Artigo publicado na edição de julho de 2024 da revista Conjuntura Econômica|FGB IBRE
Marcelo Miterhof
Economista do BNDES e doutorando em Economia pela Unicamp
Os serviços de transporte coletivo, em especial o de ônibus, enfrentam um momento curioso. De um lado, há perda consistente de passageiros para modos privados, como carros e motocicletas. De outro, a preocupação global com a descarbonização favorece sobremaneira sua priorização.
O transporte público é um clássico exemplo de atividade intensiva em externalidades, isto é, em benefícios econômicos que não são passíveis de serem internalizados nas receitas de uma empresa ou de um projeto. A melhoria de seus serviços não somente favorece quem usa ônibus, metrôs ou trens, mas também melhora a fluidez do tráfego para quem se desloca por meio de carros.
Essa característica sugere que o financiamento deve ocorrer não apenas por meio de tarifas cobradas dos usuários como também por tributos, em especial os incidentes no uso do transporte individual. Na prática, sem subsídios, é difícil otimizar os sistemas de transporte, pois andar de motocicleta, por exemplo, tende a sair mais barato do que pegar metrô ou ônibus.
A competição é desigual. Há um descomunal subsídio ao transporte individual nas malhas viárias, pontes, túneis e viadutos das cidades e das estradas. Afinal, o tráfego de automóveis é o principal determinante da necessidade de capacidade dessas infraestruturas, que tipicamente são financiadas com orçamento público.
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No Brasil, a operação do transporte coletivo é quase sempre financiada pelos passageiros exclusivamente. A falta de subsídios traz ineficiência, favorecendo o transporte individual. A perda de passageiros reduz suas receitas e dificulta seus investimentos, reforçando os problemas da mobilidade urbana como um todo.
Nesse contexto, o setor é historicamente dominado por grupos empresariais que tinham como atividade principal vender ônibus, não transportar passageiros. O mesmo grupo econômico pode conter um revendedor de ônibus e empresas de transporte coletivo em cidades de diferentes portes. Um ônibus era vendido novo para a empresa de uma cidade grande e mais rica, se pagando em poucos anos pela arrecadação tarifária. Depois de depreciados, podiam ser vendidos da primeira transportadora para outra do mesmo grupo em uma cidade menor ou mais pobre, onde novamente será depreciado pela arrecadação tarifária.
Quanto menos custosos, mais facilmente os ônibus cabem na tarifa, o que não favorece a opção por veículos de mais qualidade e durabilidade, por exemplo.
Esse modelo pouco virtuoso foi prejudicado pelo advento dos aplicativos de automóveis, como a Uber e a 99, que intensificou a perda dos passageiros mais rentáveis, os que fazem viagens curtas. A desestruturação foi intensificada pelo choque de demanda ocorrido com a pandemia da Covid-19.
Se um novo modelo há muito era necessário, agora talvez seja imperioso. Esse movimento ainda é reforçado pelas crescentes preocupações ambientais. O transporte coletivo é intensivo também na correção de externalidades negativas associadas à emissão de gases do efeito estufa e outros tipos de poluição, como a de material particulado e a sonora.
Como destacam meus colegas de BNDES Filipe Souza e Clarissa Vaz em artigo ainda no prelo sobre os ônibus elétricos e a descarbonização da mobilidade urbana, do ponto de vista climático, os veículos que transportam mais passageiros são mais eficientes, mesmo se movidos a combustíveis fósseis. A emissão será ainda menor se os passageiros usarem ônibus elétricos e metrôs.
Para mudar, os subsídios são cruciais. Pedágios urbanos, cobranças por estacionamento em vias públicas, taxação de combustíveis fósseis são exemplos de formas de obter recursos no sistema de transporte para subsidiar o investimento e a operação dos transportes coletivos. Mas fundos orçamentários públicos, com a participação da União, são necessários para viabilizar os investimentos em sistemas mais dispendiosos, como os metroferroviários.
O BNDES está fazendo um estudo para avaliar as soluções de mobilidade urbana para 21 regiões metropolitanas do país com mais de 1 milhão de habitantes. O banco também começou a estruturar concessões no setor.
O transporte coletivo tem um impacto notável na qualidade de vida da população. Em certa medida, é surpreendente que ele venha avançando lentamente, pois boas iniciativas tendem a ser recompensadas eleitoralmente. Mas as dificuldades que o modelo de prestação sem subsídios passou a enfrentar nos últimos anos configuram uma nova oportunidade.