Michael Esquer, O Eco
Considerada uma das principais veias de abastecimento do Pantanal, além de ícone cultural que dá nome à capital de Mato Grosso, o Rio Cuiabá assiste, desde o último ano, um imbróglio jurídico em torno de um projeto que ameaça o seu estoque pesqueiro e sustentabilidade hídrica: o complexo de seis pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) proposto pela Maturati Participações S.A. e Meta Serviços e Projetos LTDA.
Em meio à um movimento contrário, protagonizado por ribeirinhos, parlamentares, organizações socioambientais e diversos outros setores da sociedade, os empreendimentos sofreram, na última semana, uma derrota. A Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT) aprovou um projeto de lei (PL) que proíbe a construção de usinas em toda a extensão do Rio Cuiabá.
Apesar disso, os riscos denunciados persistem. Isso porque o PL ainda aguarda a sanção ou o veto de Mauro Mendes (União Brasil), governador do Mato Grosso, que já chegou a chamar a lei de absurdo, em 2021. Ao mesmo tempo, também há na Justiça ações questionando a legalidade do veto feito por Assembleias Legislativas no País à obras de infraestrutura da área de energia.
Na última manifestação à Secretaria de Estado de Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT), os responsáveis pelo projeto do complexo de usinas solicitaram sua suspensão e disseram estar complementando o documento de estudo de impacto ambiental, que ainda deve ser apresentado à pasta e à sociedade.
As usinas, por sua vez, estão previstas para serem instaladas em um trecho de 190 km do rio em áreas de seis municípios mato-grossenses, sendo eles: Cuiabá, Várzea Grande, Jangada, Nobres, Acorizal e Rosário Oeste. A Bacia do Alto Paraguai (BAP) já tem 47 hidrelétricas em operação e mais de 130 projetos de PCHs que miram rios que, assim como o Cuiabá, atuam na regulação dos ciclos de cheia e vazante do Pantanal.
Estudo de impacto de hidrelétricas na BAP, feito pela Agência Nacional de Águas (ANA), caracteriza o rio como zona vermelha para implantação de empreendimentos hidrelétricos, principalmente pelo papel importante de manutenção do bioma pantaneiro. A investigação também concluiu que 89% dos peixes do Rio Cuiabá são de piracema, ou seja, são migradores, que transitam entre o curso d’água e o Pantanal. O rio é ainda responsável pela produção do maior número diário de ovos de peixes migradores durante a piracema entre todos os cursos d’água da BAP.
O Rio Cuiabá e o Pantanal
A bacia hidrográfica do Rio Cuiabá (BHC) percorre uma área de mais de 22 mil km quadrados e está localizada em Mato Grosso. Seu rio principal, o Cuiabá, possui cerca de 750 km de extensão, percorrendo também o estado de Mato Grosso do Sul, até a confluência com o Rio São Lourenço. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as nascentes do Rio Cuiabá estão na encosta da Serra Azul, em Rosário Oeste e surgem, hidrograficamente, da junção dos então denominados Rios Cuiabá da Larga e Cuiabá Bonito.
A BHC também integra a BAP, depressão que abriga o Pantanal, bioma situado na região da bacia chamada de Planície, e o Planalto, onde nascem os demais cursos d’água, como o Rio Cuiabá, que, por sua vez, alimentam o restante da bacia pantaneira. Os rios, que nascem em Mato Grosso e escorrem para Mato Grosso do Sul também são responsáveis pelo controle dos ciclos de cheias e vazantes do bioma pantaneiro.
“O Rio Cuiabá é um dos rios de maior porte da região. Nós temos o Rio Cuiabá, o Rio Paraguai, o Rio Taquari, nós temos aqui do lado também o Rio São Lourenço, que são as principais veias de acesso do Pantanal. São os pequenos afluentes que chegam no Rio Cuiabá, e nesses outros grandes rios, para formar a planície de inundação”, explica Ibrahim Fantim, especialista em recursos hídricos do Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
O especialista conta que o bioma só é alagado por conta da chuva que cai na parte alta da BAP, no Planalto. Depois dessa chuva, a água escoa através dos rios, como o Cuiabá, para a Planície, onde está o Pantanal. Devido ao baixo inclinamento, a água inunda e transborda lateralmente. “Então esse transbordamento lateral e sazonal, nós temos anos recorrentes, todo ano a gente tem os pulsos de inundação, que mantém essa biodiversidade. O que mantém a biodiversidade do Pantanal, de fauna, de flora, toda a biodiversidade associada, é esse regime de seca e cheia”, diz.
Além disso, Fantim explica que o rio e o bioma pantaneiro trocam nutrientes e, ainda, são parte da rota migratória de peixes durante a piracema. “As lagoas marginais do Pantanal são as áreas de crescimento de peixes. O rio enche, os peixes vão para as lagoas marginais para crescer e depois retorna pro rio, então tem uma dinâmica associada, isso é estratégico para conservação. Dependendo dessas condições hídricas, [se] você alterar esses componentes, tanto de característica hidrológica quanto de característica da qualidade da água, [você] vai afetar diretamente esse equilíbrio que é bastante frágil no Pantanal”.
“Se acabar o rio acaba tudo”
Em São Gonçalo Beira Rio, comunidade de ribeirinhos que fica em Cuiabá, a reportagem de ((o)) eco foi recebida por Manoel da Silva, de 69 anos de idade. Ele é um dos vários pescadores da região que, além do alimento, também tiram do rio o sustento com a confecção de canoas.
Na margem direita do rio, onde uma canoa semifinalizada está ancorada no barranco, fica a cabana em que ele vive. A possibilidade de construção das seis PCHs no curso d’água, cujas margens alimentam ele e a família, imprimem em sua mente um cenário de desesperança. Ele conta que os pedidos de canoas, que diminuem com frequência, podem ser ainda mais impactados. “Faço [as canoas] pra mim, faço para os amigos. É cultural. Se acabar o rio acaba tudo”, comenta.
Entre as pausas entre uma encomenda e outra, ele nos conta que o ofício é uma tradição que ele acredita que não poderá repassar para a geração que ela deixa na comunidade. O desaparecimento de espécies típicas da região, por exemplo, é um alerta que ele entende bem: os peixes podem acabar.
“Vai acabar, vai secar e vai dar muita morte [para os peixes]. Eu toda vida pesquei aqui. Pacu mesmo já não tem mais, você pegar um pacu aí é só desse tamanhinho, porque de primeiro não pegava esses pacuzinhos, era só o grande. E os netos nossos? Os filhos, [antes] tudo, saía do serviço e já vinha panhar o anzol e já vinha dar uma pescada, já pegar peixe, agora não pega mais não”, conta.
Os donos de peixarias, estabelecimentos responsáveis por mais um componente da cadeia turística e econômica da região, também compõem o rol de segmentos que podem ser impactados com a construção de empreendimentos hidrelétricos no Rio Cuiabá. O ribeirinho Edgar Rodrigues de Barros, de 57 anos, é um deles.
Natural de Barão de Melgaço, a 126 km de Cuiabá, ele recebeu ((o))eco durante uma manhã de segunda-feira, na Peixaria Barão. O comércio é administrado por ele e sua família em São Gonçalo Beira Rio. À reportagem ele contou que a fonte de renda da família está ameaçada com a extinção de peixes. O fenômeno, relata, não é raro e têm sido, cada vez mais, testemunhado por ele e outros moradores da região.
“Hoje, nós ribeirinhos, pescadores, dependemos totalmente das peixarias. Sem a água o peixe fica escasso. Já não tá dando mais de tirar o peixe do rio, aí com essas usinas aí, aí vai ser instaurado o caos de uma vez no rio”. Edgar, que diz conhecer o Pantanal de ‘ponta a ponta’, acredita que o complexo de seis usinas, caso seja construído, pode ser o ultimato final para o bioma e para a sustentabilidade das famílias que dependem do rio. Neste momento, por exemplo, a Peixaria Barão sustenta, sozinha, ele, o filho, a nora, o neto e mais dois funcionários.
“Se continuar desse jeito, ainda mais querendo fazer essa instalação de usina aí, que tá tramitando aí, a gente pode não ter água nem para abastecer a cidade. Não temos condição de aceitar usinas no rio Cuiabá. É o Pantanal, que praticamente já tava morto, que vai ser o mais prejudicado, com certeza.”, alerta.
Usinas ameaçam estoque pesqueiro do rio e do Pantanal
Entre todos os rios que integram a BAP, o Rio Cuiabá é o responsável pela maior produção diária de ovos de peixes migradores durante a piracema. No período reprodutivo, cerca de 100 milhões de ovos são produzidos, por dia, no rio. O segundo lugar fica com o Rio Paraguai, com uma produção equivalente a cerca de ⅕ desse valor.
Em relação à produção de larvas de peixes, o ranking se inverte. A maior produção ocorre no Rio Paraguai, com um fluxo diário de aproximadamente 20 milhões de larvas. Na segunda colocação, o Rio Cuiabá hospeda cerca de 8 milhões de larvas por dia. Os dados fazem parte dos “Estudos de avaliação dos efeitos da implantação de empreendimentos hidrelétricos na Região Hidrográfica do Paraguai”, contratados pela Agência Nacional de Águas (ANA), e demonstram a importância do curso d’água para a migração de peixes entre o rio e o Pantanal.
Desenvolvida pela Fundação Elizeu Alves, em um período de aproximadamente quatro anos, o estudo foi publicado em 2020, esquematizando as zonas de risco e conflito para a implantação de empreendimentos em toda a BAP. Os resultados caracterizaram Cuiabá como uma área vermelha para a implantação de usinas.
Agostinho Carlos Catella, de 61 anos, biólogo e pesquisador da equipe de Recursos Pesqueiros da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Pantanal, coordenou o tema “Ictiofauna, ictioplâncton e estatística pesqueira” da pesquisa, eixo responsável por avaliar os efeitos da implantação de usinas sobre a ictiofauna da BAP, avaliando o impacto sobre as populações de peixes. Ao ((o))eco, ele disse que as preocupações de Edgar e Manoel, abordados no início da reportagem, são reais e podem, sim, se concretizar.
“Para os peixes de piracema, o maior impacto negativo dos represamentos é a desconexão dos ambientes das cabeceiras e dos ambientes da planície do Pantanal. Isto é, eles interrompem o trânsito livre dos peixes migradores entre as áreas de alimentação e desenvolvimento nas planícies e as áreas de desovas nas cabeceiras. Desse modo, o barramento dos rios impede que os peixes tenham acesso a todas as áreas de reprodução localizadas a montante da barragem, o que acarreta prejuízos para a reprodução, para as populações e, consequentemente, para a pesca”, conta o especialista.
O mesmo estudo da ANA também constatou que a BAP origina a captura de R$ 4,9 toneladas de pescado e renda anual de R$ 69,8 milhões, com um total de 7.667 pescadores profissionais artesanais ativos durante a temporada de pesca. Desse total, a bacia do Rio Cuiabá é responsável por de 2,3 toneladas da captura pescado (46,5% do total), 4.142 pescadores (54% do total) e renda anual estimada em R$ 29,3 milhões (42% do total). Os números, de 2018, refletem a importância do estoque pesqueiro para a região.
Transporte de sedimentos
Além da conectividade de peixes migradores, o Rio Cuiabá também possui outra importante função: transportar sedimentos para o Pantanal. Esses materiais sólidos definem a morfologia fluvial – forma e dinâmica – do rio e, ainda, carregam nutrientes que alimentam a cadeia alimentar do bioma. A construção das PCHs, por isso, também implicaria na alteração dessas características, tanto do próprio rio, quanto, consequentemente, do funcionamento ecológico do bioma.
“A modificação vai alterar a conectividade entre os sistemas. A gente precisa manter o fluxo de sedimentos, o fluxo de nutrientes dentro do rio, especialmente em um rio do tamanho que é o Cuiabá, que é uma via estratégica para manutenção das condições no Pantanal”, explica Fantin. Na pesquisa encomendada pela ANA, ele fez parte do grupo que avaliou a qualidade da água e hidrossedimentologia do Rio Cuiabá, para prever alterações nos fluxos de sedimentos, nutrientes e outros constituintes importantes para o funcionamento dos ecossistemas decorrentes da instalação das usinas previstas para o rio.
À ((o))eco, o especialista disse que os empreendedores do complexo de PCHs previstas para o Rio Cuiabá confirmaram que os empreendimentos devem reter mais de 90% dos sedimentos transportados pelo curso d’água. Para compensar essa deficiência, o rio deve, conforme explica Ibrahim, iniciar um processo conhecido na literatura científica como “rios famintos”, onde o curso d’água passa a erodir suas margens para readquirir seu equilíbrio. Com esse fenômeno, o processo natural da mudança da dinâmica da morfologia fluvial, que leva entre décadas e um século para ocorrer, pode ser diminuído para apenas alguns anos.
“Esses empreendimentos criam um lago pequeno onde os sedimentos, que é mais grosseiro, que é mais pesado, vai sedimentar. Esse sedimento, que fica retido ali no empreendimento, vai fazer falta para o Pantanal. Como o rio precisa carregar, ele nasceu com aquele poder de carregar o sedimento e ele não tem o sedimento, ele vai buscar maneiras de readquirir o seu equilíbrio corroendo, erodindo as suas margens e o seu leito”, explica.
Ainda de acordo com Ibrahim, a proposição de um complexo de PCHs faz parte de uma tendência observada entre empreendedores na BAP, que é o desmembramento de grandes usinas em pequenas centrais hidrelétricas. Nisso, o especialista explica que há um equívoco que reside na interpretação de possível menor impacto atribuída a esta modalidade de construção elétrica.
Segundo o especialista, a BAP possui um grande desnível entre a planície do Pantanal e o Planalto, o que favorece a geração de energia. Após a utilização de grande parte do gradiente hidráulico da região, porém, atualmente o perfil de grandes usinas foi transferido para o de menores. No caso específico das PCHs planejadas pela Maturati, Ibrahim revela que os impactos devem ser sentidos de forma substancial por se tratar de uma sequência de seis PCHs.
“Quanto mais pequenas você colocar, os impactos são cumulativos e sinérgicos. Às vezes um olhar simplificado para uma usina pequena, a gente pode até esperar que seja menor, mas a distribuição dessas usinas dentro da nossa bacia pode ter um impacto significante e foi isso que os estudos que foram contratados pela ANA nos mostrou. O impacto acumulativo vai trazer uma série de malefícios ou de degradação, com impacto direto no Pantanal. A grande preocupação nossa é o Pantanal, é o funcionamento da sensibilidade do Pantanal na alteração de suas características”, explicou.
Somado a isso, está também a dimensão do Rio Cuiabá. Banhando 13 cidades, o curso d’água percorre uma área de 22,8 mil km quadrados. O que, segundo Ibrahim, inviabiliza que qualquer empreendimento planejado para a região seja considerado pequeno. à nossa reportagem, Ibrahim disse que o Rio Cuiabá tem vazões que variam de 200 a 2 mil metros cúbicos de água. Ainda acrescentou que, neste ano, no pior período de estiagem, o rio ainda teve uma vazão de 80 metros cúbicos por segundo. “Qualquer empreendimento que colocar ali não vai ser de pequeno impacto, e essa condição é ainda maior quando a gente pensa na sequência de seis hidrelétricas, então você tem impacto de uma associado ao impacto de outra”.
Uma cidade moldada pelo rio
Se por um lado o Rio Cuiabá se caracteriza como uma das principais veias do Pantanal, ele também teve, e ainda tem, papel fundamental na construção histórica, cultural e socioeconômica dos municípios que banha. Fernando Tadeu de Miranda Borges, de 63 anos de idade, economista e historiador cuiabano, enfatiza que prova disso é a própria capital mato-grossense que carrega consigo o nome do curso d’água: Cuiabá.
Antes de esmiuçar a importância social do rio, ele faz questão de explicar uma crença bastante conhecida entre os cuiabanos de nascimento e de coração, para mostrar que a herança histórica do rio nutre não apenas o estrutural, mas também o imaginário dos moradores da capital.
“A lenda que fala que a pessoa que come cabeça de Pacu [espécie de peixe típica da cidade] não sai mais de Cuiabá deve-se à forte presença do rio na cidade, que batiza a todos os chegantes com a cabeça do pacu. O olho do pacu faz enxergar longe e é bom para a vista, dizia vovó. O rio Cuiabá tem algo sagrado, nos banhamos em suas águas (antes diretamente nas praias do rio), e bebemos da sua fonte”, revela.
O especialista explica que a localização da capital também ocorreu em função do rio. Em 1870, o curso d’água se tornou o ponto de chegada e partida de moradores aos limites do território que fortaleceria Cuiabá como capital de Mato Grosso. O comércio de importação e exportação, feito integralmente através das águas, abundantes naquela época, foi também outro fator que contribuiu para o estabelecimento do município como um grande centro comercial.
“Com o término da Guerra do Paraguai, a economia da cidade de Cuiabá floresceu, sendo o contato com os outros países realizados através da navegação Cuiabá (MT) - Corumbá (MS). A cidade de Cuiabá, segundo o historiador Rubens de Mendonça, foi nessa época uma espécie de “zona franca”, destaca.
Borges conta que a relação da população das cidades banhadas pelo rio, sobretudo dos ribeirinhos, com o Rio Cuiabá foi, e ainda é, de sobrevivência. “A cultura cuiabana está toda ligada ao movimento de vida ribeirinho, aliás, uma das delícias de ser cuiabano é dada pela doçura do seu rio, fonte maior de vida e alimentação da população. Os ribeirinhos dependem do movimento das águas para o funcionamento do seu corpo cartográfico. É o registro da resistência de um povo a todos os tipos de dificuldades e interferências”.
O historiador revela que o pior cenário que se desenha, caso a construção dos empreendimentos no rio seja aprovada, é a perda da fonte de vida e de sobrevivência de pessoas que, respeitando a natureza, sobreviveram, por muito tempo, vivendo apenas do necessário: a água. “A bacia do Cuiabá nas cheias fertiliza e irriga toda área em seu entorno, fornece vida aos ribeirinhos e às populações em geral. Com a construção de usinas nessa bacia, o rio deixará de influenciar o fluxo natural da vida dos peixes, de ribeirinhos, da vegetação, do corpo social e econômico. A interferência no “batimento” das águas deverá trazer danos e abalar a permanência da tradição, que sobrevive de geração em geração”.
Queda de braço entre Justiça e Estado
Em julho do ano passado, o Poder Judiciário de Mato Grosso anunciou que a Vara Especializada de Meio Ambiente de Cuiabá havia determinado que o Estado de Mato Grosso apresentasse, em 20 dias, um plano de ação de curto, médio e longo prazos para resolver questões relacionadas à redução no volume de água das Baías de Chacororé e Siá Mariana, localizadas no Pantanal Mato-grossense.
A decisão do juiz titular Rodrigo Curvo também suspendia a análise e aprovação de processos de licenciamento ambiental e da emissão de outorgas referentes a novos aproveitamentos hidrelétricos de qualquer porte – Pequena Central Hidrelétrica (PCH) ou Usina Hidrelétrica (UHE) – , notadamente, daqueles que ainda não estão em operação comercial, em toda a bacia do Rio Cuiabá, até que se estabelecesse estudo detalhado sobre o tema junto à ANA.
Na prática, a medida inviabilizaria qualquer avanço do processo de análise pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema-MT) do complexo de PCHs no Rio Cuiabá. Em setembro do mesmo ano, porém, a Procuradoria Geral do Estado (PGE), suspendeu este trecho da liminar, após recurso de agravo de instrumento interposto pelo Estado de Mato Grosso, o que removeu qualquer impeditivo para a análise de novos empreendimentos na bacia.
Mas antes disso, ainda em julho de 2021, o vereador em Cuiabá, Eduardo Magalhães (Republicanos), também propôs o Projeto de Lei (PL) 6.766/2021, que pretendia proibir a construção de hidrelétricas no trecho do Rio Cuiabá, que está compreendido apenas dentro dos limites da capital mato-grossense. Com 17 votos favoráveis, o PL foi aprovado em dezembro na Câmara Municipal de Cuiabá (CMC) e, em janeiro deste ano, foi sancionado pelo Prefeito da cidade, Emanuel Pinheiro (MDB).
Ao ((o))eco, o vereador Eduardo Magalhães (Republicanos) disse que o estopim de sua proposição foi a sobreposição do direito individual sobre coletivo, em relação ao usufruto do curso d’água que alimenta Cuiabá. Eduardo também disse esperar que seu engajamento motive outros municípios banhados pelo Rio Cuiabá e que também são alvos das usinas da Maturati Meta S.A.
“Seria muito importante que outros municípios se espelhassem também nesse projeto de lei, claro, cada um dentro da sua realidade, uma vez que nós não somos contra as PCHs, mas somos contra que elas sejam colocada em locais específicos, causando um impacto ambiental negativo, tanto pras questões ambientais, quanto pras questões sociais. Porque o direito individual não pode se sobrepor ao coletivo. Que sirva de modelo e exemplo e inspiração para outros municípios também”, afirmou.
AL vetou obras, mas aguarda veto ou aprovação de Governador
Em meio à mobilização, o deputado estadual Wilson Santos (PSDB) também protocolou, em agosto de 2021, o PL 671/2021 que pretendia proibir a construção de usinas hidrelétricas em toda a extensão do Rio Cuiabá. A proposta estava em tramitação na Assembleia Legislativa de Mato Grosso (ALMT) e, na última quarta-feira (4), foi aprovada.
“Se outrora Mato Grosso dependia muito de usinas hidrelétricas, agora sabemos que a energia solar é o caminho. Ela não destrói rios, não desaloja ribeirinhos, não mata peixes e não compromete o Pantanal mato-grossense”, disse Wilson Santos durante a aprovação do PL na ALMT.
Diferente do documento aprovado na CMC, o documento deve repercutir em todas as cidades do estado que são banhadas pelo rio, mas, antes disso, ainda precisa ser aprovado por Mauro Mendes (União Brasil), governador do Mato Grosso. Em 2021, porém, o chefe do Executivo Estadual chegou a chamar a lei de absurdo.
“Primeiro essa lei de aprovar usina na AL é um absurdo. O Supremo já derrubou essa lei. Não é papel da AL aprovar licença ambiental. Isso acontecia nos tempos que todos sabem o que acontecia aqui, de negociação para extorquir empresário. A Sema que tem competência para avaliar isso” disse, naquela época, o governador.
Empreendedores dizem que lei é inconstitucional
Em sua última manifestação à Secretaria Adjunta de Licença Ambiental e Recursos Hídricos da Sema-MT, em junho de 2021, a Maturati Participações S.A. solicitou a suspensão da análise do Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA) de suas usinas no Rio Cuiabá. Na solicitação, a empresa disse que estava elaborando complementação em alguns tópicos do documento.
((o))eco entrou em contato com a Maturati Participações S.A. e Meta Serviços e Projetos LTDA para questionar se o EIA/RIMA é o item que falta para a empresa prosseguir com a análise na Sema-MT. À reportagem, representante da Maturati Participações S.A., que possui a outorga das PCHs junto ao Governo Federal, disse que o documento não foi finalizado porque o processo está parado. Apesar disso, destacou que, em sua retomada, o EIA/RIMA deve ser disponibilizado à população, seguindo os ritos legais, como a realização de audiências públicas.
Em posicionamento enviado ao ((o)) eco, a Maturati Participações S.A. também disse que o PL aprovado na ALMT é inconstitucional. “A água e energia, […] sua normatização são competência privativa da União. Neste caso há desrespeito frontal à carta magna brasileira e, ainda, trata-se de matéria de relevante interesse nacional, de utilidade pública, que os Estados nem os municípios têm competência para legislar”.
Ainda mencionou lei estadual similar aprovada no Estado do Paraná, que foi derrubada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) impetrada pela Procuradoria Geral da República (PGR). O caso em questão trata-se da ADI 6.898, que apontou a inconstitucionalidade dos artigos 207, § 1º, VIII (expressão “e resíduos nucleares) e XVI, e 209 da Constituição do Estado do Paraná.
Os dispositivos tratavam sobre resíduos nucleares e impunham condições para a construção de centrais termoelétricas, hidrelétricas e de perfuração de poços para a extração de gás xisto. Na ocasião, o relator, ministro Luís Roberto Barroso, observou que havia jurisprudência do STF acerca da impossibilidade de interferência dos Estados em matérias relacionadas à atividade nuclear e à energia.
Sobre os impactos apontados pelos especialistas, a Maturati Meta S.A. declarou que a hipótese de “poluição” e “destruição” do Rio Cuiabá é uma “falácia”. “A água utilizada que passa pelos geradores é a mesma que sai, sem nenhum tipo de inserção de poluente nela, ao contrário, é feita uma peneira na água de resíduos que existirem, além disso, a qualidade da água é monitorada constantemente por exigência de órgãos ambientais”.
Em relação ao risco de interromper o fluxo de peixes entre o rio e Pantanal, a empresa disse que existem várias alternativas para que os peixes consigam transitar. “As alternativas de passagem e reprodução da ictiofauna são diversas, como canais livres de fuga, mais de um. Além de escadas de peixes, abertura constante na parte inferior das comportas para espécies de escamas, dreno constante na superfície formando uma cascata natural para alevinos […] onde a ictiofauna passa por ela sem nenhum tipo de desgaste ou lesão”.
A lição do engajamento ambiental
Enquanto ainda não se tem um desfecho definitivo sobre a questão das usinas no Rio Cuiabá, a atuação de diversos setores da sociedade na mobilização contra os empreendimentos é um aspecto positivo percebido desde o ano passado. Se algum dia empreendedores já puderam propor projetos sem a expectativa de resistência das populações afetadas, essa realidade não existe mais, pelo menos nas cidades banhadas pelo Rio Cuiabá.
“Percebemos um interesse da população no tema, o que nos surpreendeu. Muito do interesse veio de pessoas que já tinham visto os danos das represas em outros locais, pessoas que se preocupam com o meio ambiente ou que são ligadas à pesca. O engajamento da população sem dúvidas foi essencial para alcançar os objetivos”, conta a bióloga Paula Isla Martins, analista de conservação na Ecoa e coordenadora da Rede Pantanal. Em 2021, ela coordenou a campanha de comunicação do Ecoa, divulgando informações sobre os riscos do complexo de usinas e, também, articulou campanhas de comunicação sobre o mesmo tema com parlamentares contrários aos empreendimentos e outros segmentos da sociedade.
De acordo com Paula, essa atitude engajada demonstra que a população está mais preocupada com a questão ambiental e, além disso, entende que a pauta é uma urgência do presente e não do futuro. “A atuação sistemática de diversos setores da sociedade é muito importante. Acredito que é uma tendência, pois aos poucos as pessoas têm sentido os prejuízos de causar danos ao meio ambiente. E quando se trata de um local de importância cultural, como o Rio Cuiabá, a preocupação é ainda maior, pois é um lugar que as pessoas têm um sentimento de pertencimento, e se preocupam com ele”, comenta.
A coordenadora destaca que a lição que fica é de união, mas ao mesmo tempo reconhece que a situação do Rio Cuiabá ainda está inconclusa. “Unindo os diversos segmentos da sociedade, pautados em informações técnicas e científicas, temos sim força para barrar empreendimentos que causem danos para a população. Cada vez mais a sociedade estará preocupada e unida contra quem provoca danos à sociedade. Atualmente, com a internet e apoio das mídias, conseguimos chegar mais perto das pessoas e explicar melhor os problemas, o que aumenta o número de pessoas preocupadas com a temática e prontas para ação.”, finaliza Paula.