Alcides Faria, Biólogo e Diretor Executivo da Ecoa
Alíria Aristides, Jornalista do Núcleo de Comunicação da Ecoa
– Desde 2015 a disponibilidade de água no País diminuiu em 37% e as represas apresentaram um déficit de 23%
– Água privatizada: a maior parte das reservas de água do país estão nas mãos de empresas privadas. A nova Lei de janeiro de 2022, que substitui o Código da ditadura de Pinochet, mantém o caráter perpétuo dos direitos de água.
– Há um processo de redução das geleiras no sul do Chile, fenômeno que ocorre praticamente em todas as 26 mil geleiras do país.
– Constituintes esperam estabelecer prioridades para a destinação do uso da água na nova Constituição, em elaboração, na seguinte ordem: consumo humano, domiciliar, saneamento básico e em seguida para atividades econômicas, como a agroindústria e a mineração.
Apresentação
Eventos climáticos extremos e prolongados podem causar grandes danos ambientais e podem até mesmo mudar rumos econômicos de regiões e mesmo de países. Quando estes eventos ocorrem em determinados territórios em consonância com modos econômicos predatórios no uso de bens naturais, seus efeitos são multiplicados e alimentam crises econômicas que podem levar a mudanças e a crises políticas, considerando que a política se move na subsuperfície da economia.
Em 2019, a Ecoa produziu uma publicação sobre a sequência de eventos climáticos extremos na região compreendida entre Bolívia, Chile, Argentina, Paraguai, parte do Brasil e o Uruguai nos últimos 10/15 anos. Nele são comentados danos econômicos causados por esses eventos e sua coincidência com crises políticas mais agudas nos países em tela.
Dentre os eventos mais visíveis considerados, estão a grande e prolongada seca no Chile, os problemas de abastecimento de água na Bolívia e as chuvas insuficientes na região da unidade ambiental bacia do rio Prata (Bolívia, Paraguai, Argentina, Uruguai e Brasil). Foi possível registrar perdas na agricultura, a paralisação da grande navegação em alguns rios e a falta de água para geração de energia e abastecimento humano em diferentes cidades da bacia.
A pergunta maior posta é se as ocorrências climáticas extremas do Chile e demais países da América do Sul têm conexão com as mudanças climáticas globais. Os indícios são consideráveis: redução de chuvas em algumas regiões e chuvas torrenciais em outras, incêndios cada vez maiores, redução de queda de neve nos Andes, geleiras derretendo no Chile e na Argentina, dentre outros. Urge estudar com mais profundidade e que os governos atuem coordenadamente para estruturar medidas preventivas e mitigatórias.
A principal motivação para a produção deste texto é a urgente necessidade de compreender as transformações trazidas pelas ações econômicas predatórias das últimas décadas, agravando as crises ambientais trazidas pelas mudanças climáticas mais amplamente, ultrapassando as fronteiras dos países.
Uma pista importante é dada em um estudo publicado na revista PNAS, da Academia de Ciências do Estados Unidos. Os pesquisadores compilaram dados de mais de 15 mil árvores localizadas em cerca de 300 florestas do sul do Peru à Terra do Fogo, no extremo sul do continente sul-americano, dos dois lados da cordilheira dos Andes. Os estudiosos identificaram que a frequência de secas severas e chuvas extremas generalizadas desde a década de 1960 não tem precedentes.
A crise
O Chile sofre com uma crise ambiental sem precedentes, tendo como manifestação mais evidente a seca prolongada. O cenário agrava problemas econômicos que geram consequências sociais e políticas negativas para a população.
O ponto de partida para entender os problemas da água no Chile é a legislação parida na ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) através do Código de Águas. A rigor, a Lei nefasta tirou dos gestores públicos os instrumentos necessários para ações básicas frente à escassez de água, inclusive água para o abastecimento humano.
Em janeiro de 2022, o governo de Sebastián Piñera aprovou um projeto de reforma do Código pinochetista. A argumentação foi de que o texto da nova Lei buscaria a segurança hídrica, o combate à especulação com os direitos de águas e acabar com a entrega gratuita de direitos, à exceção dos pequenos agricultores e os serviços sanitários rurais.
Pilar Moraga, pesquisadora do Centro de Ciência do Clima e Resiliência e professora da Universidade do Chile, comentou, antes da aprovação, que a reforma do governo pioraria a situação, pois “não leva em conta as evidências científicas das projeções climáticas”. Moraga afirmou também que a discussão está sendo distanciada da realidade biofísica que vive o Chile atualmente.
Estefanía González, coordenadora de Campanhas do Greenpeace Chile, afirma que o otimismo em alguns setores com a nova Lei é compreensível. “É uma reforma que inclui elementos importantes e que levou mais de uma década para ser aprovada”.
González considera que o alcance da crise hídrica precisa de mudanças muito mais profundas. “A reforma não resolve a concessão excessiva com três vezes mais direitos sobre a água entregue do que a água disponível”. A perpetuidade para novos direitos sobre a água, na prática, continua existindo com “mecanismos como prorrogações automáticas e extinção do direito sobre a água apenas por não uso, em um contexto em que o Estado não tem capacidade de controlá-lo”. A lei mantém o caráter perpétuo dos direitos de água – questão que a reforma não mudará.
Uma crise longa e profunda
No ano passado, a seca já atingia 75% do País, alcançando sete regiões, do norte do deserto do Atacama até a região de Ñuble, no centro do país.
Os sistemas de irrigação em várias províncias entraram em colapso. Milhares de pessoas ficaram sem água e tiveram que ser abastecidas por meio de caminhões-pipa. Apicultores tiveram que mudar suas colmeias, pois as flores não possuiam mais néctar. Agricultores buscaram outras regiões ou foram reassentados. O estudo ‘Radiografia da Água Rural no Chile‘ mostra que quase 47% das casas em zonas rurais não têm acesso a água potável.
Em 2019, cinquenta e seis municípios, nas regiões de Coquimbo, Valparaíso e Metropolitana, O’Higgins e Maule, foram alcançados por um decreto de escassez de água. Na ocasião, mais de 100 localidades foram declaradas como “zonas de emergência agrícola”.
No ano passado, a Direção Geral de Águas (DGA) do Ministério de Obras Públicas informou que, desde 2015, a disponibilidade de água diminuiu em 37% e as represas apresentaram um déficit de 23%. Oscar Cristi, diretor da DGA, confirma que a maior parte das reservas de água do país estão nas mãos de empresas privadas.
A Inter Press Service (IPS) publicou no dia 03 de março deste ano uma extensa matéria sobre o assunto. A reportagem tem como tema as soluções para a nova constituição em elaboração no País. O ponto de partida foi o que ocorreu com o rio Petorca, onde a socióloga Camila Donoso, filha de camponeses e descendente do povo originário diaguita, é a coordenadora do Sindicato Rural de Água Potável da Bacia de Petorca.
Danoso conta que o rio secou devido ao uso intensivo dos agroexportadores de abacates, que “retiram a água com bombas e o acumulam em enormes lagoas”. Essa prática deixa sem água os pequenos agricultores, moradores e centros educacionais na cidade de Petorca, localizada na região de Valparaíso, centro do Chile.
Em dezembro, escolas e centros de saúde em outras cidades vizinhas tiveram que fechar devido à falta de água potável. Ignácio Villalobos, prefeito de Petorca, conta que há 10 anos havia cerca de 35 mil hectares de cultivos na região. Hoje, esse número não alcança 7 mil hectares.
No rio Perquilauquén, tributário do Maule, localizado a 370 km ao sul de Santiago, as concessões de direitos de uso da água são maiores que as capacidades da bacia hidrográfica . Segundo as conclusões do trabalho realizado por Pilar Moraga sobre projeções de mudanças climáticas, a situação deve se agravar na região nos próximos anos.
Em publicação no site Diálogo Chino, Eduardo Bustos, diretor de extensão do Centro Cambio Global da Universidade Católica, assegura que o impacto é mais evidente e direto na região Centro-sul do Chile, tanto pela concentração populacional como pelas atividades ali realizadas.
Sara Larraín, diretora da Chile Sustentable, afirmou para a IPS que não houve planejamento na região. “Os pequenos agricultores do vale ficaram sem água. Os grandes fazendeiros tinham direitos e plantavam os morros além das possibilidades. Isso é ausência de autoridade. Você não pode administrar um recurso estratégico, um bem público, com os altos e baixos do mercado se todos nós sabemos para onde as coisas vão quando você as deixa para quem paga mais”. Sara lidera um programa que reúne organizações ecológicas, acadêmicos, ativistas e cidadãos em prol de “um novo paradigma de desenvolvimento no Chile”.
Clima e extrativismo: Mineração afeta geleiras
Sara Larraín entende que a cidade de Petorca reflete uma situação estrutural que afeta uma série de elementos derivados da mudança climática, expressada pelo aquecimento, redução de chuvas e a aceleração do derretimento de glaciares.
Vale lembrar que nos países andinos os glaciares são responsáveis pelo abastecimento de água de milhões de pessoas.
Matéria gerada pela AFP e publicada pela Folha de São Paulo (24/2/22) mostra que há um processo de redução das geleiras no sul do Chile e que este é um fenômeno que ocorre praticamente em “todas as 26 mil geleiras do país —apenas duas cresceram”. Alexis Segovia, glaciologista da Unidade de Glaciologia e Neve da Direção Geral de Águas (DGA) do Chile, explica que “as geleiras são um indicador por excelência das mudanças climáticas porque são gelo e reagem a temperaturas mais altas”.
Segundo Sara Larraín, as geleiras são as únicas reservas que sobrevivem quando a chuva cai. Nos últimos anos, os reservatórios não foram preenchidos e a recarga de até 80% das bacias hidrográficas foi produto do derretimento das geleiras. Sara conta que “secou muitos rios no Norte e centro do Chile” e que ocorreu na zona Sul uma sobre-exploração das águas superficiais e subterrâneas e que a mineração de alta altitude localizada em cabeceiras de bacias compromete os recursos hídricos.
Uma Constituição em elaboração – a oportunidade de resgate do País
Após os grandes protestos de 2019 e 2020, o Chile avançou na elaboração de uma nova Constituição em substituição a atual, que mesmo com as mudanças de janeiro de 2022, relatadas anteriormente, ainda detém as marcas da ditadura de Pinochet.
Em maio de 2021 foram eleitos os constituintes encarregados do trabalho, sendo um dos debates centrais a crise ambiental e o uso dos bens naturais, principalmente a água. O Chile é o único país a estabelecer em sua constituição que o acesso à água é um direito privado, rigorosamente uma aberração que multiplica o ‘preço’, em vários sentidos, cobrado da população.
Constituintes afirmam que esperam conseguir estabelecer prioridades para a destinação do uso da água nessa ordem: consumo humano, domiciliar, saneamento básico e em seguida para atividades econômicas, como a agroindústria e a mineração.
Segundo o site Brasil de Fato, a constituinte Dayana González, da região de Tocopilla, no norte do país, informa que o norte chileno é brutalmente afetado pelo extrativismo. “No deserto o solo é muito rico e é explorado por empresas que nem sequer são daqui. Enquanto utilizam água doce para a mineração, nós tomamos água de uma usina dessalinizadora instalada a 300 metros de uma usina termoelétrica. Ou seja, utilizam essa água, devolvem para o mar e depois ela é tratada e enviada para o nosso consumo”. Carolina Vilches, também constituinte, propõe “intervir em 14 bacias cujas águas estão sobre exploradas para estabelecer prioridades”.
O texto constitucional ficará pronto entre abril e julho de 2022, sendo submetido a um referendo, quando se saberá se a herança de Pinochet quanto aos bens naturais e o direito à água será enterrada ou prevalecerá. O mínimo que se espera é que venha um novo código para as águas que garanta o acesso das pessoas, permitindo “um mecanismo de controle robusto que monitore, planeje, proporcione uma projeção sustentável”, afirma o prefeito de Petorca, Ignácio Villalobos.
Uma crise não apenas do Chile, mas de grande parte da América do Sul
Os anéis das árvores das florestas andinas ficaram marcadas por uma grande seca em 1968, evento extremo que, no Chile, fez a produção agrícola despencar 65% e o gado ser reduzido à quase metade. A ausência severa de precipitações ocorreu ainda em 1976-77, 1996-97, 2007-2008 e a partir de 2010 até hoje.
Em 1970, portanto após a grande seca de 1968, o Chile elegeu o socialista Salvador Allende sob o signo de uma grave crise econômica, amenizada no início do governo, mas agravada a seguir. Em 1973 Allende é derrubado violentamente e instaura-se a ditadura pinochetista até 1990.
Um estudo publicado na revista PNAS, da Academia de Ciências dos Estados Unidos, compilou dados de mais de 15 mil árvores localizadas em cerca de 300 florestas do Sul do Peru à Terra do Fogo, no extremo Sul do continente sul-americano, dos dois lados da cordilheira dos Andes.
Os pesquisadores identificaram que a frequência de secas severas e chuvas extremas generalizadas desde a década de 1960 não tem precedentes. De acordo com o estudo, os principais eventos expressos estão associados a fortes anomalias como o El Niño Oscilação Sul (ENSO) e Modo Anular Sul (SAM), devido ao aumento das emissões de gases de efeito estufa que podem causar secas e chuvas mais extremas na América do Sul durante o século 21”.
No trabalho é registrado que a região subtropical da bacia do Prata está frequentemente exposta a desastres de enchentes e que, mais perto no tempo, as florestas andinas ficaram marcadas pela grande seca de 1968. Eventos climáticos extremos às vezes causam grandes danos ambientais e podem até mesmo mudar rumos econômicos de regiões e mesmo de países. Quando estes eventos ocorrem em consonância com modos econômicos não apropriados para os territórios ou predatórios no uso de bens naturais, alimentam crises econômicas. Como a política move-se na subsuperfície da economia, os impactos econômicos podem levar a mudanças e a crises políticas. Foi o que a Ecoa apontou em 2021, tendo como base a grande Crise Hídrica na bacia do rio da Prata (Argentina, Bolívia, Paraguai, Uruguai e Brasil).
A crise da água no Chile se agravou desde 2010. Eduardo Bustos, citado anteriormente, afirma que “os sinais de redução de precipitações em todos os modelos e cenários, em médio e longo prazo, são muito consistentes”.
Estudos concluem que, apesar do caráter cíclico desse tipo de fenômeno, este em particular tem sido mais longo e com maior alcance geográfico. Tal alteração converte o fenômeno em uma anomalia possivelmente associada às mudanças climáticas.
Conclusão
Em publicação anterior registramos que eventos climáticos extremos às vezes causam danos ambientais profundos e podem até mesmo mudar rumos econômicos de regiões e mesmo de países. Quando estes eventos ocorrem em consonância com modos econômicos não apropriados para os territórios ou predatórios no uso de bens naturais alimentam crises que podem levar a mudanças mais radicais, tendo-se em conta que na maioria das vezes a política move-se na subsuperfície da economia.
As transformações políticas gerais do Chile no último período resultaram na eleição de um poder constituinte, sendo prevista a aprovação da nova Constituição para os próximos meses, e a eleição de um presidente mais sintonizado com as transformações necessárias pelo País indicam que se estabelece marcos para o rompimento dos restos da ditadura de Pinochet particularmente no que diz respeito ao uso da água. Claro que é necessária a construção de políticas específicas e cuidadosas para tratar das mudanças climáticas e seus efeitos territoriais, os sinais estão todos a vista e também os caminhos estão indicados por estudos e formulações bastante cuidadosos e não alarmistas. Lembro que, como indicado por membro do poder constituinte, é necessário cuidar das bacias hidrográficas e sua recuperação – urgentíssimo também no Brasil – e ter atenção ao apresentado por Sara Larain quanto às geleiras e seu abastecimento de água para o país.
A questão climática deve ser abordada mais amplamente pensando territorialmente, nas conexões com outros países, construindo políticas comuns que tratem direta e territorialmente de seus efeitos. Vale lembrar mais uma vez que fenômenos climáticos extremos, principalmente alterações nos regimes de chuvas, têm ocorrido nos países que compartem essa região da América do Sul com o Chile.