Entre os dias 10 e 11 de julho, representantes de organizações da sociedade civil e de segmentos de povos e comunidades tradicionais do Cerrado de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul estiveram reunidas em Cuiabá (MT) para o Encontro Regional do Núcleo MT-MS da Rede Cerrado.
A Ecoa, juntamente com o Ceppec (Centro de Pesquisa e Capacitação do Cerrado), e o Instituto Cerrado Guarani, representou o estado de Mato Grosso do Sul no evento. Durante o encontro — preparatório para o 11º Encontro e Feira dos Povos do Cerrado — foram debatidos os principais desafios da luta por territórios e direitos no bioma, além de pontos estratégicos para o fortalecimento da Rede Cerrado.
Entre as atividades propostas, os participantes se dedicaram à revisão da Carta de Princípios da Rede Cerrado, considerada um dos documentos norteadores da articulação nacional; à construção coletiva de um processo de nucleação regional, com vistas ao fortalecimento das ações nos territórios; e à articulação da participação dos estados de MT e MS na edição nacional do encontro, que será realizada em Brasília, de 10 a 13 de setembro de 2025.
Cerrado invisibilizado
Embora sejam os guardiões do bioma Cerrado e peças-chave no enfrentamento da crise climática, os povos e comunidades tradicionais seguem enfrentando o apagamento de suas histórias, a negação de seus direitos e a omissão do Estado diante das ameaças aos seus territórios.
“Muitas pessoas nem sequer sabem que existem povos tradicionais e ancestrais no Cerrado. Ter 22 segmentos [de PCTs] é a força do Cerrado, porque é uma diversidade. E uma coisa que poucas pessoas sabem é que alguns desses segmentos só existem no Cerrado. E têm um padrão de vida completamente ligado ao bioma”, destacou Ingrid Silveira, secretária-executiva da Rede Cerrado.
Além disso, o cenário atual — marcado por retrocessos ambientais e pelo avanço de grandes empreendimentos — foi pauta central nas discussões. Diante desse contexto, reafirmou-se a urgência de estratégias coletivas, intergeracionais e enraizadas no território, que garantam a continuidade dos modos de vida tradicionais.
Empreender com identidade: uma estratégia de resistência
Em meio aos desafios, Altair de Souza, agroextrativista e representante do Ceppec, propôs que, ao mesmo tempo em que os povos e comunidades tradicionais sigam firmes na luta pela terra e por representatividade política, é preciso fortalecer o empreendedorismo com identidade sociocultural como estratégia de afirmação e autonomia.
Ele destaca que muitos grupos já vêm desenvolvendo experiências próprias de empreendedorismo, com base em seus conhecimentos e formas de organização comunitária, conciliando geração de renda com conservação e recuperação ambiental e valorização do modo de vida tradicional.
Desenvolvimento para quem?
Entre os muitos alertas que marcaram o encontro, a agroextrativista Rosana Claudina, do Ceppec, chamou atenção para as armadilhas do modelo de desenvolvimento imposto às comunidades do Cerrado. Ela destacou como a vulnerabilidade econômica tem sido explorada para justificar a entrada de grandes empreendimentos que chegam “recheados de atrativos”, prometendo empregos e arrecadação, mas que, com o tempo, impõem perdas profundas – e quase sempre irreversíveis – aos modos de vida locais.
Segundo Rosana, essa lógica perversa associa pobreza à cultura tradicional e riqueza ao que vem de fora, levando muitas comunidades a aceitarem essas promessas em nome da sobrevivência imediata. Gestores públicos, por sua vez, pressionados por metas de arrecadação, tornam-se coniventes com esse processo. “Nosso modo de vida é visto como pobre demais. Eles dizem que a gente tem que prosperar, ter dinheiro, alcançar o tal desenvolvimento. E a gente, por não reconhecer o valor do nosso território, às vezes acha que chegou a hora de aproveitar”, afirmou.
Reafirmar a legitimidade dos modos de vida tradicionais — não como carência a ser superada, mas como riqueza a ser protegida — é fundamental. E isso passa, especialmente, pela valorização da geração de renda com base no território e no conhecimento ancestral.
Nesse contexto, Fábio Martins, assessor jurídico da Rede Cerrado, reforçou a importância dos protocolos de consentimento livre, prévio e informado, previstos na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho)*, e defendeu que os próprios povos e comunidades devem conduzir os processos de debate e decisão sobre seus territórios.
*Tratado internacional sobre os direitos dos povos indígenas e tribais