Texto originalmente publicado em: 26/12/06
Após três anos e 11 meses à frente do Ministério do Meio Ambiente, Marina Silva viu, nos últimos dias, a questão ambiental ser alçada ao topo das prioridades nacionais – só que listada como entrave, não como aliada, e pelo próprio Presidente da República. Assumidamente desconfortável com a inclusão do licenciamento ambiental na lista das barreiras ao crescimento econômico, ela insiste que “crescimento” precisa ser acompanhado de um adjetivo: “sustentável”.
“Se não for sustentável, não é desenvolvimento, é a repetição das catástrofes que nós estamos vendo e combatendo”. Segundo a ministra, problemas com licenças ambientais são limitados a poucos empreendimentos, como a usina hidrelétrica de Belo Monte e transposição do rio São Francisco, ambos paralisados pela Justiça. Os problemas, diz, devem ser procurados em outros setores -sem apontar quais.
Quando Marina voltou de uma conferência sobre clima no Quênia, na semana passada, o governo já havia deflagrado debate sobre a necessidade de mudanças na legislação ambiental. O debate, revela a ministra, inclui uma nova regra para a chamada compensação ambiental, mecanismo pelo qual empreendimentos destinam percentual proporcional ao dano que causaram a unidades de conservação .
No cargo desde o primeiro dia de mandato de Lula, Marina não sabe se ficará no cargo após o final do ano. Ela ainda não conversou com o presidente sobre o tratamento da questão ambiental como vilão no mais recente debate do desenvolvimento. Mas não nega as pressões: “Todo dia, a gente pega uma cobra pelo rabo e um boi pelo chifre”.
FOLHA – O presidente Lula pôs a questão ambiental na lista de entraves ao crescimento. Os ambientalistas reagiram, seu secretário-executivo, Cláudio Langone, falou que o setor não seria “bode expiatório”. De que lado a sra fica?
MARINA SILVA – O Langone usou uma força de expressão. Existe um conjunto de fatores que precisam ser tratados em relação ao crescimento econômico. O setor ambiental não pode, no meu entendimento, ser tratado nem como o que dificulta nem como o que a priori facilita.
FOLHA – Há pressão para que o Meio Ambiente relaxe na concessão de licenças ambientais?
MARINA – Ninguém pode propor a um gestor público que relaxe o cumprimento da lei. O presidente Lula está tratando do conjunto dos problemas. Quando chegamos aqui, o setor de licenciamento tinha sete pessoas do quadro efetivo. Por decisão do presidente, aumentamos em 30% o efetivo do ministério e do Ibama. O Ibama vai poder chamar mais 300 concursados. No caso do setor ambiental, a eficiência do órgão de licenciamento expõe também alguns problemas dos empreendedores.
FOLHA – Qual é a avaliação que a sra. faz hoje da eficiência do licenciamento ambiental?
MARINA – Nos últimos oito anos [governo FHC], a média de licenciamento no Ibama era de 145 licenças por ano. Atualmente é de 225 licenças. Quando chegamos aqui, tínhamos 45 empreendimentos parados por decisão judicial. E é engraçado que não havia um levante neste país em decorrência disso.
FOLHA – A que a sra. atribui então o tal “levante”?
MARINA – Eu acho que é o conjunto das coisas. Imagino que há vários outros problemas, em relação a vários outros setores.
FOLHA – Por exemplo?
MARINA – Num país como o Brasil, que nos últimos dez anos tem tido dificuldades de crescimento, não se pode reduzir a um ou outro aspecto o problema do crescimento. O meu ministério faz parte do processo, mas está muito longe de estar na estrutura do problema.
FOLHA – A sra. elogia a legislação ambiental, mas mudanças foram discutidas com o presidente em 17 de novembro, pelo menos o envio ao Congresso da regulamentação do artigo 23 da Constituição. Muda substancialmente o processo?
MARINA – Isso foi uma discussão que fizemos com o Parlamento, com o Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente], com os Estados, com as prefeituras e com a sociedade civil. O acordo estava fechado 100% e em fevereiro foi encaminhado à Casa Civil. É a questão das competências do licenciamento. Existem alguns empreendimentos que são de competência dos Estados e outros que são da União. Com a regulamentação, vamos evitar esse tipo de questionamento. Aliás, um dos grandes problemas do licenciamento são estudos precários. Nós já tivemos casos em que as pessoas colaram fotografias da internet de uma cachoeira na Venezuela, de algum lugar aí.
FOLHA – Há algum setor do governo com menos sensibilidade para a questão ambiental?
MARINA – Não é uma questão de sensibilidade, é uma questão de objetividade. Um país que tem 165.000 km2 de área desflorestada abandonada ou semi-abandonada pode dobrar a sua produção de grãos sem precisar derrubar mais um pé de mato. Por que não lançar mão da tecnologia existente na Embrapa pra fazer isso no lugar de fazermos uma coisa superatrasada que é derrubar floresta e destruir biodiversidade?
FOLHA – Alguém defende isso no governo?
MARINA – Não sei se tem dentro do governo. Acho que, infelizmente, essas idéias ainda estão na sociedade. Pelo menos pela minha experiência, nestes 3 anos e 11 meses que estou aqui, temos trabalhado a partir dessa visão: meio ambiente não é uma camada de dificuldade ao desenvolvimento, é a única forma de fazer um desenvolvimento com condições de ser duradouro, virtuoso.
FOLHA – Esse modelo esteve algum momento em risco nesse debate?
MARINA – Olha, eu sempre brinco com minha equipe que todo dia a gente pega uma cobra pelo rabo e um boi pelo chifre.
FOLHA – A sra. sente desconforto?
MARINA – Se eu fizer um retrospecto, não vou encontrar momento confortável. Durante esses anos todos desde que me tornei ambientalista, aos 17 anos, tem sido desconfortável. No debate deste momento, é importante que fique claro que licenças foram dadas e obras licenciadas não foram iniciadas.
FOLHA – Qual é a possibilidade de permanência no comando do Meio Ambiente no segundo mandato?
MARINA – O presidente está fazendo conversas com partidos da base aliada. Eu e a minha equipe trabalhamos com a mesma paixão com que começamos até o dia 31 de dezembro de 2006, se assim o presidente entender e se assim eu entender também que será. Agora, eu acho que existe um patamar de conquista do primeiro governo dele que, da mesma forma como foi capaz de conciliar o equilíbrio econômico com a questão social, terá de ser capaz de conciliar o crescimento econômico e a questão ambiental.
FOLHA – Quando a sra. diz “se assim eu entender também”, há uma sugestão de que o desconforto do debate inviabiliza sua permanência?
MARINA – Eu ainda não conversei com ele [Lula] sobre isso. Como ministra e responsável pelo setor ambiental, minha obrigação é fazer com que essa discussão fique do tamanho que ela deve ser: o meio ambiente não é o vilão do desenvolvimento. Os países em desenvolvimento têm cerca de 50% de seu PIB a partir da sua biodiversidade. Quem, em sã consciência, quer sacrificar 50% de seu PIB?
FOLHA – É fácil dialogar com a ministra Dilma Rousseff [Casa Civil]?
MARINA – A ministra Dilma é uma pessoa muito competente, muito segura do ponto de vista dela. E eu, ainda que não tenha a competência que ela tem, também sou muito segura dos meus pontos de vista.
FOLHA – E eles são convergentes?
MARINA – Olha, quando se é governo, dois lados não podem se colocar em oposição. A ministra Dilma quer o desenvolvimento, mas tenho certeza de que também quer a proteção dos recursos naturais. A ministra Marina quer a proteção dos recursos naturais, mas também quer o crescimento econômico. Só que o meu crescimento econômico eu adjetivo, ele tem de ser sustentável, se não for sustentável não é desenvolvimento, é a repetição das catástrofes que estamos vendo e combatendo, é estar na contramão da história.