Por Laís Costa, Fórum Mato-Grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad).
Encontrar Pacu, Pintado e Jaú no leito do rio Cuiabá é tarefa rara até para quem sobrevive da pesca. Não falta destreza ou materiais adequados a quem se dedica à atividade: essas espécies já estão quase extintas e o cenário pode ficar ainda pior, caso a Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema) aprove os licenciamentos de seis Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) previstas para serem instaladas nos municípios de Nobres, Rosário Oeste, Jangada, Acorizal, Várzea Grande e Cuiabá.
As usinas Angatu I, Angatu II, Iratambé I, Iratambé II, Guapira II, e Perudá estão planejadas para funcionarem na parte média do rio Cuiabá e poderão trazer impactos irreversíveis para as comunidades ribeirinhas e urbanas, para o ecossistema, caracterizado por espécies de peixes migratórios e, ainda, influenciar diretamente o Pantanal. Para a ecóloga Luciana Ferraz, representante do Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas (FONASC), “essas PCHs são de fio d’água, elas desviam o curso do rio e utilizam uma quantidade de água para gerar energia. Enquanto as Usinas Hidrelétricas (UHEs), como no caso de Manso, formam grandes represas. Mas, se observarmos uma PCH na sequência da outra, o impacto é sinérgico e negativo. Essas PCHs desviariam todo o curso do rio no Médio Cuiabá”.
De acordo com Luciana, com a implantação da Usina de Manso, em 1999, o rio Cuiabazinho, com nascente na Serra Azul, em Rosário Oeste, passou a ser o principal suporte pesqueiro para o rio Cuiabá porque um trecho do outro afluente, o rio Manso, foi alagado pela barragem. Com as seis PCHs, cada uma representaria um obstáculo para a descida e subida dos peixes em direção às nascentes que são mais de 30.
“Nós observamos a ruptura da migração dos peixes causada por esse empreendimento já posto. Vimos o empobrecimento das populações ribeirinhas, a redução da capacidade de captura por não ter a disponibilidade de peixe no rio como era antes da usina. Já temos uma experiência na bacia que não foi salutar. Se for analisar a aptidão da bacia do rio Cuiabá ela só comporta energia fotovoltaica-solar. Além disso, precisamos ressaltar a importância desse rio como fonte de água potável para a região metropolitana de Cuiabá”, diz a pesquisadora.
Herman Oliveira, secretário executivo do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Formad), acredita que a sociedade precisa ser informada dos ônus advindos das instalações dos empreendimentos hidrelétricos e aponta um outro caminho para alterar a matriz energética atual. “A produção de energia elétrica é uma mercadoria, umacommodity. Não é um bem social e nem um serviço público disponível, é um negócio, e a sociedade é quem paga a conta. Mato Grosso poderia migrar e reaproveitar a estrutura de transmissão existente para produzir energia fotovoltaica que também tem impacto, mas para a relação de custo e benefício socioambiental gera menos perdas para a sociedade do que a matriz hidroelétrica”, afirma.
Pesca imprevisível
Quem tem costume de pescar sabe que o ecossistema de um rio é afetado drasticamente por mudanças que interrompem o curso, a conectividade, a vazão e a qualidade da água. Para o pescador profissional Elias Rodrigues do Vale, da colônia de Várzea Grande, desde que a Usina de Manso surgiu, ele também precisou mudar a rota para encontrar os peixes. “Além disso, também tem muita poluição nos arredores de Cuiabá e Várzea Grande e os peixes estão indo para outros rios. O pescador tem que pescar o que o rio oferece no momento. Hoje em dia eu costumo ir para o rio São Lourenço. Consigo pescar Pacu-peva, Piau, Piraputanga, Pacu e às vezes Pintado, mas nessa época do ano a água está mais clara e as piranhas capturam antes de nós, pescadores”, diz.
O pescado garante a renda da família de Elias há mais de três décadas. “Eu tenho 48 anos de idade e vivo o dia a dia desse rio desde os oito quando saía para pescar com minha mãe. O nosso rio Cuiabá era o mais rico de peixe no estado de Mato Grosso. Olha o que fizeram com ele! E não foi pescador, não.” Ele vende os peixes no Mercado do Porto, e alguns para pessoas que fazem encomendas. Dos doze meses do ano, o pescador dedica ao menos oito deles à pesca e passa algumas semanas em casa, com a família.
“Após Manso, os pescadores não têm mais a garantia do peixe. Com as instalações dos empreendimentos, além do desmatamento de algumas áreas, se perderam os territórios pesqueiros, e isso vai acontecer em seis regiões do rio Cuiabá, caso instalem essas PCHs. Hoje em dia tem poucos pontos de pesca gratuitos para os pescadores artesanais descerem de barco e acessarem o rio. Um ponto de pesca pode custar R$ 150,00 por dia. É muito caro para o pescador, que ganha, em média, pouco mais do que um salário mínimo por mês”, afirma Luciana, que também atua no Conselho de Pesca (Cepesca) de Mato Grosso.
Elias conta que acessa o rio São Lourenço pela chácara de um irmão. No entanto, reitera a dificuldade para se manter no rio por tantos meses driblando todo tipo de imprevisto. “O pescador profissional não tem lugar definido e nem espécie preferida. Eu vou para o rio e o que consigo pescar eu vendo para honrar os meus compromissos”, afirma. Em 2020, ele e outros colegas pescadores paralisaram a pesca por mais de 15 dias e atuaram no combate ao incêndio no Pantanal.
Impactos das PCHs na Bacia do Rio Paraguai e Pantanal
Conhecedor das águas mato-grossenses e dos ecossistemas, o pescador reafirma o caráter dinâmico da pesca e a necessidade de adaptação aos novos cenários. No entanto, ele descreve as mudanças no dia a dia das comunidades ribeirinhas do Pantanal, após a implantação dos empreendimentos hidrelétricos e outras mudanças colocadas em prática nos leitos dos rios pelos quais navega. “Antes o Pantanal tinha quase seis meses de cheia. Em dezembro começava a encher, e em abril a água ia abaixando. As folhas formavam uma camada de sedimentos, tipo uma esponja, que deixava o solo encharcado e liberava água durante a seca. Tinha região que você pisava e parecia um colchão d’água.”
Ano passado, Elias combateu a destruição, mas presenciou a morte de muitos peixes, por conta da decoada, intensificada pelas cinzas deixadas pelo incêndio. Com as chuvas, a matéria orgânica carbonizada é levada pela água até os rios, baías e lagoas e no processo de decomposição a oxigenação da água diminui, causando a morte dos peixes por asfixia.
O pescador também relata outra situação presenciada em uma das baías do rio São Lourenço. “Alguns fazendeiros estão fechando as bocas de vazantes. Quando o rio enche, em uma certa altura ele empurra a água para dentro do campo, e é nessa parte que estão aterrando para o gado ter mais tempo no pasto. Aquele sedimento não fica mais encharcado para aguentar o período de seca. Também são nas vazantes que surgem muitas vidas para o rio. Quando o peixe desova, o alevino procura boca de baía para poder comer plâncton. Como ele nasce com uma reserva alimentícia, ele busca a baía, se ele não achar, ele vai morrer no rio ou outro predador vai comê-lo.”
Os rios Cuiabá e São Lourenço fazem parte da Bacia do Alto Paraguai, formadora do Pantanal. Na imagem, a área em vermelho foi identificada pela Agência Nacional das Águas (ANA) como significativa para alteração hidrológica e de qualidade da água, já que a implantação de empreendimentos hidrelétricos traria conflitos locais ou regionais, a exemplo da redução da produtividade dos peixes nos ecossistemas e, consequentemente, prejuízo econômico e cultural para a pesca profissional, turística ou difusa, a ocasional.
Elias ressalta o principal argumento dos pesquisadores que estudam os impactos na bacia: a diminuição da conectividade dos rios, seja com empreendimentos ou aterros, significa menos áreas livres para desova dos peixes. Consequentemente, há uma diminuição da reprodução das espécies e do estoque pesqueiro que impacta diretamente na pesca e no turismo preexistente. “O nosso peixe é migratório. Se o peixe nasce no Cuiabá, ele vai reconhecer essa corrente, a água, a temperatura. Esse peixe que sobe e desova, mas não encontra a baía para se desenvolver, se ele descer para o Pantanal, dificilmente ele vai subir para o rio São Lourenço ou para o Paraguai. A tendência é ele desovar onde ele nasceu. Qualquer espécie migratória que tem o seu caminho cortado, ela vai ficar desnorteada”, afirma o pescador.
Petição online requer cancelamento das novas PCHs
Após identificarem que os licenciamentos das PCHs estão em análise na Sema, pescadores, entidades socioambientais e movimentos ambientais representados pela Rede Pantanal, Coalizão pela Proteção Permanente de Rios no Brasil, Fórum Nacional da Sociedade Civil nos Comitês de Bacias Hidrográficas (FONASC),Humedales Sin Fronterase Observatório Pantanal, criaram a campanha “Rio Cuiabá livre!” e uma petição online que requer a não aprovação das usinas.
Luciana afirma que a campanha também foi motivada pelo desinteresse do governo estadual em atender as recomendações da ANA, de representantes do Conselhos de Pesca, de Recursos Hídricos (Cehidro) e Meio Ambiente (Consema), e pesquisadores quanto aos impactos dos empreendimentos no ecossistema e na sociedade. “A Lei Nacional de Recurso Hídrico diz que as águas são de uso múltiplo, para todos os usuários da bacia. Não é interessante um único usuário do setor hidrelétrico ficar com todo o potencial da bacia para ele, em detrimento de uma única atividade, causando problema para todos os demais usuários”, argumenta.
A petição está disponível no site da Avaaz e já tem mais de 900 assinaturas. Ela será encaminhada à Sema, ao final da campanha. (https://secure.avaaz.org/community_petitions/po/mauren_lazzaretti_secretaria_de_estado_de_meio_amb_salve_o_rio_cuiaba_e_o_pantanal/?cxiXtsb&utm_source=sharetools&utm_medium=copy&utm_campaign=petition-1224495-salve_o_rio_cuiaba_e_o_pantanal&utm_term=xiXtsb%2Bpo)
Imagem de capa: rio Cuiabá. Fonte: Prefeitura Municipal de Cuiabá.