Via Folha de São Paulo
Por Reinaldo José Lopes
Durante anos, um dos grandes temores do agrônomo paulista Warwick Estevam Kerr, que morreu neste sábado (15) aos 96 anos, foi o de que sua carreira de pesquisador acabasse sendo definida por um acidente que aconteceu em 1957.
Kerr tinha ido à África no ano anterior, com apoio do Ministério da Agricultura, com o objetivo de obter abelhas do continente para usá-las em projetos de melhoramento genético das colmeias nacionais. Levou quase 50 rainhas africanas para um apiário experimental em Rio Claro, no interior paulista, mas 26 das colmeias formadas pelos insetos acabaram escapando.
Bem mais agressivas do que as abelhas domésticas de origem europeia que então predominavam no Brasil, as rainhas africanas se cruzaram com os insetos que existiam por aqui e acabaram criando certo pânico, como a lenda de que eram “abelhas assassinas”.
“Eu não esperava ser capaz de dar a volta por cima”, declarou Kerr anos depois em entrevista à revista “Estudos Avançados”. “Pensava que teria uma vida desgraçada para o resto dos meus dias. Até 1978, as mulheres franziam a testa, mostravam-me para seus filhos e diziam: aquele é o homem que introduziu a abelha brava no Brasil.”
Por sorte, o pesquisador e seus colegas pelo Brasil afora conseguiram dominar técnicas de manejo das abelhas “africanizadas” deixando as colmeias afastadas de casas e de outros animais ou usando uniformes mais protegidos na hora de lidar com elas, entre outras coisas. E os genes africanos acabaram, de fato, mostrando-se mais capazes de levar a colmeias com alta produção de mel e resistência a doenças. O aparente fracasso virou triunfo.
Fascínio pela polinização
Apesar de ficar permanentemente associado às abelhas domésticas africanas, Kerr teve como campo preferencial de estudo a grande diversidade de espécies de abelhas sem ferrão nativas do Brasil, em especial as da Amazônia. Ele contava que o fascínio pelos fenômenos ligados à polinização o acompanhara desde os primeiros anos de infância no interior paulista (nascido em Santana do Parnaíba, em 1922, ele se mudou junto com a família para Pirapora poucos anos depois).
Embora tenha se formado em agronomia na Esalq (Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP), Kerr costumava dizer que era muito mais biólogo do que agrônomo, direcionando seu trabalho acadêmico para a compreensão de mecanismos biológicos básicos das abelhas nativas.
Como outros nomes importantes entre os decanos da biologia brasileira, também foi fortemente influenciado por Theodosius Dobzhansky, ucraniano radicado nos Estados Unidos que teve papel central no surgimento da biologia evolutiva moderna, fundindo a genética e a ideia de seleção natural. Entre os anos 1940 e 1950, Dobzhansky fez quatro visitas de longa duração ao Brasil, orientando alunos e fomentando novas linhas de pesquisa.
Do final dos anos 1950 aos anos 1960, Kerr teve passagens como professor pela recém-criada Unesp, no campus de Rio Claro, e pela USP de Ribeirão Preto. Com a ditadura militar, acabou sendo preso duas vezes e chegou a sofrer ameaças à sua numerosa família de sete filhos, tanto por sua atuação à frente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) quanto por denunciar, em suas aulas, arbitrariedades do regime, como a tortura de uma freira em Ribeirão Preto.
A ligação tanto com a militância política quanto com a fé não era casual, já que o pesquisador se declarava tanto cristão (embora um cristão que não acreditava no Diabo, segundo ele mesmo) quanto socialista. Nesse segundo ponto, costumava criticar pesquisadores que tentavam lucrar com suas descobertas, argumentando que o conhecimento deveria ser compartilhado com toda a sociedade.
Duas vezes diretor do Inpa (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), entre 1975 e 1979 e entre 1999 e 2001, Kerr teve a oportunidade de dar impulso ao estudo da biodiversidade da maior floresta tropical do mundo e, ao mesmo tempo, de entender melhor as abelhas sem ferrão.
Com base em sua passagem pela região, ele costumava louvar a profundidade do conhecimento dos indígenas a respeito da biodiversidade amazônica e criticar a dificuldade da indústria nacional de aproveitar essa riqueza para criar oportunidades econômicas. Mesmo depois de aposentado, continuou a colaborar com a Universidade Federal de Uberlândia.
Kerr foi membro da Academia Brasileira de Ciências e da prestigiosa Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Ele deixa seis filhos.