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Energia solar e conhecimento agroflorestal contribuem para resiliência da Paisagem Modelo Pantanal contra as mudanças climáticas

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Foto: Heitor Liebana.
  • Impulsionar a adaptação de famílias de pequenos agricultores assentados em meio à estiagem e as altas temperaturas tem permitido assegurar a produtividade agrícola e a geração de renda no campo.

O grande número de incêndios registrado no primeiro semestre de 2024 no Pantanal tem relação direta com a ação humana. Mas há outro cenário que se repete há anos no Pantanal e impossibilita o cultivo da terra para muitas famílias: trata-se da quantidade insuficiente de chuvas.

De acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), uma parte da borda oeste do Pantanal, onde está situada a Paisagem Modelo, tem se transformado em uma região subúmida seca – uma área árida, com déficit hídrico devido à insuficiência de chuvas, o que favorece a ocorrência de incêndios e afeta severamente o uso efetivo da terra para atividades como agricultura ou pecuária). No longo prazo, a situação pode acarretar um processo de desertificação quando associado ao uso não sustentável do solo.

LEIA MAIS: O que é a Paisagem Modelo?

É nesse contexto adverso que a Paisagem Modelo Pantanal vem se destacando como uma possibilidade de trazer bem-estar, gerar renda e promover práticas sustentáveis para famílias de pequenos agricultores rurais da reforma agrária. O projeto visa promover uma governança colaborativa entre os moradores do território, focada na igualdade de gênero e baseada na troca de conhecimentos que possibilitem um crescimento sustentável coletivo.

Ele é desenvolvido em um território que engloba a APA (Área de Proteção Ambiental) Baía Negra e o assentamento rural 72, ambos no município de Ladário (MS); a região Maria Coelho (também conhecida como “Comunidade da Igrejinha”), os assentamento Urucum e São Gabriel e o Parque Natural Municipal Piraputangas, localizados em Corumbá (MS);  fazendas de cria e recria de gado e mineradoras.

Boa parte dessas comunidades desenvolve a agricultura familiar, com culturas que incluem abóbora, mandioca e hortaliças; pecuária leiteira e cultivo de frutos nativos, entre eles a laranjinha-de-pacu, o jaracatiá e a bocaiuva. Contudo, o sucesso dessas atividades estava atrelado a caminhões-pipa, que abasteciam semanalmente as caixas d’água das famílias. A alternativa seria retirar água de poços, mas a falta de recurso financeiro das famílias impossibilitava o uso das bombas e mangueiras para fazer o serviço de irrigação.

Projeto RESTAURacción

Para consolidar o bom funcionamento da Paisagem Modelo Pantanal, a Ecoa e o Serviço Florestal Canadense atuam ao lado de 10 propriedades da região para desenvolver o Projeto RESTAURacción. Entre os objetivos principais estão: garantir que todos tenham voz ativa no modelo de gestão proposto pela Paisagem Modelo, treinar e equipar brigadas voluntárias para combater incêndios na região, e capacitar os atores locais a terem meios de subsistência alternativos e produtos da sociobiodiversidade.

O mais recente desses cursos foi ministrado no primeiro trimestre deste ano, quando os moradores do Assentamento Rural 72 aprenderam sobre sistemas agroflorestais e pecuária-floresta com a bióloga e consultora em sistemas agroflorestais Julia Vilela. E é precisamente o uso das técnicas ensinadas na ocasião que tem feito a diferença diante das condições climáticas extremas.

Por conta das altas temperaturas, regar as hortas e os plantios de agrofloresta durante o dia, sob o sol escaldante, pode esquentar demais a água a ponto de gerar queimaduras nas folhas das espécies cultivadas. A solução ideal é a irrigação por gotejamento, feita com a instalação na terra – enterradas ou na superfície – de tubulações com pequenos furos, que liberam quantidades controladas de água diretamente nas raízes e com constância programada. Além de ser mais eficiente do ponto de vista de consumo de água, o método mantém o solo úmido e diminui o impacto da evaporação natural que ocorre em razão das altas temperaturas.

Se a teoria vai bem, a prática gera um obstáculo, que é a demanda por energia tanto para abastecer o sistema de gotejamento em si quanto as bombas que puxam água dos poços. E é aqui que entra outro aspecto fundamental do Projeto RESTAURacción, que é o de trabalhar com fontes renováveis de energia. Além das aulas, os assentados receberam 10 placas solares, suficientes para suprir as necessidades domésticas e agrícolas. Com sistemas de irrigação eficientes alimentados por energia solar, o projeto tem fortalecido a sustentabilidade e a resiliência no território.

Moradores do assentamento 72 receberam as placas no início de 2024 (Foto: Heitor Liebana)

O reflexo das iniciativas conjuntas pode ser visto no sorriso dos assentados e também na fala de André Nunes, diretor da Ecoa e coordenador do projeto RESTAURacción.

“A conclusão da segunda fase do projeto trouxe uma sensação de realização e esperança. Ver que a iniciativa está funcionando e já apresenta resultados positivos é extremamente gratificante. Esta etapa representa não apenas o sucesso dos esforços coletivos, mas também um passo significativo rumo a conservação e restauração das funções ecológicas, sociais e econômicas da Paisagem Modelo Pantanal, uma das áreas úmidas mais biodiversas e importantes do mundo”, ressalta Andre.

Os benefícios da agrofloresta

Após quase dois anos desde o início do projeto, o verde da Paisagem Modelo Pantanal destoa da vegetação seca ao redor. A conquista veio através da implementação de um Sistema Agroflorestal (SAF) na região. A prática traz conceitos ancestrais de uso da terra aliados a conhecimentos científicos para tentar simular a formação natural de um ecossistema.

Contraste de um sistema agroflorestal implementando em março em comparação com a paisagem ao redor, que está seca (Foto: Gustavo Menezes).

A ideia é manter o solo coberto com diferentes tipos de vegetação, incluindo espécies perenes nativas (grandes árvores que buscam nutrientes de camadas mais profundas do solo e oferecem sombra), semiperenes (arbustos e plantas frutíferas) e elementos de ciclo curto (hortaliças), que podem ser colhidas em pouco tempo e gerar renda imediata. Com a seleção adequada, as plantas trabalham em sintonia para criar um ambiente que retém mais humidade, enriquece o solo e serve de abrigo contra o sol. Além disso, não há proliferação de pragas, o que evita o uso de agrotóxicos e pesticidas na produção.

Com o tempo, a rotação de diferentes culturas aumenta a resiliência de todo o sistema e a segurança de que a produção irá alimentar as comunidades e fornecer renda. Há ainda a chamada integração pecuária-floresta (IPF) que pode ser desenvolvida em harmonia. O ambiente acaba se tornando propício para desenvolvimento de pastagem mesmo durante as secas e assegura conforto térmico aos animais, protegendo contra o calor, ventos fortes e geadas.

Todo o conceito pode ser aplicado em larga escala, o que ajuda ainda a diminuir a sazonalidade da mão de obra no campo e mitigar a emissão de dióxido de carbono e outros gases responsáveis pelo agravamento do efeito estufa, uma vez que há uma drástica redução na necessidade de maquinário.

Paisagem Modelo e a Agenda 2030

Em 2015, a Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada em Nova York, estabeleceu metas mundiais para tornar o mundo mais sustentável e resiliente. No encontro, foram definidas 169 metas globais interconectadas e 17 ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), a serem atingidos até 2030.

Fonte: Nações Unidas Brasil.

Muitos dos objetivos traçados são trabalhados cotidianamente na Paisagens Modelo Pantanal, principalmente a igualdade de gênero com relação à governança e às tomadas de decisão. Destacam-se também a agricultura sustentável, proteção da vida terrestre (reversão de processos de degradação do solo e diminuição da perda de biodiversidade), uso de energia limpa, ação contra a mudança global do clima, fome zero e agricultura sustentável e a criação de trabalhos dignos, que promovem o desenvolvimento econômico de pequenas famílias agricultoras rurais, comunidades tradicionais, e ribeirinhas.

João Marcelo Sanches

Jornalista formado pela UFMS, com mestrado em Comunicação pela mesma instituição

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