televisão numa semana como essa e vê as dicas dos especialistas para lidar com o calor, tomar muita água, não fazer esforço físico, manter os lugares arejados, mas ninguém fala do problema de fundo, que é mudar o sistema de produção e de relação com a natureza. É como no filme ‘Não Olhe Para Cima’. O meteoro vem, já está vindo”, conclui Viale.