Por Michael Esquer, O Eco
A maior planície alagável do mundo e a primeira grande terra indígena (TI) homologada pelo Governo Federal – também uma das maiores do País – estão se aproximando do ponto de não retorno por conta da ocorrência de incêndios ambientais catastróficos.
Nos últimos 20 anos, a probabilidade de ocorrência de grandes incêndios aumentou de 2,2% para 10,7% na TI Parque Indígena do Xingu (número quase 5x maior) e de 1,2% para 11% no Pantanal (número quase 10x maior), e deve continuar aumentando com o agravamento das mudanças climáticas, falta de chuvas e aridez do ar.
O cenário, também resultado de altas taxas de desmatamento e avanço da agropecuária, representa uma ameaça para a biodiversidade e povos indígenas que vivem nas duas regiões. O alerta consta em estudo financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e recém-publicado na revista científica Environmental Research Letters.
Rattis participou da pesquisa junto com outros sete cientistas do Centro Helmholtz de Pesquisa Ambiental (UFZ), na Alemanha, Instituto Federal de Tecnologia de Zurique (ETHZ) e Universidade de Bern, na Suíça, e Universidade da Califórnia (UCI), nos Estados Unidos. De acordo com a investigação, a possibilidade de aumento de 3ºC da temperatura da atmosfera projeta para os próximos anos um aumento de 26% no risco de incêndios no Pantanal. No Xingu, enquanto isso, a escalada deve ser de 24,7%.
“A combinação de extremos de seca e aridez estão tornando os incêndios nas regiões do Xingu e do Pantanal cada vez maiores”, explicou a pesquisadora no ETHZ Andreia Ribeiro, que coordenou a pesquisa.
Mudanças climáticas e ação humana
O estudo avaliou o ponto de não retorno utilizando mais de uma variável de uma só vez. Foram testadas, entre outros fatores, a umidade do solo, evapotranspiração, temperatura, aridez do ar e o déficit de chuva para responder a pergunta: o que explica a ocorrência de incêndios catastróficos no Pantanal e na TI Parque Indígena do Xingu.
O resultado encontrado foi que a maior planície alagável do planeta é muito mais vulnerável a incêndios do que o Xingu. As duas regiões, porém, estão muito próximas desse ponto de virada, onde podem perder suas características originais por conta do fogo. “O Pantanal está mais próximo desse ponto de não retorno, porque ele é muito mais sensível do que o parque indígena do Xingu”, comentou Ludmila.
A pesquisadora explicou que são vários os fatores de degradação que possibilitam a vulnerabilidade e a consequente suscetibilidade ao fogo dos dois ecossistemas. Entre eles, estão os três principais: o desmatamento, mudanças climáticas e a fonte de ignição (fonte do fogo).
O clima mais propício para o fogo está sendo dado pelas mudanças climáticas globais e pelo desmatamento, que acaba mudando também o clima local, alertou a pesquisadora. O combustível, por sua vez, também se dá pelo desmatamento, com a criação de bordas e degradação das florestas.
“Uma floresta que vai sofrendo aos poucos, ela vai jogando folha, galho no chão, as árvores vão morrendo, tudo vai virando combustível. Se a gente continuar riscando o fósforo da maneira como a gente risca, de propósito ou não, as chances do incêndio catastrófico ocorrer aumentam”, disse Rattis.
Este cenário ao mesmo tempo retroalimenta os riscos de incêndios catastróficos, explica Rattis: “Uma área queimada não faz mais evapotranspiração, se ela não faz mais evapotranspiração, ela descontinua a ciclagem da água, se ela descontinua a ciclagem da água vai chover menos, e se chover menos ano que vem vai ser pior”.
Riscos à povos indígenas
“O aumento de incêndios florestais no Xingu pode acelerar a inflamabilidade da paisagem e possivelmente levar a uma morte das florestas tropicais, causando um aumento de quatro vezes na mortalidade das árvores e, portanto, comprometendo o lar e a sobrevivência das comunidades indígenas dependentes dos recursos florestais”, diz trecho do estudo.
Com mais de 2,6 milhões de hectares, o Parque Indígena do Xingu (PIX) situa-se em uma área de transição entre Cerrado e Amazônia e abriga mais de seis mil indígenas de 16 etnias diferentes, na região norte de Mato Grosso. O Pantanal, por sua vez, que divide-se entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, faz fronteira com o Cerrado, Amazônia e Chaco e também abriga, pelo menos, sete povos indígenas.
Ludmila explica que esta realidade faz com que sejam eles, os povos originários das duas regiões, os mais afetados pelos incêndios, apesar dos efeitos também serem refletidos de forma democrática contra o resto da população que vive em centros urbanos. Entre os motivos estão, por exemplo, a falta de estrutura, assistência logística e médica que os indígenas enfrentam para controlar os incêndios e seus impactos.
“O efeito chega só que o impacto ele vai se diferenciando porque as pessoas que estão próximas à cidades elas conseguem ainda algum tipo de assistência para apagar esses incêndios. No caso das populações que estão mais longe distantes dos centros urbanos, elas são as mais prejudicadas pelas mudanças climáticas. São as que menos causam e são as mais prejudicadas pela questão dos incêndios.”
Dados recentes
De janeiro até esta segunda-feira (18), a TI Parque do Xingu registrou 135 focos de incêndio e teve mais de 27 mil hectares consumidos pelo fogo. Os números já são, respectivamente, 55% e quase 30% maiores do que os registrados durante o mesmo período de 2021 (87 focos e pouco mais de 21 mil hectares).
No Pantanal, 720 focos de calor já foram registrados entre janeiro e esta segunda-feira (18). O número, porém, ainda é 4% menor do que o registrado durante o mesmo período do ano passado (750). Apesar da diminuição, a área queimada é 30% maior. São mais de 128 mil hectares deste ano contra mais de 97 mil do ano passado.
Os dados são do Programa Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do sistema de alertas do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa/UFRJ).
Ação conjunta pode limitar impactos
O estudo aponta que ações climáticas efetivas para reduzir a emissão de gases de efeito estufa e desacelerar a taxa de aquecimento devem agir em conjunto com a boa gestão do fogo e proteção ambiental da biodiversidade e das comunidades indígenas, que protegem a floresta e possuem conhecimentos únicos sobre práticas sustentáveis.
A investigação conclui que se o “potencial total” para mudanças climáticas não for atingido e formas mais efetivas de prever e controlar o fogo forem tomadas, consequências de eventos críticos que ameaçam o Xingu e Pantanal podem ser prevenidas. “Isso exige ser capaz de prever onde e quando grandes incêndios podem ocorrer, no prazo que permita aos gestores agir de forma proativa e criar sinergias entre o conhecimento científico, local e indígena”.
O estudo ainda calcula que se o planeta for capaz de limitar a elevação da temperatura média em 1,5°C, o aumento da probabilidade de incêndios pode ser reduzida em até 14,4% nos incêndios florestais e agrícolas no Xingu. O Pantanal por sua vez, deve ter redução de 12,4% para incêndios em pastagens e áreas úmidas.
A ((o))eco Rattis relembrou, no entanto, que este limiar de 1,5ºC em relação ao período pré-industrial, já pode ser ultrapassado, conforme sugerem acordos internacionais, o que projetaria uma realidade ameaçadora tanto para o Xingu quanto para o Pantanal no que diz respeito a probabilidade do aumento do risco de incêndios ligados ao contexto climático. “A gente faz as contas ‘o que vai acontecer no mundo se o aquecimento global ficar em até 1,5ºC, 1,8ºC, 2,1ºC?’. A gente saiu da COP26 e se tudo que foi falado ali fosse cumprido, a gente estaria em 1,8ºC, então a gente já tá acima desse limiar de 1,5ºC”.