//

A crise da água*

15 minutos de leitura
A imagem aproximada da bacia no Brasil é a de uma cascata com águas que passam por várias hidrelétricas até alcançar Itaipú, na parte final em território brasileiro.

Estudo do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), publicado recentemente, mostra que a crise hídrica dos últimos 10 anos ocorreu em bacias hidrográficas estratégicas do Brasil.

 

– Estudo da NASA mostrou que, a partir de 2014, houve perda de água terrestre, processo que se iniciou no Brasil, com consequências na bacia do rio Paraná;

– Secas já eram registradas antes de 2014 na sub-bacia do rio Grande. Instituto registrou redução na precipitação;

– Agravante: o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) ainda utiliza dados históricos para definir estratégias, o que se mostra inadequado em tempos de mudanças climáticas;

– Conclusões. O novo normal climático, suas causas, fatores que agravam a crise e suas consequências. O Cerrado se encontra em situação de emergência.

 

Alcides Faria

Estudo do Cemaden mostra que as bacias hidrográficas mais estratégicas do País em termos de produção de energia (Paraná, São Francisco e Tocantins) operaram em regime de crise ou “seca”, cada vez mais severas, nos últimos 10 anos. Essas bacias abastecem as principais hidrelétricas do País, dentre elas Itaipu, Porto Primavera, Jupiá, Ilha Solteira, São Simão, Três Marias, Tucuruí e Serra da Mesa.

A partir de 2013, inicia-se uma sequência de secas que se estende até 2020. Nesse período, a intensidade da estiagem superou todas as marcas anteriores. Desde então, foram registrados curtos intervalos de cheia, que não duraram sequer um ano. O maior período de seca até então havia sido de 1998 a 2000 — uma estiagem de dois anos, intensa, mas sem atingir níveis extremos. O site G1 publicou uma matéria abordando as conclusões do estudo.

A bacia do rio Paraná

Quanto à bacia do rio Paraná, é importante ter em conta que suas hidrelétricas, de diferentes portes, são responsáveis por mais de 60% da geração de energia dessa fonte no Brasil. Os grandes reservatórios somam 57, e as usinas maiores, cerca de 170. O site da Itaipu Binacional informa que o Paraná é o décimo maior rio do mundo em vazão, drenando grande parte do centro-sul da América do Sul.

A bacia do rio Paraná é uma unidade ambiental que ocupa 10% do território brasileiro (879.860 km²) e se divide pelos estados de São Paulo, Paraná, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Goiás, Santa Catarina e pelo Distrito Federal. Nela vivem aproximadamente 32% da população brasileira, ou mais de 70 milhões de pessoas.

A imagem aproximada da bacia no Brasil é a de uma cascata, com águas que passam por diversas hidrelétricas até alcançar Itaipu, na parte final em território brasileiro.

– Estudo da NASA mostrou que a partir de 2014 ocorreu perda de água terrestre e que processo iniciou no Brasil

Em fevereiro de 2025, a Ecoa registrou que, nos últimos 10 anos, a bacia do rio Paraná enfrentou 3 crises hídricas, resultando em graves consequências econômicas, sociais e ambientais. A pergunta, naquele momento, era se os eventos extremos teriam relação com o processo apontado em estudo apoiado pela NASA (“An Abrupt Decline in Global Terrestrial Water Storage and Its Relationship with Sea Level Change”), que tratou de um processo iniciado em 2014, indicando a redução repentina da água terrestre global, com “seca severa no Norte e Centro” do Brasil.

O episódio mais ‘visível’ ou de maior impacto no Brasil, possivelmente relacionado ao processo indicado pelo estudo, foi a crise hídrica de 2014 a 2016 na bacia do rio Paraná, que gerou efeitos sociais e econômicos significativos. Vale considerar que a região representa o centro econômico do Brasil — concentra cerca de 50% da economia do País e mais de 60% da produção de energia elétrica por hidrelétricas. Alguns registros que fizemos sobre esse evento extremo:

  • As hidrelétricas da bacia não geraram energia suficiente para atender à demanda do País, forçando a operação de usinas térmicas, cujo custo de geração é mais elevado;

  • A hidrovia Tietê-Paraná deixou de funcionar por 2 anos, o que colocou milhares de caminhões nas estradas e elevou o custo do frete de grãos;

  • A produção agrícola sofreu queda, sendo a cana-de-açúcar a mais afetada;

  • No período, ocorreu redução do Produto Interno Bruto (PIB), com provável contribuição do déficit hídrico.

O Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) olha para o passado para definir suas estratégias, o que não é mais adequado em tempos de mudanças climáticas.

Reprodução de parte da matéria do G1:

O ONS “ainda baseia suas previsões em parâmetros de probabilidade que são estimados a partir de séries históricas e desconsidera a previsão dos efeitos do aquecimento global e das alterações no regime de chuvas.

Em resumo: para estimar o quanto de água vai desaguar nos reservatórios, eles usam as estatísticas como a média e o desvio padrão. Para saber esse número, o sistema usa o que foi observado ao longo de 90 anos. Como a tendência de seca começou há cerca de dez anos, esse índice acaba sendo encoberto pela situação de normalidade dos outros 80 anos. Com isso, não reflete a realidade.”

Secas têm registros anteriores a 2014 na sub-bacia do rio Grande. Instituto registrou redução na precipitação.

A busca por dados mais específicos sobre os processos climáticos na bacia do Paraná trouxe informações ainda mais preocupantes do que as apresentadas no estudo do Cemaden e publicadas pelo G1.

Em janeiro de 2015, o IGAM (Instituto Mineiro de Gestão das Águas) registrou que, na sub-bacia do rio Grande, a análise das anomalias de precipitação para as estações chuvosas dos últimos 36 anos “mostra uma tendência de diminuição da precipitação ao longo dos anos e que, na última década, as chuvas estiveram abaixo da Normal Climatológica em 8 anos”.

Gráfico IGAM – Anomalia de precipitação por período chuvoso no período de 1979 a 2014. O total de chuvas nos dois últimos períodos chuvosos (2012/2013 e 2013/2014) esteve abaixo da normal climatológica em quase todo o estado, sendo estes anos classificados como “muito seco a levemente seco”.

Gráfico IGAM – Anomalia de precipitação por período chuvoso no período de 1979 a 2014. O total de chuvas nos dois últimos períodos chuvosos (2012/2013 e 2013/2014) esteve abaixo da normal climatológica em quase todo o estado, sendo esses anos classificados como “muito seco a levemente seco”.

Conclusões. O novo normal climático, causas que agravam e suas consequências. O Cerrado em emergência.

Adriana Cuartas, do Cemaden, explica que há alguns anos os pesquisadores perceberam que, depois da crise de 2015, as bacias não voltaram a um ciclo normal: “Desde então, o padrão que temos é de seca, e secas cada vez mais extremas. Quando temos um breve período de normalidade, em poucos meses o reservatório volta a um ponto crítico porque não há chuva suficiente para repor a água que estamos usando”. Esse é o novo normal do clima: “não temos chuva o suficiente para repor as bacias e atender o país”

A Ecoa já registrou que esse novo “normal” é agravado pelo desmatamento, pela poluição e pela degradação dos solos. Atualmente, o Cerrado é o bioma mais atingido pelo desmatamento, o que traz consequências diretas para a ‘produção’ de água destinada ao abastecimento humano, à agricultura e à geração elétrica. Anotações:

  • Florestas e Cerrado eram as coberturas vegetais originais da maior parte da unidade ambiental “Bacia do rio Paraná”;

  • A retirada de grandes extensões de vegetação nativa afeta o regime de chuvas ao provocar mudanças no clima regional, como amplamente demonstrado;

  • A contribuição hídrica do Cerrado para a vazão da bacia do Paraná, por exemplo, chega a 50%. Além disso, cerca de 50% da energia consumida no Brasil é gerada com as águas do Cerrado;

  • Apesar de devastadas, as florestas ainda são grandes ‘produtoras’ de água para abastecer cidades.

O desmatamento altera os processos naturais da água em cada microbacia hidrográfica. A vegetação nativa, adaptada, tem o papel de manter a umidade e controla a velocidade e o volume das águas que chegam aos cursos d’água, tanto das águas que escorrem na superfície, como das águas que infiltram no solo, alcançando os lençóis subterrâneos. Esses lençóis, por seu turno, são os ‘armazenadores’ de água que abastecem gradativamente os córregos e rios ao longo do tempo, mesmo nos períodos mais secos.

  • Menos vegetação nativa menor abastecimento dos lençóis e menos água para córregos e rios.

Outro processo a ser considerado é a perda do papel que tem a vegetação nativa na contenção do transporte de sedimentos pelas águas das chuvas para os pontos mais baixos, reduzindo o assoreamento. Bacias hidrográficas com pouca vegetação nativa facilitam o enchimento de reservatórios com sedimentos, diminuindo a capacidade de armazenamento de água, e, consequentemente, ao longo do tempo, reduz o potencial de geração de energia pelas turbinas de hidrelétricas.

As Florestas e o Cerrado são os 2 principais biomas que originalmente cobriam a bacia do rio Paraná. Estes biomas foram devastados aceleradamente ao longo dos últimos 60 anos e, vale registrar, o período em que se construiu a maior parte das represas existentes nos rios formadores da bacia.

  • Na bacia do Paraná foram desmatados mais de 4,2 milhões de hectares entre 1985 e 2019 (Mapbiomas).

O Cerrado ocupa quase 25% do território brasileiro, com uma área de 20 milhões de hectares. É um espaço crítico para a produção de água no Brasil, como mostra a Rede Cerrado: o bioma “abriga oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras e abastece seis das oito grandes bacias hidrográficas do país: Amazônica, Araguaia/Tocantins, Atlântico Norte/Nordeste, São Francisco, Atlântico Leste e Paraná/Paraguai”. Nele estão três dos principais aquíferos brasileiros: Bambuí, Urucuia e Guarani.

*Texto sob revisão.

Deixe uma resposta

Your email address will not be published.