Via O Eco
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A velha tática de desqualificar a ciência tem sido usada para defender intervenções no rio Paraguai.
Há quase 30 anos, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, o projeto Hidrovia Paraguai-Paraná foi apresentado à sociedade. Naquela época, cientistas brasileiros se debruçaram sobre o projeto e concluíram que sua viabilidade econômica era duvidosa e que ambientalmente seria desastroso. O projeto foi então oficialmente abandonado, indicando que os então tomadores de decisão se sensibilizaram com os argumentos científicos.
O projeto de hidrovia foi agora repaginado e vem sendo novamente apresentado à sociedade. A comunidade científica novamente examinou a proposta e levantou aspectos preocupantes relacionados à viabilidade econômica e aos impactos ambientais do projeto.
Entretanto, nas últimas semanas, temos assistido vários questionamentos sobre os argumentos de cientistas quanto aos impactos de um projeto de hidrovia no rio Paraguai, em pleno Pantanal. Via de regra, referem-se aos cientistas como “ambientalistas” ou “ditos acadêmicos” que têm impedido a implementação de um projeto que prevê diversas intervenções no leito do rio Paraguai, o principal curso d’água do Bioma. Um exemplo é a matéria veiculada no site Poder 360, no dia 10 de setembro de 2024. A alegação é de que esses “ambientalistas” e “ditos acadêmicos” apontam problemas e impactos sem base científica. Outros dizem que são apenas palpites. Esta reação advém da publicação de um artigo científico na revista Science of Total Environment, que apontou diversos problemas sérios relacionados com as planejadas intervenções no leito do rio Paraguai, como a remoção de sedimentos, via dragagem, a retificação de curvas e a remoção de rochas. Este artigo, assinado por 42 autores foi também traduzido para português e disponibilizado para livre acesso na rede de cientistas ResearchGate. Mas ele não é o único.
Fomentar o negacionismo, como estratégia para defender interesses específicos, tende a levar a desastres. São bem evidentes as consequências do negacionismo climático e da falta de ações efetivas para mitigar os impactos que estão se apresentando, de modo até mais rápido e assustador do que os cientistas calcularam. Basta ver o desastre climático, ambiental e econômico que o Brasil, a América do Sul e o resto do mundo estão enfrentando neste momento. Lembremos também do negacionismo contra as vacinas e lockdowns, durante a pandemia de Covid-19, que resultou na morte de pelo menos 300 mil pessoas acima do esperado, quando se compara as estatísticas do Brasil com a média de outros países. Esses exemplos ilustram muito bem os riscos de se adotar estratégias pouco construtivas, deixando de lado aquilo que a melhor ciência oferece à sociedade.
Um cientista é um especialista dedicado a realizar pesquisas que ampliam o conhecimento e auxiliam a sociedade na tomada de decisões. Cientistas investigam a natureza e os sistemas humanos, formulando hipóteses, testando-as, elaborando conclusões e orientações baseadas nas evidências coletadas. Essas investigações servem para descrever fenômenos, prever comportamentos futuros e orientar novos estudos. Os cientistas não impedem tomadas de decisão, nem é esta a sua função. No entanto, cientistas colaboram no processo ao revelar os problemas, probabilidades, soluções e incertezas à sociedade nas diversas áreas do conhecimento. Já o ambientalista é alguém que se identifica especificamente com a defesa do meio ambiente, geralmente atuando em redes de Organizações Não Governamentais (ONGs) e promovendo ativismo direcionado a mudanças nas políticas públicas ambientais, baseando-se em valores éticos, culturais, existenciais e informações derivadas da ciência. Embora diferentes, ambos são legítimos representantes do tecido social, assim como outras associações e grupos de interesse, e desempenham um papel essencial nos debates públicos.
No caso do projeto da Hidrovia, parece que os interesses favoráveis, sejam eles diretos ou indiretos, privados ou públicos, nacionais e internacionais, estão promovendo discursos baseados em crenças irracionais. Essa estratégia fomenta a falsa narrativa de que os cientistas agem com base em ideologias, priorizando o meio ambiente em detrimento dos desafios econômicos e sociais. É uma péssima ideia.
Quem são as pessoas que estão alertando sobre os riscos da Hidrovia? São 42 autores do artigo científico já mencionado, ligados a 17 instituições nacionais e estrangeiras, entre universidade e institutos de pesquisa, que reúnem quase todo o conhecimento disponível sobre ecologia, climatologia, hidrologia, biodiversidade, geomorfologia, pedologia, sensoriamento remoto, zoologia, botânica, sociologia, acumulados sobre o Pantanal. Entre esses cientistas, 36 são doutores e pós-doutores, com mais de 3.500 artigos científicos e livros publicados, sendo que pelo menos 1.200 desses artigos estão relacionados ao Pantanal. E o que dizem esses cientistas sobre os riscos das intervenções irreversíveis no leito do rio Paraguai e da intensificação da navegação?
1 – O aprofundamento do leito do rio resultaria em níveis de água mais baixos, causando a perda dos ecossistemas de planície de inundação, em função do aumento da descarga do rio.
2 – Haveria impactos sobre as estruturas ecológicas, alterando a dinâmica nas áreas úmidas e no leito do rio, afetando toda a biodiversidade nesses ambientes.
3 – Os impactos sobre os serviços ecossistêmicos trariam profundos efeitos socioculturais, comprometendo os recursos dos quais as populações tradicionais locais dependem.
4 – A modificação da dinâmica das cheias e dos pontos de controle de fluxo no Pantanal, resultaria na perda da capacidade de amortecimento das inundações, o que poderia levar a uma sobreposição dos picos de inundação na confluência dos rios Paraguai e Paraná, colocando em risco áreas da Argentina e do Paraguai.
5 – O projeto pode interagir com os impactos da mudança climática, exacerbando os danos aos ecossistemas do Pantanal.
6 – As alterações na hidrologia poderiam potencializar a mudança no uso da terra no Pantanal em função da redução das áreas sujeitas a inundações no Bioma, alterando a paisagem e a ecologia da região.
7 – Haveria deterioração da qualidade da água e da dinâmica dos sedimentos, além de alterações na estrutura da calha do rio Paraguai.
8 – A navegação intensificada traria impactos diretos da navegação, causados pelas ondas, acúmulo de sedimentos em pontos de conexão rio-planície, causando perda de conectividade, danos diretos à ictiofauna causados pelas hélices, risco de poluição aumentado, entre outros.
Além desses pontos, os cientistas questionam a viabilidade econômica do projeto, considerando que o rio Paraguai costuma enfrentar longos períodos de seca extrema que comprometem a navegação. Essa situação deve se tornar mais frequente frente aos cenários de mudança climática. Ao longo do século 20, por exemplo, o rio Paraguai passou 25% dos dias abaixo do nível de plena navegabilidade (1,5m na régua de Ladário, MS) e, a partir de 2000, tem apresentado esta condição em 23% dos dias. É o que acontece neste ano de 2024, em que o DNIT reconheceu, em meados de maio, a situação de escassez de água no rio Paraguai, prejudicando a navegação, um período em que o rio deveria estar próximo de seu máximo. O problema central é a escassez hídrica recorrente e, assim, não pode ser restringido à necessidade de intervenções. No cenário plausível de clima mais seco e com maior frequência de eventos climáticos extremos, o projeto da Hidrovia torna-se um investimento arriscadíssimo, além de muito impactante do ponto de vista ambiental. Numa avaliação mais ampla, os efeitos negativos podem afetar outros setores, como a pesca, o turismo, ampliando sua abrangência socioeconômica e seus efeitos sobre o bem-estar de muitos pantaneiros.
Cabe aos defensores do projeto da Hidrovia apresentar os dados e informações que demonstreiam, assim, ser bem recebidos, já que servem de base para orientar os necessários estudos de impacto ambiental. Estes estudos devem ser sérios e cientificamente bem embasados, garantindo à sociedade que o Pantanal, um Patrimônio Nacional conforme a Constituição Federal de 1988, não seja prejudicado.
Os pesquisadores também sugerem que investir em ferrovias, numa estratégia multimodal que combine rodovias e hidrovias verdadeiramente sustentáveis, é uma solução mais eficaz e menos impactante, especialmente porque o destino principal dos produtos é a Ásia. Assim, um modal que atravesse os Andes seria mais estratégico. Vale lembrar que esta visão já existia há mais de um século, consolidada na implantação da antiga ferrovia Noroeste do Brasil. Ela conecta o porto de Santos-SP a Corumbá-MS e interliga-se à ferrovia boliviana que chega até Santa Cruz de La Sierra. É inconcebível que este eixo logístico, no lado brasileiro, esteja totalmente sucateado entre Bauru-SP e Corumbá-MS, uma vez que poderia integrar um modal de amplo potencial geopolítico e econômico, juntamente com a rodovia Bioceânica (em fase final de construção) e a já existente hidrovia natural proporcionada pelo rio Paraguai (sem intervenções irreversíveis).
Neste contexto, é necessário o uso do bom senso e o foco no bem comum, com as questões ambientais inseridas no centro do debate sobre o projeto da Hidrovia, em função de seus impactos difusos e até irreversíveis. Cabe uma discussão aberta e transparente, em que todas as opções sejam consideradas e as soluções sejam alcançadas sem colocar em risco o Bioma Pantanal.