Via Um Só Planeta
Em meados de janeiro, duas notícias de certa forma antagônicas surpreenderam quem acompanha o setor energético brasileiro. A primeira foi a abertura de consulta pública do Plano Decenal de Energia – PDE 2031, desenvolvido por equipe multidisciplinar da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), ligada ao Ministério de Minas e Energia. A outra, o anúncio da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) de prorrogação de estudos de viabilidade de três grandes hidrelétricas na Bacia do Tapajós. Por que esses dois fatos são antagônicos? Vamos discorrer.
O PDE 2031 detalha em um capítulo inteiro sobre questões socioambientais, o impacto das mudanças climáticas no setor energético, fazendo alusão às “incertezas quanto à disponibilidade hídrica futura”. Segundo a análise apresentada no plano, “embora haja imprecisões e limitações dos modelos de projeção climática, há conclusões concretas de que ocorre uma mudança nos padrões de temperatura”, o que deverá acarretar “prováveis reflexos nas precipitações”.
Soma-se aí a questão pluviométrica, a demanda pelo uso da água em outros setores e mudanças no uso e cobertura do solo (desmatamento), que afetam diretamente o regime de chuvas e as reservas subterrâneas que chegam aos rios. Ainda assim, o plano traz um cenário com oito novas usinas hidrelétricas previstas para entrarem em operação nos próximos dez anos.
Os últimos dois anos já colocaram em xeque o parque gerador hídrico brasileiro. Não à toa foi necessário acionar mais térmicas, sobretudo desde julho de 2021, chegando a um montante de 26% do total de energia consumido no país (17 mil MWmed). As chuvas do fim do ano trouxeram um certo alívio na vazão e nos reservatórios, mas a população brasileira continua e continuará pagando a conta dessa geração termelétrica, em sua maioria fóssil — com fortes implicações para as emissões de gases de efeito estufa—, pelo menos nos próximos 5 anos. O que nos leva a concluir que fica muito difícil planejar à luz da disponibilidade dos reservatórios, sobretudo quando há excessiva dependência na hidroeletricidade, lembrando que estudos indicam que os efeitos do clima sobre o regime de chuvas e reservas hídricas serão cada vez maiores, com previsão de redução de vazões, inclusive na Amazônia.
Na realidade, a ANEEL está tirando do baú projetos antigos, previstos há mais de dez anos como parte do chamado “Complexo Tapajós”, que incluiria grandes barragens polêmicas no eixo principal do rio Tapajós: São Luiz do Tapajós, Jatobá e Chacorão. Em 2016, o IBAMA suspendeu o licenciamento da UHE São Luiz do Tapajós, por graves falhas nos estudos de impacto ambiental, inclusive quanto a seus efeitos cumulativos com outros projetos. Somou-se à justificativa o fato de que alagaria o Território Indígena Sawre Muybu, resultando no deslocamento forçado de comunidades indígenas, o que seria inconstitucional.
Há ainda outros fatores que temperam esse caldeirão de contradições que tenta ressuscitar hidrelétricas já rejeitadas no passado. O Brasil cada vez mais quer entrar na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mas para isso precisa seguir critérios socioambientais bastante rígidos. As questões jurídicas e judiciais que envolvem até hoje as últimas grandes usinas hidrelétricas na Amazônia (Santo Antônio, Jirau,Belo Monte, Teles Pires, entre outras), somadas aos danos ambientais e à violação de direitos de povos originários são pontos negativos para o país.
O Brasil estaria mesmo disposto a ampliar a negatividade no ambiente internacional ao continuar defendendo grandes hidrelétricas, num contexto de mudança climática acelerada e sobretudo num bioma já tão ameaçado? Bioma este que, por outro lado, dispõe de um potencial energético bastante grande para energia solar e as mais variadas fontes de biomassa? Estaria disposto a pôr em risco o bioma e seus habitantes, em disputas jurídicas intermináveis que atrasam e inviabilizam economicamente um empreendimento do porte de uma grande hidrelétrica e das linhas de transmissão necessárias? Lembremos que o custo inicial de Belo Monte foi de R$ 16 bilhões mas até a inauguração da última turbina, em 2019, já passava de R$ 40 bilhões, sem contar o valor do dano ambiental, orçado timidamente em mais de R$ 1 bilhão.
Voltando ao PDE 2031, onde prevê-se para o decênio a insistência na construção das hidrelétricas de Bem Querer, Tabajara e Castanheira na Amazônia, e tendo como supostos argumentos os custos da mudança do clima sobre o setor energético, não faz sentido, num ano eleitoral tão importante, que volte à baila a ameaça de grandes barragens em bacias hidrográficas já tão sensíveis a outros danos como o garimpo ilegal, o desmatamento, a perseguição a lideranças indígenas e comunitárias.
E vale lembrar que ainda existem muitas pessoas sem acesso à energia em torno das usinas. Os municípios sede dos empreendimentos têm IDHs mais baixos na região. E os empregos não são perenes e regionais, visto que requerem mão de obra muito qualificada.
Ao entender esses fatos, vale ressaltar mais uma vez a pergunta do título: a quem interessa novas grandes hidrelétricas na Amazônia?