Por Liana Coll, na Le Monde Diplomatique Brasil.
“Capital do Pantanal e do agronegócio”, sinaliza a placa de entrada da cidade. Buscando conciliar o que parece ser inconciliável, as boas-vindas à capital do Mato Grosso (MT) ocultam o fato de que o agronegócio é uma das atividades que ameaçam o bioma. À expansão do agronegócio, especialmente nas bordas do Pantanal, se soma a instalação de dezenas de hidrelétricas, que vêm alterando a bacia hídrica da região e estão associadas a danos ambientais e sociais. Comunidades tradicionais, cuja ligação com o meio ambiente é fonte de identidade e de sobrevivência, relatam a degradação e um estrangulamento de seus territórios. Rios secos, terra seca, falta de chuva, fogo, insegurança alimentar, empobrecimento e direitos negligenciados formam o contexto de vida em que grande parte destas populações se insere atualmente.
A cerca de 200 km de Cuiabá está a cidade de Cáceres, uma das oito sub-regiões do Complexo do Pantanal e um dos locais mais emblemáticos de um cenário de degradação socioambiental. De Cuiabá ao município, cruzamos por uma região de serra. A fumaça do fogo aparece entre os morros. Estamos em um período de extrema seca no Pantanal. Apesar dos focos de incêndio terem reduzido cerca 40% em relação a 2020, ano em que quase 30% do bioma foi queimado, de janeiro a setembro de 2021 o fogo devastou 778 mil hectares na região, de acordo com o Corpo de Bombeiros do Mato Grosso do Sul (MS). A área equivale a mais de cinco vezes a área da cidade de São Paulo. Junto à seca, a pior dos últimos 60 anos segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres (Cemaden), o fogo é a parte mais visível de um cenário de devastação abrangente.
“Os homens grandes que acabaram com tudo”
Em Cáceres, assim como no Pantanal como um todo, há uma disputa desigual entre projetos de desenvolvimento. “Represar água não mata rio”, disse o governador do Mato Grosso, Mauro Mendes, em entrevista à imprensa local no início de outubro, ao defender a instalação de hidrelétricas no estado. Comunidades ribeirinhas do Rio Jauru, no entanto, discordam. Afluente do Rio Paraguai, o Rio Jauru atravessa cinco cidades, incluindo Cáceres. Em seu curso, estão cinco Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH) e uma Usina Hidrelétrica (UHE), que começaram a operar no início dos anos 2000. Uma sexta PCH, ainda, busca se instalar no rio. A operação dos empreendimentos mudou a vida das comunidades, dentre elas a comunidade Porto Limão. Lá, a deterioração ambiental é tanta que já não é possível ter na pesca uma fonte de renda segura.
“A quantidade de peixe que pegava antes era uma média de 70, 80 quilos por semana. Agora não conseguimos pegar nem dez”, relata Constantino Pires, morador de Porto Limão e pescador profissional artesanal. Às margens do rio, apontando a secura e o assoreamento, processo de elevação do leito e diminuição do fluxo de água relacionado ao desmatamento, ele conta que a instalação das hidrelétricas transformou radicalmente a vida da comunidade. “Desde 2007 para cá, é sempre seca. Seca, seca mesmo. Eles seguram a água. Controlam a água para eles. E você vê, essas PCHs são para gerar energia, mas energia para nós é um absurdo de caro”.
Constantino, de semblante preocupado, também pontua que a operação das hidrelétricas acontece sem consulta às comunidades. “Nunca vieram aqui para saber como está”, diz. O funcionamento dos empreendimentos está causando uma variação brusca na vazão do rio, que ocorre sem um sistema de alarme ou de comunicação às comunidades. Navegar nestas condições é perigoso e já causou acidentes, como no caso do pescador José Carlos de Matos, que chocou o barco com uma pedra e fraturou a coluna. É comum também que as colisões destruam barcos e motores, causando prejuízos nos equipamentos de trabalho que nem sempre são fáceis de sanar. Os riscos e a destruição do Rio Jauru já estão fazendo com que famílias abandonem o local. “As famílias diminuíram muito, antes eram quase 60 famílias, hoje são 45. É muito difícil para nós”, expõe Constantino.
O pescador tem o mesmo nome do pai: Constantino Pires. Sentado na varanda da casa, ao lado da esposa, Maria da Conceição Pires da Veiga, Constantino pai tem o olhar perdido em direção ao Rio Jauru. Ele também era pescador. Há sete anos foi a última vez em que saiu para pescar. Na ocasião, ficou tão decepcionado com a situação do rio que decidiu nunca mais tentar. “Nasci e me criei junto com essa água aí. Mudou tudo. A pesca era uma beleza. Na piracema vinham os lambaris e os peixes grandes tudo atrás”, conta ele, sorrindo. O semblante logo muda para dizer o que aconteceu após a instalação das hidrelétricas. “Depois que começaram essa usina aí acabou o rio. Os homens grandes que acabaram com tudo”. Maria da Conceição complementa dizendo que, agora, precisa comprar carne na cidade. “Tá muito difícil pra comer peixe”.
A história de impactos de empreendimentos, no entanto, envolve ainda outras intervenções na região. A comunidade do Porto Limão foi radicalmente dividida pela construção da rodovia que liga Cáceres e San Matías, na Bolívia. A obra deixou uma parte das famílias espremida entre o asfalto e as fazendas. Sandra Deluque mora nesse local, e diz que a vida tem sido sofrida. “É fazer das tripas coração, um ajuda daqui e outro dali. Se não, passa necessidade. A gente ainda pode ir no rio e pegar um peixinho. Mas e quando não pega? O que vai se oferecer pros filhos? O pessoal fala que o pescador está acabando com o rio, mas não são os pescadores. Essa usina que está acabando com o rio. São muitas, precisamos tomar uma providência, não vamos deixar o nosso rio acabar não. Os homens lá de cima estão acabando com o rio”.
O pescado, em toda a região do Pantanal, é fonte de segurança alimentar para milhares de pessoas e a principal fonte de proteína para populações ribeirinhas. Na região da Bacia do Alto Paraguai (BAP), onde está a comunidade Porto Limão, a maior parte dos peixes capturados pela pesca profissional artesanal são de piracema, espécies cujo ciclo de reprodução envolve um longo processo de migração. O estudo sobre impactos das hidrelétricas previstas para a BAP, encomendado pela Agência Nacional das Águas E Saneamento Básico (ANA) e coordenado pela Fundação Eliseu Alves, aponta que os peixes migradores representam 94% da renda total dos pescadores profissionais artesanais da bacia.
Agostinho Catella, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Pantanal, unidade localizada em Corumbá (MS), coordenou o tema ictiofauna e pesca do estudo. Ele explica que as áreas de alimentação e de crescimento dos peixes de piracema estão nas planícies e as áreas de reprodução nas cabeceiras, na parte mais alta do Pantanal. “São peixes que utilizam a bacia inteira. Eles precisam ter as suas rotas migratórias livres para que possam chegar às cabeceiras. É um ciclo que se faz utilizando a região como um todo. Então para que a gente continue a ter esses peixes e na abundância que tem, é fundamental que todo o ciclo seja resguardado”.
O estudo do qual Agostinho fez parte investigou os temas hidrologia, qualidade de água, ictiofauna e pesca, socioeconomia e produção de energia em nível da BAP, em sete sub-bacias. Tendo como preocupação central os impactos dos 133 empreendimentos hidrelétricos que tentam se instalar na bacia, a pesquisa identificou aqueles locais com maior potencial destrutivo para a implantação das hidrelétricas. Isto é, onde estão as principais rotas dos peixes migradores em cada sub-bacia.
Nas sub-bacias do alto rio Paraguai e do Cuiabá, por exemplo, foram identificados os locais das principais rotas de migração reprodutiva, assim como locais menos importantes para a reprodução de peixes. A instalação de empreendimentos em qualquer ponto estudado, no entanto, trará impacto sobre a conectividade das bacias em algum grau e, portanto, prejuízos aos estoques pesqueiros. Conforme a pesquisa, “as estimativas das áreas de desovas são em média entre 150 e 200 km a jusante do ponto amostral, mas podem chegar a quase 400 km, variando entre sub-bacias e também entre as espécies, indicando a importância de grandes trechos livres para a realização do ciclo reprodutivo das diferentes espécies”.
Mais de 80 pesquisadores conduziram o estudo, que envolveu 23 instituições, dentre elas a Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), a Universidade Estadual do Mato Grosso (Unemat), Universidade Estadual de Maringá (UEM) e a Embrapa. Foi a maior e mais completa pesquisa sobre impactos de hidrelétricas já realizada no Brasil. Os resultados, esperam os pesquisadores, podem embasar decisões sobre licenciamentos, sendo uma oportunidade de impedir que situações como a do Rio Jauru ocorram. Das 133 hidrelétricas propostas, aponta o Agostinho, 30% estão em áreas de conflito e impactariam os usos pré-existentes da água, como a pesca. “Para os construtores, interessa que todas sejam construídas e mesmo essas. Mas nós não temos dúvida: se essas forem construídas, adeus pesca no Pantanal”, afirma.
Os dados do estudo ajudaram, recentemente, no questionamento referente à instalação de seis hidrelétricas no Rio Cuiabá, sub-bacia onde é produzida o maior número de ovas de peixes do Pantanal. A pedido do Ministério Público do Estado do Mato Grosso (MPE-MT), a Vara Especializada de Meio Ambiente de Cuiabá determinou a suspensão do processo de análise e licenciamento ambiental e de emissão de outorgas para empreendimentos na bacia do Rio Cuiabá.
Embora a pesquisa tenha analisado impactos futuros e ajude na tomada de decisões, as consequências das hidrelétricas instaladas já são uma realidade e trazem prejuízos à fonte de alimentação e de renda de milhares de pessoas. Problema que é ainda mais grave com o retorno do Brasil ao mapa da fome. Em 2021, são 85 milhões de brasileiros (41% da população) vivendo algum grau de situação de insegurança alimentar.
No Porto Limão, a diminuição do pescado se une também à dificuldade de cultivar alimentos, em decorrência das inundações ocasionadas pela operação das hidrelétricas. Por esse motivo, moradores também reconfiguraram suas casas, tornando-as mais altas para resistir aos alagamentos.
Diante de todos os impactos e da forma como foram licenciados os empreendimentos hidrelétricos no Jauru, o MPE-MT está movendo uma Ação Civil Pública (ACP) desde 2013. Na ação, o órgão identifica danos ambientais e questiona os processos de licenciamento, classificados como “incorretos, incompletos e inadequados”. Rafael Nunes, biólogo e assessor especial do MPE-MT da Procuradoria de Justiça Especializada em Defesa Ambiental e Ordem Urbanística, analisa que o papel do Poder Executivo não tem sido o de preservação dos recursos hídricos.
A rapidez com que são realizados alguns licenciamentos também é questionada. Estrategicamente, aponta Rafael, não são considerados os impactos cumulativos das hidrelétricas. “Como característica geral de todos os processos de licenciamento no estado, tem a questão de não considerar o impacto cumulativo, por mais que na ecologia esse conceito seja um consenso. A dinâmica de impacto de um curso hídrico é sinérgica. À medida em que se vão se instalando empreendimentos, o impacto não é só uma soma, ele adquire uma característica peculiar. No caso do Rio Jauru, adquiriu a característica de ter variações de vazões no mesmo dia que são absurdas. Se manifesta também com a erosão das margens, através do fenômeno de rios famintos. Como se tem uma variação da vazão muito grande no mesmo dia, as dinâmicas ecológicas do rio, sobretudo a reprodução dos peixes e fixação da vegetação das margens, são prejudicadas ou interrompidas”.
O assessor também assinala que os processos de consulta às comunidades impactadas, no Jauru, foram feitos de forma cartorária, apesar da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário, exigir a consulta livre, prévia e informada às comunidades em relação a empreendimentos que tenham impacto sobre elas.
Uma das últimas movimentações na ACP foi o pedido, acatado inicialmente, de que a Secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso (SEMA-MT) notificasse todas as operadoras das hidrelétricas – Brennand Energia, CPFL, Brookfield e Queiroz Galvão Energética – para que fizessem novo estudo de impacto ambiental. O MPE-MT solicitava também que houvesse regulação da vazão para que o rio não sofresse tantas variações no dia. As operadoras recorreram e ambos os pedidos foram negados liminarmente pelo juiz. “Eles conseguiram recorrer. Até porque se eles fizerem um estudo, vão mostrar que acabaram com o rio”, aponta Rafael. A reportagem contatou as empresas para se manifestarem sobre o assunto. Não houve retorno de nenhuma. A SEMA-MT também foi procurada e a secretária Adjunta de Licenciamento e Recursos Hídricos, Lilian Ferreira dos Santos, chegou a agendar entrevistas, no entanto desmarcou em uma ocasião, não atendeu em outra e, após, não retornou mais o contato.
“Para eles, nós nem existimos”
O caso do Rio Jauru é emblemático no que diz respeito aos impactos sociais, econômicos e ambientais de um projeto que não leva em consideração as comunidades tradicionais, tampouco a fauna e o bioma como um todo. Mas não é o único. Também em Cáceres, próximo ao Porto de Morrinhos, nas margens do Rio Paraguai, pescadores montam acampamentos durante os oito meses de liberação da pesca. O rio Paraguai é um afluente do Rio Paraná, que desce até o Uruguai e se conecta a outros rios, integrando a Bacia do Prata e conectando-se, por fim, ao Oceano Atlântico. É estratégico para o setor logístico, portanto, e para fortalecer o projeto de o MT no circuito não só de produção, mas de escoamento de commodities.
Nessa região, há projetos de construção de dois portos: o Porto do Barranco Vermelho, do Terminal Portuário Paratudal, e Porto Fluvial de Uso Misto de Cáceres. Ambos integram o projeto da Hidrovia Paraguai-Paraná (HPP). A HPP foi proposta em 1987, com o fim de conectar bacias de cinco países: Brasil, Paraguai, Argentina, Uruguai e Bolívia. A proposição diz respeito a uma hidrovia de uso industrial, que abrange um curso de 1,75 milhão de quilômetros quadrados, com uma via de quase 3.500 quilômetros navegáveis, e surgiu dentro da Iniciativa para Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). A IIRSA transformou-se depois em Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (Coseplan), com um modelo baseado em integração financeira, visando ampliar a exploração do território pelo agronegócio. A Coseplan criou oito rotas para a integração, sendo o MT atravessado por quatro delas. A HPP é criada, nesse sentido, para fazer escoamento de produção desde Cáceres até Nova Palmira, no Uruguai.
O ponto inicial da hidrovia, ao norte, está justamente próximo aos acampamentos dos pescadores, em Cáceres. Pescadores da região do Porto de Morrinhos, ouvidos no dia 11 de setembro, não entendem como seria possível a passagem de embarcações de grande porte para o transporte de grãos se até embarcações pequenas enfrentam dificuldades de navegação devido à secura do rio. “Esse rio é grande, largo, mas você pode passar só num lugarzinho. Se sair, cai no seco. Tem lugar que nem no canal tá passando. E isso que o nosso motorzinho passa em qualquer lugar. Imagina os grandes”, observa Gonçalo Pereira Leite, 53 anos, que conta ser desde sempre pescador, “nascido e criado na beira do rio”.
Se é que se pode dizer que há algo de bom na seca, reflete a pescadora Nilza da Silva, é o alerta sobre as condições de navegação do rio. “Foi até bom ter tido essa seca nesse ano que é pros governantes verem que o nosso rio Paraguai não comporta esses dois portos aqui na cidade. Vão fazer o que aqui? Se tivessem feito esses portos, como essas balsas estariam navegando? Teria assoreado mais ainda o rio”.
O licenciamento dos dois portos está suspenso devido à ação do Ministério Público Federal (MPF), movida contra o Ibama, a Sema e a Associação Pró-Hidrovia, constituída de produtores de grãos. A decisão levou em conta o fato de que estavam sendo construídos os portos sem o licenciamento da hidrovia.
Além da preocupação com os portos, os pescadores de Porto de Morrinhos, assim como os do Rio Jauru, enfrentam a seca e a redução de peixes. Em todos os acampamentos em que paramos, os relatos coincidem na observação sobre a gravidade destes dois fatores.
Ruth Lourença tem 53 anos e há 18 anos é registrada como pescadora profissional. Antes, foi empregada doméstica na cidade, e encontrou na pesca uma forma de independência depois de sofrer adversidades no casamento. A pescadora é a matriarca do acampamento, onde a acompanham filhos e netos, e diz que não gosta de ir para a cidade. Só foi para tomar as duas doses da vacina contra a Covid-19 nos últimos meses. “Eu não gosto [da cidade] por causa do ar. Aqui é outra coisa. Isso aqui é a minha vida”.
Mas a vida tem mudado na beira do rio. Neste local, em 2020, ela viveu um momento difícil, quando o fogo avançou sobre a região. Preocupada especialmente com um neto que tem problemas respiratórios, colocou a criança em uma caixa d’água, cobriu com um lençol e assim o protegeu da fumaça.
As mudanças no meio ambiente a preocupam. Papagaios, araras, periquitos e abelhas são animais que Ruth diz não ver mais. “Até eles têm impacto, não tem alimento para eles. Isso é doído porque até sabão que você deixa aí em cima a saracura pega. Faço bastante comida pra poder jogar para eles. Eu não faço só para nós, faço para os coitadinhos que não têm nada de comer. Aqui no Pantanal eu nunca tinha visto uma coisa dessa. Você não vê peixe subindo, não vê cardume. Tem gente que não consegue fazer a carga, dá mais prejuízo que lucro. Até o começo do ano passado ainda teve um peixinho, mas depois desse incêndio acabou. A seca veio demais”.
Além da seca, outra causa que possivelmente incidiu sobre a diminuição de peixes foi a decoada. A decoada é um fenômeno natural, que ocorre no Pantanal no início do período de chuvas e as águas chegam às planícies, onde encontram vegetação e matéria orgânica e ocorrem processos de oxidação que diminuem o nível de oxigênio dos rios e aumentam os níveis de carbono. Com a alteração da qualidade da água, muitos peixes agonizam e morrem. A presença das cinzas das queimadas potencializa ainda mais o processo.
Assim como a decoada, o desequilíbrio entre os períodos de seca e de cheias no Pantanal também pode estar sendo intensificado por ações humanas. Para Marina da Silva Lara, pescadora profissional, não há dúvida de que as hidrelétricas, por exemplo, tiveram impacto. “Tem hidrelétrica no rio Jauru, que já secou, tem no Cabaçal e no Sepotuba. São três rios que desaguam no Paraguai, então secou tudo. Quando vê já tá pronta a hidrelétrica, a gente nem fica sabendo, porque nós somos peixe pequeno para esse povo. Eles que mandam, eles que fazem e resolvem tudo. Para eles, nós nem existimos”, diz.
Sentado ao lado de Marina, está o seu companheiro, Ulisses da Cruz Nunes. Também pescador, ele é conhecido como Japão, devido aos olhos puxados, que na verdade vêm da sua origem guató, etnia indígena do Alto Paraguai, um dos povos mais antigos do Pantanal. Ulisses fala pouco e se restringe a comentar que nasceu e se criou na beira do rio, mas as coisas estão mudando. “Sou pescador já há muito tempo, vivo da pesca. Antigamente tinha muito peixe, hoje em dia já acabou, mudou muito”. Com 59 anos, Ulisses terá o tempo de aposentadoria aos 60, o que alivia o casal. “Dá um alívio, porque isso aqui é cansativo. Um dia nós saímos uma hora da tarde, voltamos às 4h30 e conseguimos pegar dois pintados. No outro dia saímos às 19h, chegamos 15 pras 5h para pegar um pintado”, relata Marina, levantando o dedo indicador e repetindo: “UM pintado”.
“Pesado demais”, fala o casal quando faz as contas de quanto de gasolina gasta para chegar ao acampamento e deslocar-se até um local bom para a pesca. São cerca de 80 litros de combustível, aproximadamente R$500, para o trajeto. “O pessoal diz ‘tá nervoso vai pescar’. Hoje se ficar nervoso é melhor nem ir pescar porque vai ficar mais ainda. A gente rala, enfrenta o sol todo o dia, perde a noite e às vezes é pra pegar nada”, diz Marina, que é diabética e ultimamente tem enfrentado problemas de pressão alta. Por conta do tratamento precisou ficar 12 dias sem pescar. “Tô com 58 anos mas tô cansada. Tô muito cansada. A gente sempre foi bem pobre mesmo, minha mãe era lavadeira e com 8 anos de idade já fui trabalhar em casa de família como babá. São 50 anos trabalhando, tô cansada”.
Liana Coll é jornalista na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutoranda em Ciência Política na mesma universidade. Desenvolve também reportagens independentes, como o trabalho realizado no Pantanal, que contou com apoio da Rede de Comunidades Tradicionais Pantaneira. Autora do livro Elite econômica e política: a filantropia empresarial como forma de constituir um governo dentro do governo, publicado pela editora Telha em 2021.