A devastação no Rio Grande do Sul. Anotações sobre causas estruturais das enchentes e eventos climáticos extremos

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Secom/FSP.

Alcides Faria.

– Todos os indicativos são de que o que aconteceu no Rio Grande do Sul tem conexões com as mudanças climáticas globais e os fenômenos El Niño e La Niña;

– Mais de 90% da área cultivada no Rio Grande do Sul “está degradada”, sendo um dos mais graves problemas a compactação dos solos;

– A compactação impede a infiltração da água no solo, ocasionando o escorrimento rápido para os rios;

– O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, e a Assembleia eliminaram cerca de 500 normas de proteção ambiental durante seu primeiro ano de mandato, em 2019;

– Porto Alegre poderia ter se protegido minimamente se o sistema de barreiras construído depois das cheias de 1941 estivessem funcionando e as bombas fossem novas;

– Dados do MapBiomas mostram que entre 1985 e 2022 o Rio Grande do Sul perdeu aproximadamente 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa;

– Ocorrendo 800 milímetros de chuva numa floresta ela consegue absorver 150 milímetros, também agindo como um freio para a água, permitindo que ela penetre no solo. E o solo florestal é permeável;

– Quando se desmata para a agricultura, a penetração de água é menor e muitas vezes ela corre em alta velocidade para os rios;

– Rios do Rio Grande do Sul e os cursos d’água das microbacias sofrem com a falta de vegetação ciliar, o envenenamento e o assoreamento, o que contribui para enchentes. A retirada de areia para a construção civil é um problema;

– Apresentação.

– O fenômeno específico que desatou as chuvas sobre o Rio Grande do Sul.

– Efeitos das Mudanças Climáticas.

– El Niño e La Niña.

– Devastação nas Leis Ambientais do Estado.

– Desmatamento – entre 1985 e 2022 o Estado perdeu 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa.

– Governo estadual operando com informações climáticas e hidrológicas limitadas ou mesmo falsas.

– Prefeitura da cidade de Porto Alegre não fez manutenção e atualização do sistema de proteção adequadamente.

– Registros sobre topografia e a hidrografia da região do Estado impactada.

– Degradação dos solos.

– Retirada de areia para construção civil.

– A ausência de mata ciliar.

Pisoteio das margens pelo Gado.

 

Apresentação

Entre 2021/22 a falta de chuvas levou 426 municipalidades do Rio Grande do Sul a decretarem emergência, situação que se repetiu em fevereiro de 2023, quando 317 municípios foram afetados por nova seca, levando-os a tomarem a mesma medida. Poucos meses depois são as cheias que deixam um rastro de destruição com 75 mortos.

Há algum tempo monitoro os eventos climáticos extremos na América do Sul, com maior atenção aos territórios e principalmente suas bacias hidrográficas e não olhando apenas os limites de países, estudando as conexões com as alterações na temperatura das águas no Pacífico Equatorial, traduzidos como La Niña (resfriamento) e El Niño (aquecimento), pois, como mostrado pelo Climate Predicton Center, do National Weather Service, dos Estados Unidos, esses fenômenos têm repercussão no clima global, sendo que na América do Sul a relação com secas e enchentes estão cada vez mais claras.

Com as informações iniciais sobre as cheias de 2024 no Rio Grande do Sul me convenci da necessidade de estudar as características da região onde estão assentados os limites do Estado, particularmente sua geografia, a hidrografia, alguns efeitos da ocupação econômica e problemas da gestão pública. A partir do que encontrei em algumas publicações científicas, em entrevistas de pesquisadores, publicações em sites especializados e sites da imprensa diária, ousei elaborar e publicar este texto com o objetivo de trazer o que encontrei pelo caminho e alertar para a necessidade de que em cada unidade ambiental é preciso estabelecer ações preventivas específicas para os eventos climáticos extremos, tomando principalmente as bacias hidrográficas como essa ‘unidade’.

Uma conclusão é que para que sejam mitigadas inevitáveis futuras ocorrências extremas se faz necessário um grande plano de prevenção que tenha como ponto de partida o processo de recuperação.

Reconheço minhas limitações com relação a alguns dos temas aqui abordados e, por isto, este é um texto em aberto para correções e acréscimos ao longo do tempo.

Alcides Faria.

Secom/FSP.

O fenômeno específico que desatou as chuvas sobre o Rio Grande do Sul

“Essa situação do Rio Grande do Sul é o sistema de baixa pressão que vem do Oceano Pacífico. Ele gera um sistema de alta pressão no centro oeste e sudeste e o sistema de alta pressão bloqueia o sistema de baixa pressão. As frentes frias chegam ali, não conseguem passar e chove demais, alimentados por um fluxo muito grande de vapor d’água que está vindo da Amazônia e passa paralelo aos Andes.” Professor e climatologista Carlos Nobre, pesquisador do Instituto de Estudos Climáticos da USP e copresidente do Painel Científico para a Amazônia.

Efeitos das mudanças climáticas globais

O bloqueio do sistema de baixa pressão “é um fenômeno que sempre existiu, só que agora, por causa do aquecimento global, globalmente falando, os oceanos nunca estiveram tão quentes e quando eles estão muito quentes, evapora muita água. Então, lógico, um grande elemento dos eventos extremos é o vapor d’água, porque quando o vapor d’água vai para um lugar e chove muito, em outro lugar se faz seca”. Professor Carlos Nobre.

El Niño e La Niña

O El Niño provocou a elevação da temperatura do Pacífico Equatorial desde o ano passado. É um fenômeno que existe há pelo menos dois milhões de anos. A questão agora é que tem aumentado a frequência e a intensidade de ocorrência, com indicações de que estão postas conexões com as mudanças climáticas globais. Algumas evidências: com El Niño chuvas no Sul e seca na Amazônia e quando da ocorrência do La Niña o inverso, secas no Sul e mais chuvas na Amazônia. O Pantanal, no centro da América do Sul, teve o seu extremo – os incêndios de 2020 – durante ocorrência do La Niña.

Devastação nas Leis Ambientais do Estado

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, e a Assembleia Legislativa promoveram uma verdadeira ‘devastação’ na legislação ambiental do Estado, acabando com cerca de 500 normas do Código Ambiental durante seu primeiro ano de mandato, em 2019. Esse Código foi construído durante 10 anos. Mais tarde atacou legislações pioneiras como a dos agrotóxicos, criada na década de 80 do século passado. Recentemente autorizou-se a construção de barragens e reservatórios em áreas de proteção ambiental, o que, definitivamente, contribui com enchentes em situações de eventos climáticos extremos.

Em 2021, Leite modificou uma outra legislação ambiental importante do estado, a pioneira lei de agrotóxicos do Brasil. Estabelecida na década de 1980, ela estipulava que nenhum pesticida poderia ser aprovado no estado se não fosse autorizado em seu país de origem. Tal requisito já não é mais aplicado.

Francisco Milanez, presidente da Agapan: ” As mudanças na legislação ambiental estadual estão diretamente relacionadas à magnitude dos impactos das chuvas no Rio Grande do Sul. Como exemplo, ele menciona o aumento do desmatamento desde 2019 em áreas montanhosas, o que contribui para chamadas enchentes de erosão, que ocorre quando a água em excesso, proveniente de chuvas intensas causa o deslocamento e a remoção do solo em uma determinada área… Se replantassem as áreas de preservação permanente, como as encostas dos morros e a mata ciliar das beiras do rio, evitaríamos essas enchentes. Por quê? Porque, suponhamos que tenhamos 800 milímetros de chuva; uma floresta consegue absorver 150 milímetros. Além disso, a vegetação da floresta age como um freio para a água, permitindo que ela penetre no solo. E o solo florestal é permeável. Quando desmatamos para a agricultura, compactamos o solo, impedindo que a água penetre, fazendo-a correr em alta velocidade. Enchente é simplesmente muita água correndo muito rápido. Se conseguíssemos desacelerar essa água, não teríamos enchentes”. (1)

Governo estadual operando com informações climáticas e hidrológicas limitadas ou mesmo falsas

O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, afirmou em 2023 (Globonews), após a enchente que atingiu o Estado matando 54 pessoas, que os modelos matemáticos de previsão do tempo de institutos meteorológicos não indicavam o volume de chuvas acima de 300 milímetros nas diversas bacias hidrográficas.

O governador foi desmentido pelo Metsul Meteorologia (2). Em nota pública a empresa afirmou que a declaração não era verdadeira, pois os climatologistas lançaram vários alertas anteriores aos eventos extremos, inclusive advertindo para a possibilidade de chuvas acima dos 300 mm indicados pelo governador.

Outra surpresa: não há dados sobre os afluentes dos principais rios, levando mais tempo para se saber que a água está subindo, fazendo com que muitas vezes se sabe de cheia tardiamente. O professor Fernando Mainardi Fan, do Instituto de Pesquisas Hidrológicas (IPH) da UFRGS, citando o rio Vacacaí, afirma que um bom monitoramento da vazão teria ajudado a prever consequências em cadeia até o Guaíba, onde deságua a maior parte dos rios gaúchos (3).

Cidade de Porto Alegre não fez manutenção e atualização do sistema de proteção adequadamente

Um grupo de 11 especialistas subscreveram um manifesto mostrando que o sistema de proteção contra inundações e de drenagem da água de chuva de Porto Alegre não teve manutenção adequada, não funcionando nas enchentes de 2024 (4). O sistema “é composto por 68 km de diques de terra; 2,65 km de muro na avenida Mauá, no centro da cidade; 14 comportas e diversas casas de bomba espalhadas pelo município. Ao longo do sistema existem 23 casas de bombas, que também possuem comportas. Esse sistema, quando totalmente fechado impede o extravasamento das águas sobre a cidade. Impede a inundação até a cota de 6 m acima do mar” – O recorde histórico é 5,33 metros e foi registrado dia 9/04. Walter Collischonn, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) confirma, na Folha de São Paulo.  a informação de que o sistema é para 6 metros, mas com 5,33 a cidade terminou alagada.

Outro problema que agravou os efeitos da cheia: o sistema de proteção recebeu 23% a menos do orçamento destinado à manutenção dos equipamentos nos últimos sete anos. Estavam previstos R$ 21,5 milhões previstos para o serviço, mas foram gastos R$ 16,4 milhões, segundo informações da Folha de São Paulo (5).

Desmatamento – entre 1985 e 2022 o Estado perdeu 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa

Dados produzidos pelo MapBiomas e publicados pela BBC News Brasil (6) mostram que, entre 1985 e 2022, o Rio Grande do Sul perdeu aproximadamente 3,5 milhões de hectares de vegetação nativa, o que é o equivalente a 22% de toda cobertura vegetal original presente no Estado em 1985, formada por florestas, campos, áreas pantanosas e outras formas de vegetação original.⁠ Ao mesmo tempo ocorreu um aumento vertiginoso de lavouras de soja (366%), silvicultura e da área urbanizada do Estado.⁠

A topografia e a hidrografia da região do Estado impactada

Devido ao relevo inclinado do Estado, chuvas na parte das serras chegam rapidamente nas partes mais baixas onde está o lago Guaíba, responsável pela inundação de Porto Alegre. O lago recebe essas águas trazidas principalmente pelo rio Jacuí e o sistema Taquari -Antas: “O rio Jacuí é o principal curso d´água do estado do Rio Grande do Sul, pois atravessa a Depressão Central do Estado de norte para o sul, e. após, de oeste para leste. Suas nascentes estão localizadas da região de Passo Fundo, norte do Estado do Rio Grande do Sul, e sua foz, no lago Guaíba, que banha a cidade de Porto Alegre” Revista de Ciências Ambientais, 2017 (8).

Afluentes de alta declividade, alta vazão e/ou baixa concentração de sólidos promovem o aprofundamento natural da margem e/ou do leito do canal a jusante da confluência destes afluentes com o rio Jacuí. O contrário também é verdadeiro. O trecho do rio Jacuí situado a montante da confluência com o rio Vacacaí, por exemplo, por apresentar maior velocidade de fluxo que o seu afluente, provoca pouca deposição sedimentar no seu trecho a jusante da confluência dos dois rios. O rio Taquari, por apresentar alta velocidade de descarga líquida e por apresentar estruturas rígidas nas margens, provoca um efeito de escavação no leito quando deságua no Jacuí.

Imagem do Rio Grande do Sul, produzida pela Folha de São Paulo, mostrando o relevo e as principais bacias que drenam para a lagoa Guaíba e conexão desta com a lagoa dos Patos.

Degradação dos solos

Mais de 90% da área cultivada no Rio Grande do Sul “está degradada” informa matéria do Canal Rural (8), sendo um dos mais graves problemas a compactação, pois esta impede a infiltração da água no solo, ocasionando o escorrimento rápido para os cursos d’água e os rios.

Mesmo solos não compactados, mas não manejados adequadamente para retenção de água podem contribuir para cheias extremas tanto pelo escorrimento muito rápido como pelo assoreamento com sedimentos que alteram o leito dos rios.

Retirada de areia para construção civil

“A extração de areia no leito do rio Jacuí tem sido a principal responsável pelo atendimento a demanda deste bem mineral para atender a construção civil do Rio Grande do Sul. Tal atividade tem sido responsabilizada pelos processos erosivos observados, principalmente, nas margens desse rio”, registram em artigo os pesquisadores Luis Carlos Zancan Filho e Telmo Fernando Perez de Quadros, na Revista de Ciências Ambientais, de 2017 (7).

A instalação de obras civis ao longo do curso do rio, modificando o curso, tem impacto no fluxo das águas, influindo na erosão de margens.  Os barramentos detendo o fluxo de sedimentos ao longo do rio, alteram as vazões e velocidades naturais do rio Jacuí.

A ausência de mata ciliar

Os pesquisadores Luis Carlos Zancan Filho e Telmo Fernando Perez de Quadros, na Revista de Ciências Ambientais, de 2017, também registram que a falta de vegetação nas margens facilita a erosão, principalmente em épocas de cheias.

Pisoteio das margens dos rios pelo gado

A ausência de vegetação ciliar facilita o acesso do gado às margens dos rios, desestruturando as mesmas, como mostrado na imagem abaixo.

  1. https://www.terra.com.br/planeta/mudancas-em-normas-ambientais-feitas-por-leite-influenciaram-na-dimensao-dos-impactos-das-chuvas-no-rs,d3342b48942e26dde3488fcd0c6d57df1n6vcjdj.html
  2. https://metsul.com/nota-oficial-declaracoes-do-governador-eduardo-leite-rs/
  3. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/05/tragedia-mostra-apagao-de-dados-sobre-chuvas-e-falhas-de-operacao-no-rs-apontam-especialistas.shtml
  4. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/05/porto-alegre-deixa-de-gastar-23-do-orcamento-para-manutencao-do-sistema-contra-cheias.shtml
  5. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2024/05/especialistas-criticam-falta-de-manutencao-em-sistema-anti-enchente-de-porto-alegre.shtml
  6. https://www.instagram.com/p/C6_xEJTt5fd/?igsh=ZXBpb2VpZW92bTd2
  7. https://www.researchgate.net/publication/315918405_EFEITO_DA_DINAMICA_FLUVIAL_E_DA_ACAO_ANTROPICA_SOBRE_A_EROSAO_DE_MARGENS_FLUVIAIS_O_CASO_DA_MINERACAO_DE_AREIA_NO_RIO_JACUI
  8. https://www.canalrural.com.br/programas/rural-noticias/das-lavouras-estao-degradadas-68464/

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