Algumas pessoas defendem a ideia de que criar búfalos asiáticos (Bubalus bubalis) junto ao rebanho bovino no Pantanal pode resultar em uma diminuição dos ataques de onças pintadas sobre o rebanho. Dentre os termos utilizados para incentivar esta prática, cita-se a implantação de uma “barreira de búfalos” entre áreas com onças e o rebanho bovino. No entanto, é preciso ponderar esta abordagem de uma forma mais ampla ao invés de se indicar soluções e tomar decisões baseadas em uma visão restrita do problema – como é o caso. Isto é relevante porque os impactos que podem ser causados por búfalos em áreas úmidas, nas quais são introduzidos, são consideráveis e previsíveis.
Primeiro, é preciso aceitar que não existem evidências concretas de que esta estratégia realmente leva a uma diminuição da predação. Além disso, temos que considerar o fato de que a predação de gado por onças no Pantanal atinge menos de 3 % dos rebanhos ao longo de um ano, com tendência a ser de 1% a 2%. Raríssimas são as situações em que este percentual é maior. Analisando a situação do ponto de vista econômico, o impacto não é maior que aquele provocado por outras fontes corriqueiras de perdas nos rebanhos, como doenças, acidentes, maus tratos, cheias e baixa qualidade zootécnica. Ou seja, é possível que a predação por onças possa ser compensada através de outras estratégias que ofereçam menos riscos que a introdução de búfalos.
Considerando os riscos representados pela criação de búfalos no Pantanal, é fácil entender por que o remédio pode ser “amargo” demais – e isso já é uma realidade em diversas áreas da planície inundável. São muitos os fatores que precisam ser levados em conta, buscando uma abordagem responsável, baseada no princípio da precaução.
As fazendas pantaneiras são grandes – muitas, com dezenas de milhares de hectares, contendo áreas de difícil acesso. Soma-se a isso o fato de que búfalos, em períodos de cheias intensas, costumam escapar das invernadas onde são mantidos, não respeitando cercas e nem águas mais profundas. Uma vez “alongados”, tornam-se agressivos e difíceis de manejar, e acabam constituindo populações de animais asselvajados.
Esta situação tem se repetido em diversos locais, como no norte da Austrália, no vale do Guaporé, em Rondônia, na Baixada Maranhense e nas planícies costeiras do Amapá, para citar alguns. Sem predadores, as populações crescem e se estabelecem facilmente. Os resultados são catastróficos. Nas planícies de inundação do vale do Guaporé, em Rondônia, cerca de quatro mil búfalos asselvajados originaram-se de uma tentativa realizada por meio de um programa do governo estadual, que começou com cerca de 40 animais na década de 1950, na fazenda Pau D’Óleo. Com o tempo, esses animais se multiplicaram, alteraram o relevo, a hidrologia e causaram impactos consideráveis na vegetação dentro da Reserva Biológica (REBio) do Guaporé, de cerca de 600 mil hectares.
No Amapá, mais de 30 mil búfalos existem dentro da REBio Lago Piratuba, de 400 mil hectares. Os impactos destes animais no micro relevo levaram à salinização de sistemas de lagos de água doce, erosão e remobilização de sedimentos que assorearam rios, causaram graves impactos na vegetação, afetando a biodiversidade. Na Estação Ecológica Maracá-Jipioca, constituída de uma grande ilha na costa do Amapá, há uma população de algumas centenas de búfalos asselvajados, da raça Carabao, afetando também a vegetação nesta unidade de conservação. Esses impactos são idênticos aos encontrados no Parque Nacional de Kakadu, no norte da Austrália, cuja população de búfalos asselvajados nunca foi eliminada, apesar de esforços neste sentido por parte do governo australiano. Portanto, exemplos da capacidade de estabelecimento de populações asselvajadas de búfalos e seus impactos não faltam.
Na desejada análise mais ampla que defendemos, é preciso também considerar o aspecto cultural. Os peões pantaneiros não gostam de lidar com búfalos, uma vez que estes exigem cuidados diferentes dos bovinos, com manejo diário. Geralmente, os peões argumentam que os búfalos não obedecem como o gado bovino (com os quais estão acostumados a trabalhar, uma cultura desenvolvida por mais de dois séculos no Pantanal), apresentando comportamento mais complicado e respondendo pouco ao desejo dos peões. A consequência disso pode ser um manejo negligente, resultando em escape e abandono dos animais, com o estabelecimento de grupos asselvajados. Em 2015, um funcionário de uma fazenda na Nhecolândia foi morto por um búfalo “bagual”, como são chamados os animais asselvajados na região, aumentando o temor e a rejeição a este animal na cultura local. Mas este não é o único caso de ataque – há relatos, inclusive, destes animais se jogando na água para perseguir pessoas em canoas.
A Embrapa Pantanal realizou um mapeamento de populações de búfalos com dados obtidos de levantamentos aéreos realizados no início da década de 1990, apontando várias ocorrências de populações asselvajadas no bioma. Atualmente, pelo menos dez populações são conhecidas na planície inundável: na região da Corixa Grande e ao sul da fazenda Descalvados, em Cáceres (MT); no norte da região do Paiaguás; na região da Palmeirinha e nas proximidades da Boca do Caronal (próximas ao rio Taquari); na região do Jacadigo; nas proximidades do Forte Coimbra, em Corumbá; na região da foz do rio Tereré, em Porto Murtinho, e no Brejo do Taboco, em Aquidauana (MS). Entretanto, é possível que haja mais localidades do Pantanal com búfalos “alongados”. Estas populações variam de poucas dezenas a centenas de animais, localizados em regiões consideradas perigosas pelos moradores e trabalhadores locais.
Além disso, os búfalos asselvajados não possuem qualquer tipo de controle de doenças, como a brucelose, a tuberculose e várias outras. Isso representa um risco muito grande para os rebanhos domésticos, que podem ser contaminados por essas enfermidades – assim como a fauna silvestre. Entre as espécies expostas a este problema estão algumas classificadas oficialmente como ameaçadas no Brasil, como o cervo-do-pantanal (Blastocerus dichotomus). Não há estudos sobre os impactos da presença destes animais em um sistema frágil como o Pantanal, nem mesmo uma análise da condição sanitária destes rebanhos.
Nesse sentido, é possível antever os problemas que podem decorrer do aumento de búfalos no Pantanal, especialmente se populações asselvajadas foram se estabelecendo. A planície pantaneira é uma área extremamente plana. Qualquer mudança em seu micro relevo pode alterar a hidrologia e a vegetação de forma irreversível. Na medida em que modificam a vegetação e a hidrologia em grandes áreas, os búfalos podem, assim, afetar toda uma cadeia de relações entre espécies, comunidades e habitats, alterando ecossistemas inteiros.
Dessa forma, a recomendação é que uma perspectiva mais ampla seja abordada antes de se recomendar soluções arriscadas para uma região considerada Patrimônio Nacional na Constituição Federal de 1988 e que contém vários sítios da Convenção de Ramsar (que trata do uso e conservação de áreas úmidas no mundo inteiro), da qual o Brasil é signatário. Finalmente, cautela é recomendada por todos aqueles que defendem o uso sustentável da planície pantaneira – o que, necessariamente, inclui a conservação de sua biodiversidade, dos processos ecológicos e da capacidade de recuperação de seus ecossistemas. No Pantanal, não há lugar para a inconsequência.
Fonte: Embrapa Pantanal