Por Giulia Fontes
O uso da energia solar na modalidade de Geração Distribuída (GD), que tem incentivos estabelecidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), não está relacionado apenas ao consumidor residencial, que tem painéis solares no telhado da residência. Empresas que não são diretamente consumidoras de energia fotovoltaica também se beneficiam do subsídio, que está sendo revisto pela Aneel e pode ser alterado.
Nesse caso, não se tratam de consumidores comerciais ou industriais que instalam sistemas de energia solar para diminuir a conta de luz. As unidades beneficiadas são as que estão incluídas na modalidade de autoconsumo remoto, que permite que o consumidor use energia produzida em outro local como modalidade de GD. A única condição é de que os dois lugares estejam na mesma área de concessão.
Na prática, essa autorização – estabelecida pela Aneel em 2015, três anos após a primeira resolução sobre GD – acabou permitindo que surgissem as chamadas “fazendas solares”.
Nesse tipo de empreendimento, uma empresa monta um sistema de geração de energia solar com uma quantidade significativa de placas solares. Depois, faz uma espécie de aluguel de partes do sistema para o consumidor final.
Como funciona o “aluguel” de energia solar
Pela resolução da Aneel, os consumidores de GD podem se beneficiar de um mecanismo de créditos de energia. Quando o sistema produz mais do que o consumidor está usando naquele momento, a energia excedente é injetada na rede da distribuidora. Esse montante fica como um crédito, que pode ser utilizado em energia da rede por até 60 meses.
A proporção é de um para um – ou seja, para cada quilowatt-hora (kWh) que injeta no sistema, o consumidor pode usar um kWh vindo da distribuidora. A parcela da tarifa de luz que diz respeito a encargos, perdas, transmissão e distribuição não é cobrada.
No caso das fazendas, os proprietários do sistema vendem os créditos produzidos pelas placas solares. Assim, o consumidor que não pode instalar um sistema em casa (por morar em um apartamento, por exemplo) pode alugar uma parte dos painéis de uma empresa, e se beneficiar dos créditos produzidos por essa cota da fazenda.
Isso pode ser realizado, inclusive, se a fazenda estiver distante do local de consumo. Quem transporta a energia para o destino final é a rede da distribuidora.
A empresa Sun Mobi, que mantém uma fazenda solar no interior de São Paulo, é um dos exemplos desse tipo de negócio. A estrutura da empresa fornece créditos de energia para 80 clientes de 27 municípios na área de concessão de Piratininga. Estão incluídos consumidores em municípios como Santos, Sorocaba e Jundiaí.
“O pacote também contempla serviços de eficiência energética. Isso é feito por meio do monitoramento ativo do consumo de energia [através de um sensor instalado no ponto de consumo] e do estímulo à adoção de ações que evitam desperdícios”, explica Alexandre Bueno, sócio da Sun Mobi.
Aneel quer mudar as regras – e as fazendas solares seriam as primeiras atingidas
O modelo, porém, gera críticas justamente por conta do crédito incluir os custos de transmissão e distribuição.
“Vou dar um exemplo: se você está em Belo Horizonte e compra uma cota de uma fazenda solar no Norte de Minas Gerais, você está usando bastante a rede de distribuição. Isso vai fazer com que aqueles consumidores que não geram a sua própria energia, ou que não são sócios, acabem suportando esse custo”, diz Joisa Dutra, diretora do Centro de Regulação em Infraestrutura (Ceri) da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
O argumento de que os outros consumidores estão sendo onerados é, inclusive, um dos motivos citados pela Aneel para mudar as regras de GD. A proposta da agência inclui a cobrança de 60% da tarifa de luz nos créditos, dando como benefício, somente, a parcela referente à energia. A cobrança seria implementada de forma escalonada, até 2031. Os primeiros a arcar com os custos seriam, justamente, os consumidores de GD remota.
Por outro lado, as empresas do ramo sustentam que as fazendas solares já pagam para fazer a conexão à rede, como se fossem consumidores.
“Isso representa um custo de aproximadamente R$ 60/MWh, ou cerca de 12% da tarifa do consumidor que receberá essa energia. Portanto, se há uma modalidade de GD que efetivamente paga pelo uso da rede são as fazendas solares”, afirma Guilherme Susteras, coordenador do grupo técnico da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (Absolar).
Fazendas solares transgridem as regras do mercado cativo?
Outro questionamento em relação ao modelo é de que, na prática, ele acaba desvirtuando o sistema de mercado cativo. Isso porque a regulamentação do setor elétrico brasileiro não permite, hoje, que consumidores residenciais (de baixa tensão) escolham de quem comprar energia.
Isso é autorizado, somente, para os consumidores que precisam de fornecimento superior a 3.000 kW. O Ministério de Minas e Energia (MME) decidiu, em dezembro, ampliar a abertura do mercado livre – mas, ainda assim, não há data para que consumidores residenciais possam participar desse sistema.
“Cabe avaliar em que medida o regulamento vigente não traveste de GD o exercício de uma comercialização direta por consumidor de baixa tensão – o que violaria regramento vigente de requisitos para a contratação de energia”, ressalta a contribuição do Ceri, da FGV, à consulta pública da Aneel para a revisão das normas de GD.
A Absolar, por outro lado, defende que essa modalidade de GD elimina barreiras ao consumidor, democratizando o acesso à energia limpa.
“Importante notar que a tendência global dos community solar reconhece o valor criado à sociedade quando você junta um grupo de pessoas ou empresas para implantar uma usina com ganhos de escala e projeto otimizado. Além disso, trata-se de uma forma de distribuir renda, ao se criar empreendimentos em áreas rurais e engajar a comunidade local em atividades de alto valor agregado”, afirma o coordenador do grupo técnico da empresa.
Vale salientar que a resolução da Aneel permite a existência de fazendas solares – ou seja, os empreendimentos em funcionamento respeitam a regulamentação vigente.
A Gazeta do Povo enviou um pedido de informações à Aneel, questionando se não haveria uma contradição entre esse trecho da resolução de GD e as regras do mercado cativo, mas não obteve retorno até o fechamento da reportagem.