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Academia e ongs protestam contra intervenção, com recursos e autorização federais, para manter fluxos do agro e da mineração.
Via ((o)) eco
Vítima de seca, temperaturas e incêndios recordes, o Pantanal tem seu principal curso d’água, o Rio Paraguai, novamente dragado para escoar produtos agropecuários e minerais, mas cientistas e ongs avaliam que isso prejudicará o bioma todo, áreas protegidas, povos de indígenas a tradicionais.
Distribuído sobretudo no Brasil e com parcelas menores na Argentina, Bolívia e Paraguai, o Pantanal é uma das maiores áreas úmidas e abrigo de vida selvagem do planeta.
Seus 170 mil km2, similares ao ocupado pelo Uruguai, são lar de ao menos 380 espécies de peixes, 580 de aves e mais de 2,2 mil diferentes plantas, sem contar animais icônicos como a onça-pintada, o tamanduá-bandeira e o cervo-do-pantanal.
Além dessa biodiversidade, essa região natural única sul-americana resguarda economias, culturas e populações urbanas e rurais, tradicionais e indígenas, todas dependentes da saúde dos ambientes naturais.
Um dos pilares disso tudo são as cheias e vazantes pantaneiras, orquestradas pelo lento escoar das águas, chuvas e mais de 1.200 rios e córregos que fluem, sobretudo, de terras altas no Cerrado. Mas, todo esse sistema pode desabar.
Leito cavocado
A seca deste ano trouxe novamente calor excessivo e incêndios recordes. Chuvas mais firmes foram previstas para novembro. Até lá, o Pantanal deveria ser alvo de cuidados especiais.
“Precisamos evitar que a água saia rapidamente do Pantanal”, diz Pierre Girard, do Centro de Pesquisas do Pantanal (CPP) e professor associado do Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Na prática, governos agem na contramão. Trechos do Rio Paraguai são dragados para aprofundar seu leito e permitir o transporte contínuo de grãos e minérios. A grande maioria serve a mercados externos.
Até meados de agosto, haviam sido retirados 110 mil m3 de sedimentos da porção norte do manancial, entre Cáceres (MT) e Corumbá (MS), suficientes para encher 44 piscinas olímpicas.
Há décadas executado nesse trecho, o trabalho é disparado por “ordens de serviço” do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) baseadas em licenças do Ibama para “dragagens de manutenção”.
As intervenções vão até dezembro e contam com R$ 81 milhões do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Elas incluirão o trecho sul do rio, de Corumbá a Porto Murtinho (MS), na fronteira com o Paraguai.
Chamada geral
Contudo, ao mesmo tempo em que prometem manter o fluxo de commodities, as dragagens podem formar um “grande ralo”, esvaziar a planície alagável e catapultar prejuízos socioambientais e econômicos.
O alerta vermelho foi remetido à Presidência da República, ministérios e governos dos estados pantaneiros numa carta de quase 40 cientistas. Confira aqui a íntegra.
O documento lembra que o Rio Paraguai, naturalmente navegável por 8 meses anuais, atingiu em abril a cota mais baixa já monitorada. Assim, dragá-lo pode tirar água também de cidades, hidrelétricas, pesca e turismo.
“Que se adote formas menos impactantes, mais viáveis e racionais, como o uso de um sistema de transporte multimodal, incluindo ferrovias e rodovias, com base em tomadas de decisão adaptativas às condições hidrológicas e de navegabilidade, em especial nos períodos de seca anuais e em anos caracteristicamente mais secos”, pedem os pesquisadores.
Isso reduziria riscos ecológicos sobretudo no trecho norte do Rio Paraguai, tido como o “coração do Pantanal”. A região abriga valiosas amostras da biodiversidade e de cenários do bioma em áreas protegidas como a Estação Ecológica Taiamã e o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense.
O bioma é listado como patrimônio nacional na Constituição Federal de 1988 e parcelas do mesmo são reconhecidas como Patrimônio Natural da Humanidade pelas Nações Unidas e abrigam Sítios Ramsar, globalmente importantes para conservar áreas úmidas.
Conforme os autores da carta relataram a ((o))eco, só a Secretaria Nacional de Hidrovias e Navegação, ligada ao Ministério de Portos e Aeroportos, a respondeu, marcando uma reunião para este 24 de setembro.
Insistência fluvial
Remover sedimentos do Rio Paraguai reforça o projeto de uma hidrovia de 4 mil km para escoar commodities de Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai ao Exterior, mostrou reportagem especial de ((o))eco.
Caso a via fluvial seja garantida, governos e setor privado esperam baratear exportações hoje carreadas por rodovias ou ferrovias sobretudo a portos no Sudeste e Sul. Menos de 10% das cargas brasileiras passam por hidrovias.
“Mas há uma insistência na hidrovia [Paraguai-Paraná]”, constata o diretor da ong Ecologia e Ação (Ecoa), Alcides de Faria. Para ele, com nível baixo do Rio Paraguai os trens são a melhor maneira para conter prejuízos ambientais.
“Estradas e rodovias pantaneiras foram construídas na grande maioria sobre aterros e podem colapsar com cargas tão pesadas”, explica.
Uma alternativa ferroviária em voga é o trecho de 755 km da Ferronorte, entre Rondonópolis (MT) e Santa Fé do Sul (SP) e, dali, ao Porto de Santos. O projeto também conecta cidades e portos na Amazônia.
Ao mesmo tempo, consolidar a hidrovia com dragagens, remoção de rochas e retificação de rios aumentará a produção de soja, milho, cana e minério de ferro no Pantanal, bem como o assoreamento dos rios e córregos.
A área com agropecuária nas bacias afluentes do Rio Paraguai saltou (64%) de 8,7 milhões de hectares para 14,2 milhões de ha, de 1985 a 2020, mostra o MapBiomas. O aumento foi sobretudo de pastagens para gado.
Um dos efeitos é o crescente sufocamento de rios formadores do Pantanal, como Taquari, São Lourenço e Piquiri. “O agro quer transportar commodities ao mesmo tempo em que joga sedimentos nos rios”, diz Pierre Girard (CPP).
Régua climática
Dragagens e outras obras previstas para o Rio Paraguai parecem igualmente não pesar os efeitos da crise climática sobre o bioma. Seguem jogando no curtíssimo prazo.
“Tivemos secas por anos ao longo das décadas, mas nunca com tanto calor”, descreve Pierre Girard (CPP). “É evidente que as condições naturais do bioma estão mudando”, avisa.
A secura retornou a quatro estados nordestinos e avança forte em outros 15 estados este ano, incluindo os pantaneiros Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, indica um monitoramento da Agência Nacional de Águas (ANA),
Enquanto isso, a temperatura média no Pantanal subiu 4ºC desde 1980 e as piores projeções elevam o patamar para 10ºC até o fim do século, junto com mais 182% de ondas de calor, mostra o Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (Lasa), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
“Isso trará ainda mais condições para secas, incêndios e avanço do agronegócio em áreas hoje alagáveis do Pantanal”, alerta Alcides de Faria (Ecoa).
Já um artigo publicado na revista Science of The Total Environment questiona a viabilidade da hidrovia Paraguai-Paraná justamente diante das “mudanças climáticas atuais e projetadas”.
“O Rio Paraguai é a última grande paisagem fluvial no centro da América Central ainda com uma estrutura quase natural. Ele representa um patrimônio biocultural do povo brasileiro e do mundo inteiro”, diz o texto, assinado por mais de 40 cientistas.
Ao jornal The Guardian, o Ministério de Portos e Aeroportos, pilotado pelo deputado licenciado Silvio Costa Filho (Republicanos/PE), afirmou que o artigo tinha “opiniões” sem “elementos científicos que as sustentassem”.
Tratando feridas
Além de avaliar com olhar científico e conhecimentos tradicionais e indígenas planos mirabolantes como o da Hidrovia Paraguai-Paraná, outras medidas podem aliviar o sofrimento de ambientes e povos pantaneiros.
Para Pierre Girard (CPP), é urgente recuperar nascentes e a força de rios e outros cursos d’água que mantêm o bioma vivo, muitos deles barrados já nas regiões de planalto.
“Conservar a água deveria ser sempre um primeiro objetivo”, destaca. “Para isso é necessário aprofundar estudos, mas é sempre mais fácil liberar recursos para obras [como à dragagem] do que para a ciência”, afirma o pesquisador.
Alcides de Faria (Ecoa) afirma que a crise do clima reforçada pelos fenômenos La Niña e El Niño exige que governos e demais setores ajam fortemente em temas como prevenção e combate a incêndios.
Segundo ele, sem contratar e treinar brigadistas e endurecer a fiscalização sobre o que ocorre nas fazendas, a situação será ainda pior nos próximos anos. “Esse modelo que desmata e depois taca fogo para renovar pastos não dá mais”, diz.
Mais de nove em cada dez ha do território pantaneiro pertencem à iniciativa privada. Atualizaremos a reportagem caso o DNIT atenda aos nossos pedidos de entrevista.
Texto originalmente publicado em 5 de setembro de 2024.