Texto originalmente publicado em: 24/08/09
O tema, sempre presente nos planos governamentais do Brasil, vem ganhando cada vez mais força e importância, principalmente nos tempos atuais, quando a busca por alternativas às ações que promovam o aquecimento global está cada vez maior. Como ações energéticas verdes, o Brasil vem, segundo especialistas, erroneamente optando por construir hidrelétricas, principalmente na Amazônia – região onde existe a maior quantidade de rios do mundo.
Um exemplo é o Complexo do Rio Madeira (RO) que, com suas duas usinas – Jirau e Santo Antonio – promete custar muito mais do que o valor financeiro a ser gasto pela obra: desmatamento, aumento de doenças, expulsão de ribeirinhos, morte de peixes e, consequentemente, devastação de comunidades indígenas que dependem deste alimento para sobreviver. Esses e outros custos, no entanto, não serão pagos apenas por brasileiros. A Bolívia também terá participação no rateio das despesas deste empreendimento, tido por muitos como um dos maiores desastres do mundo.
Impactos
De acordo com a advogada da Fórum Boliviano sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Fobomade) Evelyn Mamani, apesar de o governo brasileiro insistir no discurso de que não haverá impactos negativos na Bolívia, as usinas comprometerão o país vizinho. “A Comissão técnica do Madeira – encabeçada pelo Ministério do Meio Ambiente de nosso País – demonstrou em duas reuniões binacionais que há sérios erros na avaliação dos impactos dessas usinas e a demonstração técnica na verdade transpassa para a Bolívia e Peru”, afirma.
Dentre a série de consequências negativas que as barragens vão causar à Bolívia, três grupos foram estudados com mais profundidade: impactos hidráulicos – relacionados aos níveis de água e riscos de inundação; peixes e grupo pesqueiro, e qualidade da água e mercúrio.
Para Jorge Molina, responsável pelo estudo que analisou os impactos hidráulicos, por efeito de Jirau, haverá uma superelevação do nível da água até o trecho binacional do rio Madeira, ou seja, a região compartilhada entre Bolívia e Brasil. Se for considerada os sedimentos – que são depositados no fundo o rio – os níveis da água no trecho binacional serão elevados em até 6 metros.
“Isso é tão sério que depois o Ministério de Minas e Energia do Brasil, o governo brasileiro, contratou consultores que deram seus pareceres técnicos. Estes, sem fazer um estudo e emitindo apenas sua opinião técnica, disseram que não vai haver sedimentação. Dar uma opinião deste tipo, para nós, é dar uma opinião política. Porque, caso eles falem que haverá sedimentação, o projeto estará em perigo”, afirma Molina.
Como consequência da superelevação do rio, o pesquisador explica que haverá um aumento dos riscos de inundação. “Para um fluxo natural do rio que vem crescendo a uma máxima anual de 38 a 40 mil m³ por segundo, por exemplo, com a construção da hidrelétrica esse mesmo fluxo vai estar um a dois metros mais acima. Isso significa que o risco de inundação é maior”.
Outra consequência é a perda de energia potencial. “Para gerar energia em um trecho do rio são necessárias duas coisas: uma é o fluxo, a vazão, e a outra a queda. Então, ao aumentar e incrementar os níveis de água no fluxo binacional, tira-se a queda e, portanto, energia potencial”, afirma o pesquisador.
Estima-se que 80% dos peixes amazônicos bolivianos são migratórios e algumas espécies que têm importante valor comercial e de subsistência poderão ser afetadas. “Dentro dos possíveis impactos está a redução gradual da pesca, que pode afetar pelo menos 16 mil famílias bolivianas que atualmente vivem desta atividade”, disse Paul Van Damme, da Associação FaunAgua, outro autor dos estudos sobre os impactos das hidrelétricas na Bolívia.
De acordo com o pesquisador de ecologia aquática, Marc Pouilly, autor do estudo sobre impactos das usinas na qualidade da água, para a população os impactos relacionados à saúde pública são os mais preocupantes, principalmente quanto ao mercúrio. “Esse é o tema mais preocupante porque, neste caso, grande parte do mercúrio não será eliminada. As represas vão gerar um aumento dos processos que permite transformar o mercúrio em sua forma mais tóxica – o metil-mercúrio. Até esta data não existe nenhuma medida de mitigação a este tipo de contaminação. É uma contaminação muito viciosa que até hoje não terminamos de quantificar os efeitos sobre o meio ambiente e populações”, explica.
Segundo Pouilly, atualmente é difícil quantificar os impactos diretos. “O mais provável neste caso é que os estudos de impactos realizados não são suficientes para analisar todos os riscos. Uma análise objetiva da pertinência econômica, social e ambiental de tal projeto precisa ter uma preocupação sobre os temas mais preocupantes, como as inundações, o mercúrio, a emissão de gases de contribuem com o efeito estufa, as doenças etc.”, alerta.
Brasil e Bolívia: apenas conversas
Frente aos impactos relatados nesses estudos, a Bolívia pediu explicações para o governo brasileiro. Porém, “o Brasil mostra boa intenção de conversar sobre os impactos e chegar a um acordo. Mas, quando essa reunião foi feita [outubro de 2008] – e nós pudemos participar – o governo brasileiro somente escuta o que se expõe, mas não toma nenhuma decisão”, explica Evelyn.
“Não sei se é intencional, mas neste encontro vieram representantes de alguns órgãos como o Ibama [Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis], a ANA [Agência Nacional das Águas] que não puderam tomar decisões, nem expressar nenhum tipo de opinião. Nos encontramos num panorama em que estamos expondo, argumentando essas omissões e erros técnicos e, como resposta, recebemos a informação de que nossa apresentação será passada para as instâncias de decisão”, afirma a advogada.
Molina, que também esteve presente na reunião, disse que não houve praticamente nenhuma discussão. “A delegação boliviana apresentou suas observações, que não puderam ser respondidas pelos brasileiros. Foi simplesmente, outra vez, uma espécie de discurso brasileiro no qual se afirma que as hidrelétricas não vão trazer impactos à Bolívia e nós temos que acreditar”.
Por outro lado, o governo boliviano ainda não se manifestou. De acordo com a assessoria do Ministério de Relações Exteriores da Bolívia, essa questão ainda está em fase de discussão. De acordo com Molina, o governo boliviano, por diversas razões, não possui uma posição única. “Há pessoas que querem defender os direitos da população e se assegurar de que o país não sofra de impactos por empreendimentos de outros países. Mas também há outros que estão dispostos a negociar. Essas duas posições estão dentro do governo boliviano e não há uma só posição, por isso paralisamos nossas pesquisas”
Manifestações
Enquanto os dois governos – brasileiro e boliviano – conversam, as obras em Jirau e Santo Antonio continuam sendo feitas sem que os estudos de impactos sejam relevados. Para tentar impedir que esses impactos aconteçam, organizações bolivianas têm realizado diversos encontros para discutir o tema. “Em nossas reuniões foram convidados os representantes de diversos segmentos da sociedade e do governo e os documentos definidos nessas reuniões foram publicados e divulgados”, explica a advogada.
O último evento, o “Simpósio Internacional Avaliação de Impactos Ambientais de grandes hidrelétricas em regiões tropicais: o caso do rio Madeira”, foi realizado em La Paz, de 19 a 20 de maio. Em seu documento final, conclui-se que “os projetos hidrelétricos do rio Madeira provocarão impactos socioambientais além das fronteiras brasileiras, cuja magnitude e extensão não foram avaliadas e nem sequer consideradas pelos responsáveis do projeto. Excluiu-se arbitrariamente a Bolívia da área de influência e alcance dos estudos de impacto ambiental das represas de Jirau e Santo Antonio, provocando desta maneira que a avaliação dos impactos seja tendenciosa e incompleta”.
Depois de serem feitas conversas com o governo brasileiro e realizados eventos sobre o tema, Evelyn explica que as organizações estão tomando outra estratégia. “Estamos chegando ao momento que as ações legais internas e internacionais terão mais resultados do que as conversações que tivemos no âmbito político até agora. Essas conversas se alongam e chegam a acordos bastante insatisfatórios e nunca resolvem o problema. Então vamos atuar no âmbito legal, jurídico, tanto internamente quanto externamente, porque acreditamos que estamos num caso no qual o Estado que faz o dano é outro Estado e não podemos deixar que se inviabilizem essa responsabilidade”, diz.
Em dezembro de 2007, organizações indígenas, de trabalhadores rurais e ecologistas do Norte Amazônico da Bolívia apresentaram um pedido de medida cautelar contra a construção do Complexo do Rio Madeira afirmando que essa obra é um “atentado iminente do governo Lula aos direitos e liberdades proclamados na Declaração Universal dos Direitos Humanos”.
Nesse processo o Brasil teria descumprido princípios básicos nas relações entre países, como os de boa vizinhança entre Estados, de precaução (um país não deve tomar medidas que possam prejudicar outro), de participação (países de uma mesma bacia hidrográfica devem discutir juntos de empreendimentos nessa bacia) e de utilização eqüitativa das águas (os Estados têm soberania compartida sobre as águas).
O objetivo agora é denunciar essa situação na Corte Internacional de Haia. “Há uma série de omissões de deveres não só fundamentados em declarações ambientais, mas também em pactos assinados com relação aos Direitos Humanos em que está demonstrado que a responsabilidade pelos impactos e uma sistemática violação de garantias está nas mãos do Brasil, porque é ele o proprietário do projeto, é ele quem se beneficia do projeto e não tentou sanar os possíveis erros desde o princípio”, conta a advogada.
E continua: “temos consciência que rio Madeira, na Bolívia, está atrelado, sobretudo, à sobrevivência dos povos indígenas, inclusive a dos isolados. Não queremos chegar ao momento em que haja impactos muito graves em que pagar não vai significar que os problemas serão resolvidos. Queremos que haja uma solução adequada, que os Estados possam aproveitar seus recursos com base no respeito, no cumprimento das normas internas, nos pactos internacionais e não deixem invisíveis os impactos, principalmente os impactos às pessoas. Esse é um risco iminente de extermínio dos povos indígenas, é praticamente um genocídio”.
(Foto de capa de Wilson Dias via International Rivers)