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Os financiamentos do BNDES na Amazônia nos últimos anos seguiram uma trajetória crescente, em algumas linhas e setores até mais firme do que os desembolsos recordes do banco a nível nacional.
Para os nove estados da Amazônia Legal, à exceção de Roraima, o BNDES tem hoje um valor contratado de R$ 51,37 bilhões, dos quais 82% estão concentrados nos estados do Pará, com 50,6% ou R$ 26 bilhões; em seguida temos Maranhão com 21% ou R$ 10,75 bilhões e Mato Grosso com 10% ou R$ 5,3 bilhões.
O carro chefe dos financiamentos do BNDES na Amazônia são os projetos de infraestrutura energética, de logística e insumos básicos, principalmente mineração. Em síntese, uma carteira de projetos claramente alinhada às estratégias do governo federal de aprofundar a exploração dos recursos naturais amazônicos como parte do padrão de crescimento baseado em commodities geradoras de superávits comerciais. Adicionalmente, uma carteira alinhada ao forte lobby das empreiteiras de oferta de energia com base em mega projetos hidrelétricos.
Juntas, as hidrelétricas de Belo Monte (PA), Santo Antônio (RO), Jirau (RO), Teles Pires (PA-MT), Estreito (TO-MA), Ferreira Gomes (AP) e Santo Antônio do Jari (AP-PA) acumulam investimentos de R$ 73 bilhões, dos quais R$ 47,3 bilhões são financiados pelo BNDES. Sozinha, a hidrelétrica de Belo Monte detem financiamento de R$ 20,61 bilhões, o que corresponde a 79% de todo o valor contratado no estado do Pará.
Igualmente relevantes são os valores contratados para o setor de mineração. No Pará, a Vale tem com o BNDES contratos que somam R$ 2,52 bilhões. No estado no Maranhão, os valores contratados para duplicação da estrada de ferro Carajás somam R$ 3,63 bilhões.
Esses gigantescos financiamentos enfrentam muitas críticas por parte de movimentos e organizações sociais, grupos étnicos e comunidades que, legitimamente, lutam contra a implementação de projetos que trazem nocivos e irremediáveis impactos ambientais, sociais e territoriais nas localidades onde são implementados.
É, em grande medida, para tentar rebater as críticas – seguidas de riscos iminentes de responsabilização legal da instituição pelos danos causados pelas obras que financia – que o BNDES tem defendido a chamada “Política de Atuação no Entorno de Projetos” como sua ação pró-ativa na área socioambiental.
Tal política, formulada entre os anos de 2009 e 2010, é defendida pelo Banco como sua contribuição específica para “mitigar os efeitos negativos que projetos de grande vulto tendem a trazer aos territórios”, em especial na Amazônia brasileira.
Esta formulação está clara no livro “Um Olhar Territorial para o Desenvolvimento: Amazônia“, lançado recentemente. Nele, o banco defende que a sua contribuição para reduzir os impactos dos projetos financiados por ele na Amazônia são os investimentos no entorno dos projetos. Os exemplos vinculados aos financiamentos às hidrelétricas da Amazônia são os mais exaltados:
“Além da geração de empregos e da dinamização da economia regional, os investimentos socioambientais no entorno dos projetos das hidrelétricas estão contribuindo para a melhoria significativa da qualidade de vida da população da região e da preservação do meio ambiente, por meio de ações de melhoria dos serviços de educação, saúde e saneamento básico, regularização fundiária e proteção das Unidades de Conservação e das terras indígenas” (pg. 120).
O que é esta Política e como ela funciona na prática?
Partindo da ideia da existência de um “território do entorno”, definido como a área de influência, direta e indireta, dos estudos de impacto ambiental do projeto, o BNDES projeta como estratégia central da política a formulação de um “planejamento territorial”, capitaneado pelos atores considerados relevantes.
Neste arranjo ideal, a empresa responsável pela construção da grande obra, já licenciada pelo órgão ambiental e financiada pelo BNDES, seria a “interlocutora estratégica” ou “empresa âncora”. Seria ela a responsável por viabilizar os diálogos com os demais atores considerados relevantes pelo BNDES na construção de uma “Agenda de Desenvolvimento para o Território”. Estes atores seriam, por sua vez, o poder público e atores não estatais, como as instituições de pesquisas, o Sistema S, as organizações da sociedade civil.
Com base nesta formulação teórica, o banco defende que além de financiar o projeto e suas condicionantes ambientais ele está promovendo um “algo a mais” que seria, em síntese, um financiamento extra ao empreendedor (interlocutor estratégico) a partir de uma releitura da responsabilidade socioambiental do empreendedor (empresa âncora). E, secundariamente, o apoio financeiro a atores governamentais.
Para enquadrar este discurso dentro da lógica operativa do Banco, foram vinculadas a esta estratégia três principais linhas de apoio já existentes. São elas:
1) O BNDES ISE – Investimentos Sociais de Empresas, uma linha criada em 2006, mas que no contexto desta política opera como parte do contrato de financiamento ao empreendimento. Está vinculada, portanto, a uma negociação banco/empresa, que assume a forma de um subcrédito social como parte do financiamento global ao empreendimento, mas com condições financeiras diferenciadas (basicamente a TJLP, sem taxas adicionais), e também à apresentação e execução, pela empresa âncora, de ações e projetos voltados à comunidade. Como prática já corrente no Banco, essa linha tem um padrão de valor preestabelecido, correspondente a 0,5% do valor do investimento. Em 2012, o BNDES anunciou mudanças nesta linha, com a possibilidade de que este subcrédito seja realizado também por meio de operações indiretas, que são os financiamentos intermediados por outras instituições financeiras.
2) O Fundo Social (FS), criado em 1997 para financiar projetos de caráter social. Os recursos desse Fundo são formados por uma percentagem dos lucros do Banco e não são reembolsáveis. Nos últimos cinco anos, a partir de 2008, os empréstimos vinculados ao FS têm crescido substancialmente, passando de cerca de R$ 6,3 milhões em 2008, para cerca de R$ 147 milhões em 2012. Esse crescimento tem sido acompanhado por maior participação dos institutos e das fundações empresariais, que, no período entre 2008 e 2014, abocanharam nada menos do que 48% dos valores emprestados por este Fundo, o equivalente a R$ 606,41 milhões. Tais dados vão ao encontro da lógica operativa do Banco de articular a Política do Entorno com a Responsabilidade Socioambiental. Não por acaso, o ano de 2008 também é marcado por uma reorientação do Fundo Social, o qual passou a contar com novas diretrizes e, entre elas, a priorização de projetos em localidades onde o BNDES já possui grandes projetos financiados. Entre os exemplos divulgados pelo Banco de como funciona a articulação entre o Fundo Social e a Política do Entorno estão o apoio com recursos do FS para a Fundação Vale e a Fundação Jari, para o desenvolvimento de projetos sociais no entorno de seus projetos.
No caso da Fundação Vale, o Banco cita os projetos sociais implantados ao longo da estrada de ferro Carajás, que atravessa 27 municípios entre o Pará e o Maranhão. Os projetos da Fundação Vale são apoiados com recursos do Fundo Social, que são “não reembolsáveis”, ou seja, custo zero. Vale ressaltar que, entre 2008 e 2014, essa Fundação contratou do Fundo Social o valor de R$ 43,9 milhões, ficando atrás somente da Fundação Banco do Brasil, que no mesmo período recebeu R$ 263 milhões.
No caso da estrada de ferro Jari, construída no Norte do Pará para transportar a madeira plantada que alimenta a fábrica de celulose do Projeto Jari, existe um projeto social no entorno administrado pela Fundação Jari. O BNDES apoia com recursos do Fundo Social os projetos sociais da Fundação e os assumem como parte da sua Política do Entorno.
3) O BNDES FEP – Fundo de Estruturação de Projetos. Nesta linha, o Banco disponibiliza recursos não reembolsáveis para estudos técnicos ou pesquisas, selecionados a partir de chamadas públicas construídas pelo Banco. A primeira, e até agora única, chamada identificada claramente como parte da política aqui em foco foi realizada para o entorno de Belo Monte, em junho de 2012. A chamada teve como objetivo a elaboração de uma Agenda de Desenvolvimento para o Território (ADT). A empresa selecionada para o estudo foi o Consórcio Viva Xingu. Em seu site institucional, o BNDES não disponibiliza o resultado desse estudo.
Além dessas linhas financiamento, outras orientadas aos estados e municípios são apresentadas como parte da lógica de prover ao território as condições para um planejamento estratégico e de longo prazo adaptado à realidade do grande empreendimento que lhe é imposto.
O desenho até parece coerente, mas na prática são os subcréditos sociais e o Fundo Social os carros-chefes dessa política do BNDES. São nestas duas linhas de financiamento que são gastos milhões para dar um verniz de responsabilidade socioambiental.
Os subcréditos sociais em sua maioria para hidrelétricas, mas também para projetos de mineração e infraestrutura, estão vinculados aos contratos de financiamento à obra. Identificamos nos contratos de financiamento do BNDES disponibilizados pela Agência Pública[1] um total de 12 projetos com subcréditos sociais, acumulando um total de R$ R$ 236,93 milhões.
O padrão geral dos contratos estipula como condição para utilização dos recursos a definição pelo empreendedor, seguida ou não de diagnósticos do entorno, de uma lista de projetos não contemplados pelo licenciamento. Os recursos “oferecidos” pelo banco possuem custos ainda mais reduzidos e maiores carências implicando níveis de subsídios mais elevados.
A que tem servido esses subcréditos sociais?
Muito pouco se sabe hoje sobre a efetividade dessa política. O cotidiano do entorno dos projetos segue marcado por relatos sistemáticos de ausência de políticas públicas e de elevados impactos sociais ocasionados pelas obras.
Em paralelo, da parte do BNDES, ele tem sido incapaz de prestar informações mínimas sobre como estes subcréditos estão sendo utilizados e quais os efeitos gerados. Por meio de sucessivos pedidos de acesso à informação, com amparo na Lei de Acesso à Informação (LAI), buscamos identificar como tal política funcionava na prática: quais projetos financiava, quais diagnósticos embasavam tais projetos, quais resultados alcançaram, etc.
Neste caso, todas as perguntas foram laconicamente respondidas com alegação de sigilo bancário e/ou de necessidade de sistematização adicional de informações, trabalho que a LAI não exige.
Além da falta de transparência, são muitos os problemas desta política, começando pela sua concepção. A ideia de que o entorno de uma obra, definido como área de influência direta e indireta do empreendimento, configura uma “promessa de território” que se moldaria social e produtivamente a partir da dinâmica imposta pela chegada da obra – sua atração populacional, suas demandas por produtos e serviços – é ilusória.
As mudanças geradas pela chegada da obra não configuram as condições para o surgimento de Arranjos Produtivos Locais, como faz crer o Banco na sua formulação. Outro equívoco desta formulação é a suposição de que a empresa responsável pela construção da grande obra, a chamada “empresa-âncora”, reuniria as condições – a disposição política e a legitimidade – para viabilizar os diálogos com atores estatais e sociais na construção de uma “Agenda de Desenvolvimento para o Território”.
O que ela faz, na prática, é contratar, subcontratar e gerir um conjunto de outras empresas para “dar conta” das exigências do licenciamento, entre elas a negociação e o pagamento a famílias e grupos atingidos de compensações pelos danos. E naquelas ações que competem ao poder público, o que ela faz é negociar repasses de recursos para o poder público via protocolos e convênios.
A Política do Entorno do BNDES está ancorada, portanto, em uma postura defensiva frente à definição de prioridades estabelecidas em outras instâncias de governo. E, igualmente, em uma postura frágil de responsabilidade socioambiental, que aposta alguns milhões de reais subsidiados na construção de uma legitimidade para a presença do empreendedor e do Banco na região.
Claramente não são estes subcréditos sociais a solução para os impactos gerados pela obra – não mitigados ou compensados pelo licenciamento e exponenciados pela ausência de políticas públicas.
O BNDES, embora se proponha a promover ações adicionais às exigidas pelo órgão licenciador, reproduz a lógica compensatória e mitigadora do licenciamento. O subcrédito social tem sido utilizado para financiar projetos e ações que não se diferenciam dos compromissos previstos no licenciamento e são executados com dificuldades e atrasos.
Em síntese, o BNDES tem utilizado o subcrédito social, e paralelamente o Fundo Social, como instrumentos para legitimar sua atuação no financiamento às obras e tentar reduzir as críticas e pressões sociais contra o Banco, as quais vêm acompanhadas da possibilidade de responsabilização pelos danos sociais e ambientais provocados pelas obras que financia.
Nota
[1] – http://apublica.org/2014/01/novos-contratos-bndes-tornados-publicos/