Via Lugares Eco
Por Sílvio Andrade
O Rio Paraguai de Corumbá a Porto Murtinho, no extremo sudoeste de Mato Grosso do Sul, foi o centro de grandes conflitos envolvendo portugueses, espanhóis e indígenas guaicurus, até o final da Guerra do Paraguai (1864-1870). Ao percorrer seus 526 quilômetros, pelo caminho se encontram testemunhos da disputa pelo território, como as fortificações, e uma comunidade que ainda mantém crenças e lendas, personificando heróis e celebrando milagres.
No centro da cobiça de portugueses e espanhóis pelo caudaloso e estratégico rio e as reservas de pedras preciosas na região de Cuiabá, a fundação de Corumbá, em 21 de setembro de 1778, foi determinante para o domínio da coroa lusitana na fronteira Oeste. Pelo Tratado de Tordesilhas, essa porção do Brasil pertenceu à Espanha até o século XVI. Portugal se impôs, dizimou nações indígenas e se estabeleceu militarmente.
Para ocupar definitivamente a região, no entanto, a história nos revela os percalços das investidas portuguesas pelo controle do desconhecido, a começar pelo total abandono da região do baixo Pantanal, tomada facilmente pelos paraguaios durante a guerra. A fundação do Forte Coimbra, em 1775, foi a primeira das patacoadas. O forte acabou erguido em local errado, no Estreito de São Francisco Xavier, ao invés do Fecho dos Morros, próximo a Porto Murtinho.
Sertanista bajulador do general
Quando a capitania de Mato Grosso decidiu construir uma segunda fortificação, rio acima (norte), para impedir o avanço de tropas espanholas e indígenas pelo Rio Mondego (Miranda), o enviado da Coroa escolheu às cercanias da morraria do Urucum, próximas à foz do afluente. Fundou-se ali Albuquerque, em 1776, mas descobriu-se que não havia ponto elevado para erguer o novo forte. Albuquerque tornou-se uma vila de apoio e hoje é distrito de Corumbá e atrativo de pesca esportiva.
Finalmente, o governador e general Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, fidalgo lusitano, se convence das encostas na curva do rio e manda fundar a nova fortificação, que se chamaria Albuquerque Novo, depois Corumbá. Mandou o sertanista João Leme do Prado limpar o terreno e este, ao montar acampamento em terra agricultável na confluência do Paraguai com o Paraguai-Mirim, teve o repente de fundar Ladário, nome da cidade natal do governador em Portugal. Cidades-gêmeas, Ladário e Corumbá comemoram aniversário no mesmo ano (1778) e mês (setembro), por uma diferença de 19 dias.
Ladário foi bairro e distrito de Corumbá e ocupa uma porção ínfima dentro do território do vizinho, que se espalha por 64 mil km², sendo o 11º maior município do Brasil. É sede do distrito naval da Marinha, que sustenta sua economia. Ambos brigam pelo maciço de Urucum, onde o Rio Paraguai contorna para chegar ao Porto da Manga, na Estrada-Parque, que foi picada da expedição do sertanista Cândido Rondon, estrada boiadeira e único acesso por terra à região, até a construção da BR-262, em meados de 1980.
Museu de Rondon abandonado
O distrito da Manga foi importante porto de transbordo de gado e hoje sua pequena comunidade vive da pesca, abandonado pelo poder público. Guarda uma das relíquias dos tempos de apogeu de Corumbá e a chegada do telégrafo naqueles confins de 1900: uma casa de madeira em palafitas de aroeira, na beira do Paraguai, que seria o posto do “guarda-fio”. Havia também imóvel semelhante do outro lado do rio.
Esse “guarda-fio” instalado no início do século XX, era um ponto de apoio da rede telegráfica para monitorar a fiação de 300 metros que passava sobre o rio, em direção a Corumbá. Muitos falam que ai, lugar ermo naqueles tempos, funcionava uma agência dos telégrafos, o que não procede. A casa ainda intacta – ela registra, nos seus esteios, marcas das maiores cheias do rio – foi restaurada há alguns anos para ser o Museu do Rondon, mas Estado e Município abandonaram o projeto de 2004.
Manga também foi local de grandes saladeiros, dos quais não se tem vestígios. A região é hoje atrativo de pesca, que se estende rio abaixo até o distrito de Porto Esperança, comunidade tradicional do Pantanal, que nasceu com a chegada da estrada de ferro, na primeira década de 1900. Era uma vila próspera e movimentada com sua estação ferroviária construída em 1912. Na década de 50, o governo construiu a monumental ponte de concreto sobre o rio, hoje tombada pelo patrimônio histórico, ligando Santos a Santa Cruz (Bolívia).
Forte Coimbra, hoje destino de pesca
Antes da ponte, Porto Esperança era o ponto de transbordo de quem chegava de trem de São Paulo ou Campo Grande, que em 1914 tinha um terço da população de Corumbá. Para chegar a esta cidade, viajava-se por 134 km, rio acima, nos navios a vapor, um deles o lendário Fernando Vieira, velha canhoneira da Guerra do Paraguai adaptada para transportar passageiros em primeira classe. O Guarapuava cruzava o Paraguai entre Corumbá e Murtinho. A ligação ferroviária pelo rio em 1952 decretou o fim do comércio fluvial.
Esperança, isolado, foi ocupada por pesqueiros na beira do rio e cerca de 60 famílias ainda vivem ali, basicamente da pesca. A histórica estação foi restaurada no início dos anos 2000, mas o (novo) Trem do Pantanal não voltou a circular ali. Ao lado da comunidade, a Vale movimenta milhares de toneladas de minério de ferro, que segue em barcaças até os portos de Assunção, Argentina e Uruguai. Hoje o Rio Paraguai transporta mais de seis milhões de toneladas/ano de minério.
Do velho porto, navegando mais ao sudoeste, um novo Pantanal descortina: é o Nabileque, terra dos indígenas kadiwéus, lugar preferido dos contrabandistas de peles de jacarés, cujas cargas saíam pela fronteira desguarnecida com o Paraguai. A caça cessou no final dos anos de 1980. Algumas horas mais de barco e chega-se ao Forte Coimbra, que surge imponente na curva do rio. O local foi palco de duas batalhas, com os espanhóis e os paraguaios, e hoje guarda os restos mortais de seu construtor e herói, Ricardo Franco.
O “pedaço” da fronteira da Bolívia
Até o início dos anos 2000, morar no forte era um teste de resistência. Não havia energia elétrica, nem comunicação. Acessos apenas aéreo e fluvial, até os dias atuais. Além da corporação militar, fixou-se ali uma comunidade civil, que sofreu ameaças de expulsão pelo Exército na década passada. Estas pessoas, muitas das quais descendentes de quem lutou na guerra, vivem da pesca. Existem pousadas e o Exército abriu o forte à visitação, cujo passeio guiado inclui a misteriosa Gruta do Inferno, a terceira maior do Estado.
A região, além dos fatos históricos e a crença daquele povo no poder milagroso da padroeira Nossa Senhora do Carmo, que teria livrado os soldados brasileiros de um massacre nas duas batalhas para tomada do forte, reserva muito mais do que a beleza do bioma pantaneira. Logo abaixo, o marco da tríplice fronteira, onde a Bolívia tem seu pedacinho (48 km) de soberania pelas águas do rio, depois de perder seu litoral para o Chile e parte do Chaco para o Paraguai.
Já no território onde o rio é a fronteira Brasil-Paraguai, chega-se a pacata vila Baía Negra, reduto dos “coureiros” e passagem de peles de jacarés. Não se imagina, pela calmaria reinante, que ali guardava temidos contrabandistas do animal silvestre. Mesma sensação se tem ao passar por Forte Olimpo, um dos pontos de apoio do Paraguai nas guerras contra o Brasil e a Bolívia (Guerra do Chaco, 1932-1935), fundado em 1792, na margem direita do rio.
Porto Murtinho, do Saladero Cuê
A vila militar de seis mil moradores, hoje atrativo turístico, circunda os morros Três Hermanos e, assim como Porto Murtinho, uns 100 km rio abaixo, é cercada por um
dique contra enchentes de 4 km. Outro local que desperta a curiosidade do viajante é o estreito do Fecho dos Morros, onde deveria ter sido construído o Forte Coimbra. É um dos pontos mais altos do Rio Paraguai e atrai turistas pela visão panorâmica privilegiada que proporciona.
A chegada a Porto Murtinho é uma releitura do processo de ocupação da vasta região. Uma volta pela cidade expõe a riqueza vivida pela população no auge da erva-mate, tanino e charque, a partir de meados do século XIX. Nasceu de um porto instalado em 1892 pela nossa primeira multinacional Companhia Mate Laranjeira. Depois do declínio do mate, veio a exploração do tanino por empresas alemãs e portuguesas, empregando mais de três mil pessoas na década de 1930.
O município também viveu das charqueadas ou saladeiros, onde se curava ou secava a carne, a fim de conserva-la por mais longo tempo, produto de exportação pelo rio. Saladero Cuê, frigorífico de espanhóis, instalado no início do século XX, se destacou com a industrialização do charque pelo seu poder econômico e faz parte da memória da cidade, onde também funcionou o Saladeiro Barranco Branco. Saladero Cuê deu lugar a um hotel, cujo proprietário montou um museu que abriga um grande acervo da história da região.