Infopetro/Por Ronaldo Bicalho
O que caracteriza a transição elétrica é a incerteza associada ao processo de mudança da matriz elétrica em direção às novas energias renováveis. Essa incerteza é intrínseca a transformações radicais como a vivida pelo setor elétrico em seu atual momento evolutivo.
Em duas postagens anteriores – O setor elétrico em transformação e Notas sobre a introdução de energias renováveis variáveis e o futuro do setor elétrico – foram abordadas os aspectos fundamentais dessa transição. Nesta postagem, o objetivo é discutir as consequências dessa incerteza.
No Grande Sertão: Veredas, Guimarães Rosa escreve que: “viver é muito perigoso porque ainda não se sabe”. Em outra passagem, o escritor mineiro afirma: “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.
Portanto, ao invés de analisar a saída e a chegada, vale a pena se concentrar na travessia como ensina o velho Rosa. Porque é dela que se trata a discussão em tela.
A palavra transição dá uma ideia de passagem de um ponto a outro, de mudança de um estado a outro; de caminho e trajeto. Findo o processo, são conhecidos perfeitamente o início e o final, assim como o caminho percorrido entre um e outro. Porém, esse conhecimento no início e durante o processo depende, em muito, da radicalidade da mudança nele envolvida. Quanto mais profunda a mudança, maior a incerteza gerada por ela.
A introdução das novas energias renováveis, na proporção colocada pelas necessidades impostas pela mudança climática, representa uma ruptura radical na trajetória de evolução do setor elétrico desde o seu nascimento no final do século XIX. Nesse sentido, a transição elétrica é um processo que pode-se identificar o ponto de partida, mas o ponto de chegada e a trajetória para alcançá-lo são efetivamente desconhecidos. Em outras palavras, a transição elétrica é um processo em aberto; um projeto em evolução.
Isto significa que não estão definidos: 1) a maneira como o setor elétrico escolherá as suas tecnologias e definirá a sua base técnica; 2) a maneira como ele organizará a sua cadeia produtiva e as suas empresas; 3) a maneira como ele determinará os preços dos seus serviços e financiará a sua expansão; 4) a maneira como serão definidas as intervenções do Estado, tanto no âmbito regulatório quanto na esfera própria às políticas públicas.
Dessa maneira, o que marca a transição elétrica é a inexistência de padrões técnico, organizacional, econômico e político-institucional; com todas as implicações sobre a operação e a expansão do setor que advêm dessa ausência de padrões.
Reconhecer a falta de referências sólidas que permitam ancorar de alguma maneira a transição e, acima de tudo, as expectativas sobre essa transição, é necessário o enfrentamento real dos desafios impostos pelas mudanças radicais em curso.
Dada a radicalidade da mudança, o recurso ao passado é de pouca serventia. A ideia do pendulo que vai ad infinitum de um polo a outro é uma simplificação interpretativa simplória da complexidade real imposta pelo inexorável transcorrer do tempo.
Nesse contexto, o revival noventista com seu apelo à liberalização dos mercados elétricos, acompanhada em alguns casos de privatizações, soa mais como oportunismo político/intelectual do que contribuição efetiva para a construção de uma agenda de enfrentamento dos problemas reais do setor. Enfim, é a velha nostalgia do fracasso das viúvas dos anos noventa – acadêmicas, regulatórias e políticas.
Se a experiência noventista, baseada em conceitos desenvolvidos nos anos 1980, portanto respondendo, na melhor das hipóteses, a um contexto evolutivo de mais de trinta anos atrás, serve para algo é para reforçar as palavras de Norberto Bobbio sobre os labirintos; como o que nos encontramos na atual quadra do setor.
“Acreditamos saber que existe uma saída, mas não sabemos onde está. Não havendo ninguém do lado de fora que nos possa indicá-la,devemos procurá-la nós mesmos. O que o labirinto ensina não é onde está a saída, mas quais são os caminhos que não levam a lugar algum.”
Em função disso, ao se defrontar com os desafios da transição elétrica brasileira, que tem uma radicalidade própria advinda da exaustão do modelo baseado nos grandes reservatórios, há que ser ter clareza sobre o tamanho desse desafio e sobre qual é o papel das referências colocadas na mesa tanto em temos de experiências externas quanto pretéritas.
Nesse sentido, é bom não subestimar nem a estatura desse desafio, nem superestimar a valia dessas experiências. Aqui o relevante é valorizar a nossa própria experiência, a nossa travessia; dando às experiências internacionais em curso a sua real dimensão. Sem aggiornamentos fora de propósito. Como aqueles observados nos anos 1990.
Para terminar, cabe lembrar o velho Rosa para definir esse mundo elétrico em dramática transformação: “É, é o mundo à revelia!” Pode ser desconfortável não sabermos as respostas, porém reconhecer essa ignorância é fundamental para definir as estratégias de sobrevivência e as possibilidades de avanço nesses tempos incertos nos quais estamos metidos.