Texto originalmente publicado em: 28/07/09
Ao mesmo tempo em que as hidrelétricas de Jirau e Santo Antonio, no rio Madeira (RO), começam a ser construídas, organizações e institutos bolivianos seguem afirmando que os impactos gerados pelos dois empreendimentos não serão sentidos apenas em território brasileiro, mas também afetarão as populações e o meio ambiente da Bolívia.
Para saber mais detalhadamente sobre os impactos que sofrerá o país vizinho e como está a questão perante o governo e a sociedade boliviana, o Amazonia.org.br conversou com o hidrólogo Jorge Molina, diretor do Instituto de Hidráulica e Hidrologia da Universidad Mayor de San Andrés, em La Paz, sobre o assunto.
De acordo com o especialista, procurado pelo governo da Bolívia para auxiliar na análise do Estudo de Impacto Ambiental (EIA) do Complexo Madeira, com a construção as usinas os níveis da água no trecho binacional seriam elevados em até 6 metros, se for considerada a sedimentação. Confira abaixo a entrevista na íntegra.
Amazonia.org.br – Quais são os impactos das hidrelétricas do rio Madeira na Bolívia?
Jorge Molina – Há uma série de impactos previstos, porém somente três grupos de impactos foram estudados com mais profundidade. O primeiro, o qual participei da elaboração do estudo, foi com relação aos impactos hidráulicos, ou seja, como as usinas de Jirau e Santo Antônio podem afetar os níveis de água, os riscos de inundação e os fluxos de água na Bolívia.
Outros grupos de impactos estudados com mais profundidade foram a questão dos peixes e do grupo pesqueiro e, finalmente, a relação das usinas à qualidade da água e ao mercúrio.
Não são todos os impactos que possam acontecer, mas são os que foram estudados com mais profundidade.
Amazonia.org.br – Especificamente, quais são os impactos estudados na questão hidráulica?
Molina – Em primeiro lugar, o que passa com uma represa é que, para gerar energia elétrica, ela eleva o nível da água. Atrás da represa provoca-se, como é chamada, uma “curva de remanso”. A curva de remanso é um nível modificado pela represa.
Esse efeito de remanso alcança uma sexta distância acima da represa e é preciso determinar até onde vai essa superelevação dos níveis da água.
O que encontramos no nosso estudo é que, por efeito de Jirau, há uma superelevação do nível da água até o trecho binacional do rio Madeira, ou seja, a região compartilhada entre Bolívia e Brasil.
Essa superelevação dos níveis da água se produz por duas condições: a primeira – a que há menos incertezas – considera somente as operações de Jirau, sem considerar a questão dos sedimentos. O estudo conclui que na área binacional vai haver uma superelevação dos níveis de água da ordem de 1 ou 2 metros.
Nesta questão, coincidimos, na parte conceitual, com os mesmos resultados do estudo de impacto ambiental que fizeram Furnas e Odebrecht. Só que nossos valores são um pouco maiores do que os deles. Além disso, em nossas análises, mostramos o porquê dessas diferenças.
Amazonia.org.br – E considerando os sedimentos?
Molina – Falei do que ocorre na condição sem sedimentos, que é a condição menos discutível. Com os sedimentos o que acontece é que ao aumentar o nível de água, a velocidade desta diminui e favorece a sedimentação do rio, ou seja, que parte dos sedimentos que o rio carrega se deposite no fundo do rio. A consequência da deposição dos sedimentos será a elevação do nível da água. Nos estudos de impacto ambiental a conclusão é bastante dura: haveria uma sedimentação e, por causa dela, os níveis da água no trecho binacional seriam elevados em até 6 metros.
Isso é tão sério que depois o Ministério de Minas e Energia do Brasil, o governo brasileiro, contratou consultores que deram seus pareceres técnicos. Estes, sem fazer um estudo e emitindo apenas sua opinião técnica, disseram que não vai haver sedimentação. Dar uma opinião deste tipo, para nós, é dar uma opinião política. Porque, caso eles falem que haverá sedimentação, o projeto estará em perigo.
Amazonia.org.br – Quais são as consequências desta superelevação do nível da água na área binacional?
Molina – São duas principalmente. A primeira é o aumento dos riscos de inundação. Não estou dizendo que vai aumentar a área inundada, mas estou dizendo que os riscos de inundação vão aumentar.
Para um fluxo natural do rio, um fluxo que vem crescendo a uma máxima anual de 38 a 40 mil m³ por segundo, por exemplo, com a construção da hidrelétrica esse mesmo fluxo vai estar um a dois metros mais acima. Isso significa que o risco de inundação é maior.
A outra consequência é o que eles chamam de perda de energia potencial. Para gerar energia em um trecho do rio são necessárias duas coisas: uma é o fluxo, a vazão, e a outra a queda. Então, ao aumentar e incrementar os níveis de água no fluxo binacional, tira-se a queda e, portanto, energia potencial.
Isso, de acordo com a Constituição do Brasil, é impossível. Porque a Constituição brasileira declara como patrimônio da União, como bem da União, a energia potencial. Por isso, esse segundo impacto da energia potencial é um impacto que pode ter seu valor agregado. Porque é fácil saber quanto de energia está sendo perdida e como se tem os preços, agrega-se valor.
Quero esclarecer duas coisas: nós chamamos esses impactos hidráulicos de impactos locais porque reconhecemos que estão limitados a esse trecho. Diferentemente dos impactos dos peixes, que é do âmbito regional porque interferem em toda a bacia.
Amazonia.org.br – Como que o governo boliviano está lidando com esses estudos e opiniões?
Molina – O que o governo boliviano fez até o momento foi, primeiro, pedir informação sobre todo esse processo ao governo brasileiro, porque oficialmente está muito preocupado. Depois, pediu reuniões binacionais para analisar esses dois possíveis impactos em território boliviano. Em todo esse processo, a posição oficial do governo brasileiro foi a de que não vai haver impactos na Bolívia e no Peru.
Durante todo esse tempo só houve uma reunião binacional, em outubro do ano passado. Nesta reunião, na qual estava acordado que haveria a participação de uma delegação técnica brasileira de primeiro nível, não ocorreu assim. Os brasileiros trouxeram poucos técnicos e que não cobriam nem sequer todas as áreas. Então, nesta reunião, não houve praticamente nenhuma discussão. A delegação boliviana apresentou suas observações, que não puderam ser respondidas pelos brasileiros. Foi simplesmente, outra vez, uma espécie de discurso brasileiro no qual se afirma que as hidrelétricas não vão trazer impactos à Bolívia e nós temos que acreditar.
Por outro lado, o que acontece é que o governo boliviano, por diversas razões, não possui uma posição única. Há pessoas que querem defender os direitos da população e se assegurar de que o país não sofra de impactos por empreendimentos de outros países. Mas também há outros que estão dispostos a negociar. Essas duas posições estão dentro do governo boliviano e não há uma só posição, por isso paralisamos nossas pesquisas.
Amazonia.org.br – E por parte das organizações e movimentos bolivianos? A sociedade está organizada para se posicionar em relação à obra?
Molina – Por um lado, a resposta das organizações sociais, desde trabalhadores rurais, pescadores, é muito clara: eles se dão conta dos riscos e do que vai significar essas obras e se mobilizaram com o apoio de algumas organizações, que apresentaram às Organizações dos Estados Americanos (OEA) uma ação por direitos humanos. Esso é uma ação aos dois governos, iniciada em 2007.
Amazonia.org.br – o governo boliviano tem conversado com a população sobre o tema?
Molina – Em sua atitude de não tomar nenhuma iniciativa, o governo boliviano tem também uma grande capacidade de manipulação. Por exemplo, a região norte da Bolívia é uma região que, para o seu desenvolvimento, necessita de energia. Energia barata e confiável. A que tem agora é uma energia cara.
Então para toda a região o tema energético é um tema chave, que favorece a manipulação. O governo boliviano está estudando desde o ano passado a construção da hidrelétrica Cachoeira Esperança, que é um dos projetos incluídos no Complexo do rio Madeira.
Esta represa foi inclusive usada no processo eleitoral, com o discurso de que “a represa será a solução para todos os que vivem no norte Amazônico”. Isso, repito, foi um tema eleitoral para ganhar e manipular o povo, já que um plano energético jamais é feito assim. Um plano energético deve ser feito buscando alternativas e, entre as várias alternativas, escolhendo a que é mais conveniente e rentável.
Esse projeto, indiretamente, está favorecendo os empreendimentos brasileiros porque é um argumento que obviamente o governo brasileiro está utilizando: “por que não negociar para compartilhar impactos e custos?”.
A manipulação vai além. Esse setor sempre foi considerado abandonado. Esse é um discurso que foi criado também, e é usado pela elite boliviana, que tem o poder, os municípios, os governos locais. Eles, em sua maioria, estão a favor desses projetos por várias razões, entre eles conservar o seu poder.
Amazonia.org.br – O que vocês planejam fazer daqui para frente?
Molina – Durante todo esse processo, ficou claro que o aporte técnico é útil, mas o tema é extremamente político. Para o Lula, é fundamentalmente político.
Minha visão é que, sem ações e decisões políticas, não vai valer a pena aprofundar e elaborar estudos. Nestes que fizemos estão todos os elementos necessários para que o governo boliviano entre com uma ação contra o Brasil.
O que pensamos fazer é elaborar uma visão crítica dos estudos feitos pelos técnicos que analisam a hidrelétrica Cachoeira Esperança. O governo contratou uma consultoria há quase dois anos para fazer o estudo nesta represa e para analisar os impactos de Jirau e Santo Antonio.
Além disso, estaremos presentes em qualquer reunião ou fórum internacional sobre o tema. Mas não planejamos fazer mais e mais estudos até que a parte política avance.