Época
Os aquários com águas cristalinas e peixes coloridos de Bonito são uma das principais atrações turísticas do Brasil. Também são o resultado de uma rara visão de conservação dos recursos naturais em nome de um desenvolvimento inteligente, que gera empregos de qualidade. Mas essa maravilha corre perigo. Os produtores rurais da região estão querendo mudar as leis que até então protegeram a qualidade da água de Bonito. A mudança reduziria a proteção legal da área de nascentes dos rios. A expansão da agricultura em áreas sensíveis já está afetando o turismo em Bonito. Associações comerciais e de entidades ligadas ao setor de turismo da cidade agora apoiam uma campanha para preservar os banhados, áreas alagadas essenciais para a beleza natural da região.
O engenheiro florestal Miguel Milano, um dos articuladores da campanha conversou com Época. Nos anos 1990, ele foi criou e dirigiu a Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza. Hoje é um dos conselheiros da Fundação Neotrópica, uma das principais entidades de pesquisa e conservação da região. Também é dono de uma cerâmica artesanal que vende peças para os turistas. Representa a associação comercial de Bonito no Conselho Municipal de Turismo. “A gente emprega 10 pessoas. Dependemos da qualidade do patrimônio natural para os visitantes continuarem vindo”, diz.
ÉPOCA – Por que realizar a campanha?
Miguel Milano – Ela nasce de uma história na região. Há 7 anos, o promotor do Ministério Público Federal de Bonito Luciano Loubet designou uma força-tarefa da polícia ambiental com ajuda da Secretaria Municipal de Meio Ambiente mais o Imasul (órgão estadual de meio ambiente) para fazer uma avaliação de risco dos banhados. Os banhados tem um valor como reguladores hídricos para preservar os aquários de Bonito. Essa força-tarefa entregou um relatório dizendo que há uma necessidade de proteção maior para os banhados. Hoje eles são apenas área de proteção permanente. Com isso, há riscos para a manutenção do turismo e de outras funções ambientais. Vários estudos posteriores confirmaram isso. Um deles foi feito pela Neotrópica e pela Conservação Internacional. Outro estudo é do Fundo Brasileiro para Biodiversidade. Diante disso, há um ano, houve um convênio entre a prefeitura e a Fundação Neotrópica para estudios específicos sobre criação de unidades de conservação para proteger os principais banhados. São os banhados do Formoso e do Prata, que formam os dois principais rios das áreas turísticas. Com esses estudos, a prefeitura resolveu criar dois refúgios da vida silvestre. É um tipo de unidade de conservação que pode ser criada em área pública ou privada, sem necessidade de uma onerosa desapropriação, desde que haja anuência do proprietário. Isso foi feito num momento importante, em tempo hábil para registrar essas unidades de conservação e o município ganhar com o ICMS ecológico (repasse previsto na lei de alguns estados para municípios que preservam áreas naturais). Porém, quando o município fez a consulta pública para a criação dos refúgios, o sindicato dos produtores rurais entrou com mandato judicial questionando. Diz o sindicato que os 20 proprietários atingidos não foram consultados individualmente. A Justiça acabou o mandato. A consulta pública foi suspensa. Ora, a consulta serva para a sociedade toda debater, inclusive os proprietários. O sindicato cerceou o direito de a comunidade decidir se é contra ou a favor da criação dos refúgios. Sem consulta pública, não dá para nem discutir o tema. Isso disparo um alerta em vários setores da sociedade e da economia de Bonito.
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ÉPOCA – Por que?
Milano – Atualmente, a economia de Bonito tem dois pilares principais: agronegócio e turismo. Há diferentes formas de medir isso. Segundo algumas fontes, a receita do turismo já responde por metade do PIB do município. Mas quando se vê a ocupação de mão de obra e a geração de renda individual, estima-se que 70% venha do turismo. Cerca de 50% dos empregos direitos estão no turismo. Sem turismo, não há voos diretos, nem pousadas, restaurantes, atrações privadas, supermercados, lojas etc. Tudo disso mobiliza um time de pessoas, inclusive bilíngues. Essa economia depende da natureza. Essa natureza é essencialmente a qualidade da água. Isso se traduz em quantidade e estabilidade da água. Toda vez que chove acima da média, o rio Formoso se turva mais rápidamente e sobe de nível. Com isso, fecham os balneários e os passeios são cancelados. Com a turbidez, não tem programa de flutuação nem mergulho para ver peixes coloridos. Quem impede que a água fique turva são os banhados.
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ÉPOCA – Qual é o papel dos banhados para manter a qualidade da água?
Milano – Os banhados são áreas naturalmente úmidas. São planas e ficam sazonalmente ou permanentemente inundadas. Geralmente, têm gramíneas. Algumas dessas áereas guardam nascentes importantes para os rios. Em outros casos, são cortadas pelos rios. Imagine uma esponja cheia de água que você coloca sobre o tampo de uma mesa. Com o passar das horas, a esponja vai soltando água bem devagarinho. Essa é a propriedade do banhado. Ele retêm a água das chuvas e dos rios. Vai liberando gradualmente. Isso regula o volume dos rios abaixo e dos aquários. Também retém material particulado em suspensão na água. A água sai mais limpa dos banhados. Claro que os rios também são cristalinos porque a água é rica em carbonato de magnésio. Isso favorece a decantação rápida das partículas de sujeira na água. Mas os banhados são fundamentais.
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ÉPOCA – Seria possível criar essas unidades de conservação nos banhados sem a consulta pública?
Milano – O prefeito tem a possibilidade de criar alguns tipos de unidade de conservação sem a consulta. Seria o caso de reserva biológica ou estação ecológica. Ha ameaça a recursos naturais e espécies em risco. Isso justificaria criar essas categorias.
ÉPOCA – O que ameaça os banhados para justificar a criação de unidades de conservação?
Milano – Recentemente, ocorreu uma retomada da agricultura na área onde estão os banhados. Há 30 anos o café da região entrou em decadência e deu lugar à pecuária. Mas nos últimos anos tem havido uma substituição do gado pelo plantio de soja. Em alguns casos, soja em alternância com milho. Essa nova agricultura tem o potencial de contaminar a água. Não há evidências que isso esteja ocorrendo. Mas o risco existe. É fundamental fazermos um monitoramento da qualidade da água. A prefeitura tem incentivado. Mas enfrenta resistência do sindicato rural. Além disso, alguns fazendeiros estão fazendo drenos nas áreas de cultivo. Jogam a água que lava os campos cultivados nos banhados. Se houver resíduo, vai parar no banhado. Você teria a maioria da população prejudicada pelo desmantelamento do setor de turismo, em benefício de poucos.
ÉPOCA: Já existe algum impacto para o turismo agora?
Milano – É cada vez mais frequente após as chuvas uma situação em que a turbidez obriga a interdição voluntária ou obrigatória de atrações turísticas por dois a três dias. São atrações como banhos em cachoeiras, passeio de bote, rafting ou flutuação no rio. Os proprietários são obrigados a devolver o dinheiro de ingresso aos turistas. Fora a decepção do visitante que volta para casa sem ter visto a atração principal de Bonito e pode não querer voltar mais.
ÉPOCA – O que o setor de turismo está fazendo?
Milano – A gente vive um momento interessante. Para começar, é preciso considerar que boa parte dos empreendimentos de turismo de Bonito são de produtores rurais, pecuaristas e sojicultores. Muitos deles têm uma posição dupla. Eles tem compromissos com a sociedade rural. O sindicato ruralista aqui não compartilha das visões mais modernas de sustentabilidade de outros setores agrícolas. Por outro lado, agora está ficando mais evidente que os empresários do turismo que dependem da atividade para seu sustento, como donos de hotéis e restaurantes, começam a aderir a campanhas de preservação. A campanha teve adesão recente do Instituto das Águas da Serra da Bodoquena, criado por empresários locais e donos de atrações turísticas. E também adesão da Associação dos Atrativos de Bonito e Região. Pode ser um momento importante para o Brasil ver que há um setor de turismo que usa a natureza de forma respeitosa e oferece mais retorno financeiro e empregos do que outras práticas predatórias e descuidadas.