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Os Guatós e o encontro com Florence na Barra do rio São Lourenço – “Embocadura do rio São Lourenço”

11 minutos de leitura
Barra de São Lourenço (Foto: Iasmim Amiden / Arquivo Ecoa)

-O rio São Lourenço desemboca no rio Paraguai, no Pantanal, entre MS e MT. Publicação da Universidade de São Paulo com  rota de viajantes.

Via: Alfaria blogspot

 

34. Embocadura do Rio São Lourenço

[ Rio São Lourenço (Poconé) ] – MT
12/1826

 

 Trecho da Obra:

Latidos de cães e canto de galos ao anoitecer. Estamos numa região habitada, dos Dourados, que consolação! Nós aportamos e em poucos instantes chegam algumas canoas dos guatós. Naquelas onde tem uma família, o marido rema estando em pé na frente; a mulher, sentada na parte traseira, governa com um remo único, e as crianças estão sentadas em esteiras no fundo da canoa. Os homens vestem um calção de pano comprado dos brasileiros, em troca de peles de onça e de tigre. As mulheres usam uma saia do mesmo tecido, ou de indiana. As moças estão nuas, mas têm na frente uma massa de cordões de tucum suspendida a um cordão amarrado na cintura que, por quanto elas possam se mexer, as mantêm sempre cobertas. A tendência de pôr de se vestir desses índios representaria um testemunho favorável de seu pudor, se sua nudez representasse um vício; mas, no estado da natureza, a nudez é um estado de inocência. Todavia, o pudor acompanha sempre a mulher, mesmo quando ela ainda não tem sentido o sentimento de sua nudez, que ela percebe somente quando vem a usar um traje, que desde então será indispensável para ela.

Entre os guatós que vieram visitar-nos, tem um velho que parece não apreciar as novas modas: ele está inteiramente nu como seus pais e, como alguns selvagens dos mares do Sul, tem o membro suspendido a um cordão que lhe passa na cintura.

Os homens deixam seus cabelos crescerem, que [281] prendem e erguem e atam no alto da cabeça, num topete flutuante. As mulheres e as crianças os repartem sobre a testa, deixando-os caírem sobre os ombros. Às orelhas, todos eles usam pingentes de plumas vermelhas, pretas e de cores variadas. Suas canoas são as menores que o homem inventou. Um guató sentado na popa de sua canoa, e observado de trás, a esconde todo, parece sentado numa concha. Todavia, são com essas embarcações que eles percorrem o Paraguai, suas baías, e a grande baía de Guaíba, que tem duas léguas de fundo, que ainda não vimos, pois ela é demasiado a oeste dos Dourados. Os guatós são mais numerosos nas margens dessa baía, onde têm três aldeias.

Eles são hábeis pescadores, matando o peixe com a flecha. O jacaré representa seu alimento principal, tanto pelo seu tamanho quanto pela grande quantidade. Eles são igualmente caçadores hábeis. Ousados em atacar a onça, antes começam provocando-a e a ferem com suas flechas, para atraí-las; então a esperam então com sua azagaia, e raramente são vítimas de sua coragem.

Eles trocam com os brasileiros, recebendo panos, azagaias, machados e facas em câmbio de muitas peles de guaribas e bugios, duas espécies de macacos; das belas peles de lontra e das ainda mais preciosas peles de tigre. Foi com os guatós que comecei a ver a pele desse animal, em tudo parecida com a da onça, à exceção da cor mais clara, amarelada meio avermelhada, manchada de círculos pretos, enquanto a do tigre é toda preta, cheia das mesmas manchas, as quais, observadas de um lado, são mais pretas que o fundo, e do outro lado são mais claras, e o fundo torna-se preto azeviche: efeito que, unido ao brilho do pelo, dá a essas belas peles uma cor cambiante, um tom furta-cor como os veludos ver e a seda preta trabalhada.

Pouco inclinados a cultivar a terra, os guatós [282] semeiam um pouco de milho e plantam apenas algumas raízes de mandioca, de cará e de aipim. Recolhem os cachos de um bananal considerável, plantando antigamente por um antigo sertanista, não longe dos Dourados, na margem esquerda do São Lourenço, e o arroz selvagem que cresce nos brejos do Paraguai, fornecendo uma colheita infinitamente superior à sua consumo necessidade.

Toda a sua indústria consiste na fabricação de mosquiteiros tecidos grosseiramente com uma cordinha feita de folhas de tucum (pequena palmeira espinhosa); sob os quais dormem para se proteger dos mosquitos. Da mesma maneira, fabricam um tecido quadrado guarnecido com uma franja, que eles chamam matapá, do tamanho de um pequeno lenço, que eles atam pelos dois ângulos de um lado às extremidades de um pequeno pau, e que eles utilizam constantemente para mandar embora os mosquitos. Cada um tem o seu e não o deixa senão para dormir. Tal é a inconveniência dos mosquitos. Os guatós são pouco numerosos; acho que eles não chegam a 500. Eles são bem feitos, dedicam-se à caça e à pesca e se preocupam pouco em construir boas cabanas. Sua pele é escurecida pelo sol, e seus traços são menos americanos mongólicos do que os guanás.

Dizem que eles praticam a monogamia, mas não pude verificar. Um dia perguntei para um guató que estava numa canoa com três mulheres se elas eram todas suas; ele me respondeu que sim. Digo então se ele quer me dar uma delas; ele me perguntou se eu trouxera a minha; diante da minha resposta negativa, ele acrescentou que se a tivesse trazido, poderíamos fazer uma troca. Mas nada demonstra que, entre as três mulheres, duas não fossem suas parentas ou amigas, e talvez sua resposta afirmativa fosse apenas derrisória. Muito diferentes dos guanás, esses selvagens são ciumentos de suas mulheres, que eles amam, sendo por elas amados. Eles amam igualmente suas crianças que, na maioria dos casos, têm uma fisionomia interessante.

Sua linguagem é precipitada (aquele dos guanás é lenta, e molemente acentuada), eles falam muito por monossílabos que eles alternam brevemente um ao outro. Para dizer sim, limitam-se a uma aspiração rápida do ar, sem acompanhamento da voz, como alguém que sente um estremecimento entrando na água fria. Então, essa palavra, que é tão curta em todas as línguas, o é ainda mais pelos selvagens.

Os guatós nos acompanham sempre, aumentando de número, pois a cada cabana na frente da qual passamos, os habitantes se juntam aos nossos a nós. Eles nos fazem [283] companhia até o pouso, em número de 30 ou 40, entre homens, mulheres e crianças, e Mr. o Cônsul, entendendo bem o motivo de tal simpatia, doa-lhe abundantemente do que comer. [284]

Chegamos de madrugada na embocadura do São Lourenço, onde paramos o dia inteiro e o dia seguinte. Nosso acampamento é situado entre o dos guatós, à esquerda, e o dos guanás que nos acompanham desde Albuquerque. Ambos improvisam umas espécies de barracas com folhas de palmeira, com esteiras ou com peles; mas chega a chuva e eles vêm abrigar-se em nossas tendas. Desde esse dia até o primeiro de janeiro, avistamos às vezes barracas de guatós. O São Lourenço está em cheia e a correnteza é mais forte: subimos com uma lentidão devastadora. Quando, no final de um dia de labuta, percorremos duas léguas, temos avançado bem. [284]

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[A rota da viagem de Hercule Florence foi elaborada em parceria com o Instituto Hercule Florence]

 

FLORENCE, Hercule. L Ami des Arts Instituto Hercule Florence, 2015,  281-284. Obra(s) relacionada(s): http://www.ihf19.org.br/pt-br/hercule-florence/lami-des-arts

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