Em Nota Técnica, apontam manobra legislativa, falta de clareza em sua redação, quebra de pacto federativo e consequente inviabilidade jurídica da proposta.
O PL nº 3.649/2023, que determina a transferência da gestão do Parque Nacional para a Secretaria Estadual de Meio Ambiente e a aplicação de quase R$ 200 milhões em três anos, em ações e serviços, pelo Governo do estado, representa ainda uma iniciativa incoerente quando verificado o descaso do governo com o escopo de unidades de conservação estaduais. Com a Nota Técnica, o Observatório Socioambiental de Mato Grosso (Observa-MT), Instituto Democracia e Sustentabilidade e a Rede Nacional Pró-Unidades de Conservação cobram debate.
Inviabilidade jurídica
O advogado da Rede Pró-UC, Douglas Montenegro, destaca que a análise do PL o revela como uma tentativa do Governo de Mato Grosso interferir “de modo equivocado” em um Parque Nacional.
“Primeiro temos a questão da inviabilidade jurídica de um órgão estadual fazer a gestão de um parque nacional, instituído pela União Federal”. Ele destaca que não há qualquer previsão na lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação que possibilite isso. Nem na legislação estadual de Mato Grosso, como esmiúça a nota técnica.
“Tampouco, na lei de Política Nacional de Meio Ambiente, que estruturou e criou uma hierarquia entre os órgãos ambientais brasileiros. Isso também porque o parque nacional está vinculado a um conjunto de unidades de conservação federais. Existem questões orçamentárias, econômicas, de investimento, de fiscalização, de controle, de pessoal, que estão relacionadas à gestão da Unidade, afinal quem faz a gestão de um parque nacional, seja em que estado da Federação ele estiver, é o ICMBio e não o órgão estadual”, destaca Montenegro.
Manobra legislativa
As organizações associadas para a elaboração da nota técnica alertam ainda para o rito ao qual foi submetido o projeto de lei da senadora Margareth Buzetti no Senado. Por constatação, foi utilizada uma manobra para evitar maiores debates. Apresentando o requerimento nº 683/2023 a senadora retirou PL anterior, com o mesmo conteúdo, mas que tramitaria em caráter terminativo pelas comissões de Constituição, Justiça e Cidadania e de Assuntos Econômicos. Então, reapresentou a proposta como conhecemos agora, para que estrategicamente só fosse analisada pela Comissão de Meio Ambiente, abreviando o processo. Vale ressaltar que a Comissão de Meio Ambiente tem em sua composição, aliados do governo estadual, como a própria Margareth; Jayme Campos (União) e Mauro Carvalho Junior (União). Este último, chefe da Casa Civil licenciado, amigo pessoal do governador Mauro Mendes e agora, relator da proposta.
“Consideramos um ponto muito crítico a tramitação ignorar a Comissão de Assuntos Econômicos e a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. Comissões que têm maior expertise para entender o que a senadora autora do PL 3.649 propôs, porque a justificativa do projeto de lei é superficial. Não menciona estudos ou análise de viabilidade que foram feitas nem encomendadas para essa finalidade”, explica o advogado da Rede Pró-UC.
A seu lado, a consultora jurídica do Observa-MT, Edilene Fernandes também critica as manobras legislativas e falta de transparência. “Se de fato vão insistir em tentar seguir adiante com essa lei, então que o PL seja analisado pela Comissão de Constituição e Justiça, que é o mínimo quando se trata da criação de uma lei”. Ela cobra ainda a realização de audiências públicas para que a sociedade possa se posicionar. “Porque se esse projeto de lei for aprovado às pressas, não vai haver discussão sobre a formalidade constitucional desse projeto e nem a ciência da população local sobre os possíveis impactos dessa proposta”, destaca Edilene.
Meios para o Estado atuar na legalidade
Sobre o modo como o Estado poderia operar, respeitando a legalidade, Edilene Fernandes explica que existem saídas para dividir competências, como no caso de rodovias. Então, como defende a Nota Técnica, o caminho seria a chamada pública, licitação de concessão, não transferência de gestão. “O governo poderia atuar em conjunto com o ICMBio, caso fosse atestada a capacidade financeira, a aptidão do projeto e definido dentro desse processo os limites de atuação de cada parte”.
Destaca ainda que se a MT Par tem todos os requisitos necessários, agora em que foi reaberto processo de licitação para gestão em parceria do parque, teria chances de vencer o certame. Outra opção apontada pela consultora jurídica do Observa-MT é um Termo de Cooperação Técnica, mas o governo abandonou um acordo anterior já firmado com o ICMBio.
Assim, a proposta “costurada” com o governo e seus aliados ignora a ausência de previsão legal para a SEMA-MT realizar a gestão de Unidades de Conservação federais, “o que também dependerá de inúmeros outros fatores que sequer foram considerados na proposta legislativa – o PL nº 3.649/23 não menciona estudos acerca de sua repercussão na Administração Pública Estadual e seus impactos ambientais, econômicos e sociais positivos ou negativos”, ainda segundo a Nota Técnica.
O Observa-MT, Rede Pró-UC e o IDS também detectam ausência de clareza na redação do PL, pois apenas diz que o Estado de Mato Grosso “aplicará anualmente, em ações e serviços, o valor de R$ 66 milhões de reais, totalizando a aplicação de R$ 200 milhões de reais em 3 anos”, mas não especifica onde nem como ocorrerá essa aplicação.
“A Lei nº 11.516/07 estabelece ser possível ao ICMBio promover “a concessão de serviços, áreas ou instalações de Unidades de Conservação federais para a exploração de atividades de visitação … mediante processo licitatório” (art. 14-C), mas não a concessão da gestão da Unidade de Conservação. A única possibilidade ao concessionário é realizar atividades de apoio à gestão (art. 14-C, § 1º, da Lei nº 11.516/07)”, diz outro trecho de destaque da nota. Edilene reforça que é um tipo de contrato entre as partes com todas as obrigações e benefícios que esse novo ente que entra para gestão do parque, deve realizar.
Acordo expirado
O documento traz à tona ainda o Acordo de Cooperação firmado anteriormente entre o ICMBio e o governo de Mato Grosso, que não o cumpriu. O instrumento assinado em 10 de agosto de 2021 autorizava a realização de ações voltadas à implementação de ações e estruturas físicas voltadas à visitação dos atrativos do Parque Nacional de Chapada”. O plano de trabalho previa obra da portaria da Unidade de Conservação, revitalização das trilhas e implantação de novas infraestruturas no complexo do Véu da Noiva, bem como a realização de obras de infraestrutura no atrativo Portão do Inferno, que em dezembro/2022 deveriam ter sido finalizadas.
“Até o momento, contudo, não se tem notícias sobre o adimplemento das obrigações pelo Estado de Mato Grosso, pois o prazo de 19 meses do termo de cooperação expirou e as obras não foram realizadas”, destaca a nota.
Descaso com o patrimônio estadual
O advogado da Rede Pró-UC destaca que além de todas as incoerências do projeto de lei, numa visão de conjunto, a proposta da senadora Margareth Buzetti acende o alerta para uma série de iniciativas que partiram do governo de Mato Grosso “para, o que tudo indica, desmantelar o Sistema Estadual de Unidades de Conservação”, a começar pela ausência de investimentos nas UCs estaduais.
“Então, se analisarmos o PL 3.649/23, que tem só três artigos, vemos que um deles fala que Mato Grosso vai investir R$ 200 milhões em uma única unidade de conservação federal. Mas o governo de Mato Grosso não cuida nem das próprias unidades de conservação estaduais, o que ficou evidente no caso do Parque Estadual do Cristalino, por exemplo, que sofreu incêndios florestais e ficou um longo período de tempo sem a ação do corpo de bombeiros, que não foram destacados para atuar. Não houve nem solicitação de auxílio à Brigada Nacional pela SEMA”.
Ele destaca ainda que vários outros parques estaduais não têm instrumento de gestão, plano de manejo, nem conselho consultivo constituído, apesar de muitos deles terem sido criados décadas atrás. “Então a gente vê essas incoerências, são esses problemas que estão esmiuçados na nota técnica que precisam ser melhor discutidos, antes de uma votação açodada de um projeto de lei que pode até ser considerado inconstitucional”, diz o advogado.
Por sua vez, a consultora jurídica do Observa-MT questiona o interesse do Governo sobre a unidade em si e analisa áreas estaduais no entorno do Parque de Chapada, que sofrem com o descaso do estado.
“Pois afinal, áreas do entorno, como o Mirante e a Área de Proteção Ambiental (Apa) Chapada estão abandonadas, fora o processo de liberação e ampliação do desmatamento. Então, por esses e outros motivos demonstra que não está cuidando bem do que já tem”. Para ela é importante que o Estado explique também de que maneira essas unidades vão dialogar com o parque, “pois ele não é uma ilha e precisa de uma área de preservação no seu entorno. Áreas já implementadas, mas sem atenção efetiva”.
PEC 12/22
Há ainda outras questões paralelas que incitam dúvidas sobre o interesse do governo, afinal, tramita na Assembleia Legislativa de Mato Grosso um projeto do Executivo para proibir a criação de novas unidades de conservação até que 80% das já existentes sejam regularizadas. “E a justificativa para a proposta é a falta de recursos”, realça Edilene.
“Além da PEC, registramos o caso do Parque Cristalino, que por uma ação judicial de uma empresa particular, por pouco não foi extinto, pois o governo poderia ter recorrido e não recorreu. Fora isso via Conselho do parque, tenta ainda reduzir os limites do Cristalino. Além disso, tramita na Assembleia Legislativa projeto para anular o decreto de criação do Parque Serra Ricardo Franco. Isso demonstra a falta de capacidade técnica e de gestão do estado em estabelecer a conservação das UCs que já possui”.
Via ObservaMT – Observatório Ambiental de Mato Grosso