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“Há retrocessos absurdos”, avalia entidade após decreto sobre a cana

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Plantação de cana-de-açúcar lindeira a área de floresta; Unica afirma que novo programa barra desmatamento para plantio. (Foto: Divulgação)

Via Campo Grande News

Por Humberto Marques

Plantação de cana-de-açúcar lindeira a área de floresta; Unica afirma que novo programa barra desmatamento para plantio. (Foto: Divulgação)

O decreto baixado pelo presidente Jair Bolsonaro que, nesta quarta-feira (6), suspendeu a legislação federal de 2009 que proibia a instalação de usinas de açúcar e destilarias de álcool no Pantanal – e, em tese, abriria brecha para a cultura na região, na Amazônia e outras áreas de preservação–, surpreendeu entidades ligadas à proteção do meio ambiente na planície pantaneira e, ainda, é alvo de análise entre os produtores. A medida foi anunciada na terça (5) dentro de ato alusivo aos 300 dias da atual gestão federal e deve ser alvo de contestações na Justiça diante de um possível “vazio jurídico” que revalidaria regras estaduais sobre o tema.

Bolsonaro anulou os efeitos do decreto 6.961/2009, que tratava do zoneamento ecológico e econômico da cana no país. Textualmente, a legislação proibia a cultura no Pantanal e na BAP (Bacia do Alto Paraguai), bem como na Amazônia, áreas de preservação permanente, terras indígenas e outras áreas protegidas. Sua revogação teve, entre os argumentos, o de que o Código Florestal de 2012 previa regras mais modernas para o regramento da cultura e preservação de ecossistemas –embora não seja tão objetivo quando o texto anterior acerca das áreas onde a cultura estava banida e reforce o papel de órgãos estaduais no licenciamento das atividades.

Diretor-presidente da Ecoa (Ecologia e Ação), André Luiz Siqueira lembra que o zoneamento de 2008 foi resultado “de uma luta muito antiga que vencemos, inclusive com o apoio do governo federal que, agora, revoga o decreto”. Anos antes, em 2005, a gestão do então governador Zeca do PT levou à Assembleia proposta para liberar a exploração de cana-de-açúcar no Pantanal, desencadeando uma série de protestos que culminaram na morte do ambientalista Francisco Anselmo Gomes de Barros (o Franselmo), que ateou fogo no próprio corpo em pleno calçadão da Barão do Rio Branco, durante ato contra a medida.

Agora, com a medida recém-anunciada, Siqueira afirma que ONGs e outras entidades ligadas ao meio ambiente devem se debruçar sobre as legislações vigentes para saber qual passará a valer. Em Mato Grosso do Sul, um decreto de 1982 do ex-governador Pedro Pedrossian, modificada ao longo dos anos, veta até hoje a cultura no Pantanal.

“Temos essa possibilidade, então, estamos nos mobilizando com uma rede de organizações da sociedade civil para dar os encaminhamentos, entender esse decreto e, depois, pressionar o Estado para que não adira a isso. Até porque, se a lei de 1982 vale, ainda há o status de proteção”, explicou o diretor-presidente da Ecoa, reiterando, ainda, que “ninguém esperava um decreto como esse”. Apesar disso, ele também alerta que essa legislação estaria “muito defasada” em relação às pesquisas sobre os biomas pantaneiros.

Siqueira também rebateu argumentos de que, em termos de legislação federal, o Código Florestal seja mais restritivo que o decreto de 2009. “Há muitos observatórios, pesquisadores e representantes da sociedade civil que atuam com a ciência mostrando que os avanços do código ficaram aquém do esperado. Nem o CAR (Cadastro Ambiental Rural) conseguimos finalizar para discutir a recuperação de áreas degradadas e compensações”, afirmou.

Queima de cana em Nova Alvorada do Sul, região onde atividade é permitida. (Foto: PMA/Divulgação/Arquivo)

O ambientalista ainda reforçou que o Código Florestal estabelecia que ecossistemas específicos deveriam ter regras próprias para aumentar o grau de preservação. “Desde 2011 estamos discutindo a Lei do Pantanal (também de alcance federal) e nada avançou”, criticou. “Isso vai dar muita margem a interpretação”. Siqueira ainda lembrou que o zoneamento ecológico e econômico foi elaborado a partir de investimentos públicos que, agora, serão descartados.

A expectativa é de que as entidades ambientais acionem o MPF (Ministério Público Federal) em busca de resguardo judicial contra a mudança na legislação. “Só ele tem condição, talvez, de derrubar o decreto que, pelo que entendo, é frágil”, disse, esperando o apoio de empresários de setores como o turístico e segmentos da sociedade dos municípios que seriam impactados.

Por fim, o ambientalista lamentou a necessidade de mais, uma vez, entidades do setor serem obrigadas a retirar o foco de temas atuais para voltar a debater questões que consideravam superadas. “Estamos em um país onde se vive sempre na defensiva pois não há tempo de propor coisas novas. Ainda discutíamos um documento para os governos melhor fiscalizarem as queimadas e mudar o cenário para o ano que vem (em contraponto ao aumento no número de incêndios registrados neste ano), quando vivemos uma situação catastrófica, para sofrer uma nova cacetada. Não conseguimos evoluir, propor coisas novas, porque sempre há retrocessos absurdos”.

Avanços – Procurada, a Semagro (Secretaria de Estado de Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável, Produção e Agricultura Familiar) informou que ainda aguardava mais informações do governo federal antes de se posicionar sobre a questão, porém, deve analisar o tema e suas implicações em reunião nesta quinta-feira (7). A reportagem não conseguiu contatar a assessoria do Ministério da Agricultura para obter mais detalhes sobre a medida.

Da mesma forma, a direção da Biosul-MS (Associação dos Produtores de Bioenergia do Estado, entidade que reúne as destilarias de álcool do Estado) não foi localizada. Contudo, a Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar), em nota assinada por seu presidente, Evandro Gussi, posicionou-se favorável à derrubada do decreto por Bolsonaro, indicando que a mudança representa regras mais rígidas e que há, hoje, exigências impostas pelo Renovabio (política de combustíveis do governo federal aprovada em 2017) que impede o desmatamento entre seus associados.

“As exigências de proteção ambiental deixaram de ser apresentadas como imposição de limites para se transformarem em práticas em que o produtor/empreendedor é o primeiro interessado em assumir níveis cada vez mais exigentes. Isso por dois motivos: vemos cada vez mais valor nisso e o consumidor vê mais ainda”, frisou a nota, ao apontar que os usineiros já tomaram medidas como o fim de queimadas de palha da cana para a colheita e investiram em qualificação e tecnologia para a colheita.

“Redobramos essa aposta com o Renovabio – a nova Política de Biocombustíveis aprovada em 2017 e que, depois do período de regulamentação, entra em atividade em 2020 – num amplo consenso entre setor produtivo e governo, decidimos que seria política de desmatamento zero ‘na veia’, como diriam os mais jovens. Para ingresso no programa, a grande aposta do setor, nem mesmo o desmatamento permitido em lei será aceito. Desmatou, está fora do Renovabio, pois o etanol, e todos os nossos produtos, devem ser sustentáveis do início ao fim”, destaca a Unica.

Ainda conforme o comunicado, a revogação do zoneamento agroecológico da cana faz parte dessa modernização. “Esse instrumento que teve seu papel no passado, ficou justamente lá, um passo atrás, servindo apenas como mais um dos tantos arcabouços burocráticos brasileiros diante da modernidade do Código Florestal e do comprometimento absoluto do setor em avançar ainda mais naquilo que fazemos de melhor: contribuir, mesmo quando o sol se põe, para que o Brasil seja o líder global da mobilidade sustentável”, finaliza o comunicado.

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