Por Michael Esquer, O Eco
A apresentação do Relatório de Impacto Ambiental (Rima) do projeto que quer desmatar uma vasta área de vegetação nativa para plantar pasto exótico na Fazenda Santa Maria, em Corumbá (MS), foi recebida com críticas e temor em torno do impacto que este terá sobre a fauna pantaneira. Na audiência, os empreendedores apresentaram uma área menor de pastagem nativa a ser suprimida para o plantio de pasto exótico: 8,7 mil hectares, ao invés dos mais de 10 mil hectares divulgados anteriormente. Mas o contingente ainda é grande, e deve resultar na expansão de 11 mil para 22 mil cabeças de gado no rebanho da propriedade.
Presidida pelo diretor de licenciamento do Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul), Luiz Mário Ferreira, a audiência pública aconteceu nesta quarta-feira (15) de forma presencial, mas também foi transmitida pelo Youtube, onde os comentários no Chat foram desabilitados. A opção impediu a participação simultânea de quem assistia a reunião virtualmente, tendo estes, então, apenas um formulário do Google como opção de interação para o envio de perguntas, que foram lidas no final da apresentação do Rima pelos empreendedores.
Muitas dessas perguntas, porém, não foram respondidas, sobretudo as direcionadas ao Imasul. Um exemplo disso foi o questionamento de ((o))eco sobre a possibilidade do órgão ambiental estar desrespeitando a recomendação nº 12/2021, do Comitê Nacional de Zonas Úmidas (CNZU).
O documento determinou ao órgão estadual de meio ambiente de Mato Grosso do Sul que suspendesse os processos de licenciamento envolvendo a supressão de vegetação nativa para o plantio de pastagens exóticas nas áreas alagadas e inundadas do Pantanal. “Até que sejam definidos critérios técnicos ambientais, econômicos e sociais”, diz trecho da recomendação.
Outro questionamento frequente durante a audiência foi o motivo do Imasul já não ter recusado o pedido de licença ambiental da fazenda para realizar a supressão. “Comprovadamente, o desmatamento dessa magnitude afeta desastrosamente o meio ambiente. Para evitar tanto transtorno não bastava o Imasul recusar a licença ambiental? Afinal, é o órgão que, em tese, defende o meio ambiente”, questionou um representante da sociedade civil.
“É uma pergunta mais direcionada para o Imasul. A gente não se manifesta aqui, mas no devido processo de licenciamento vai ter a manifestação do Imasul”, esquivou-se o presidente do órgão ambiental estadual.
Como mostrou ((o))eco, a vegetação nativa da Fazenda Santa Maria desempenha papel importante na conservação da avifauna. Lá, ocorrem mais de 100 espécies de aves, como a arara-azul (Anodorhynchus hyacinthinus) e o mutum-de-penacho (Crax fasciolata), que estão ameaçados segundo a Lista Vermelha da IUCN. De mamíferos, são 23 espécies presentes na área da propriedade rural, sendo que quatro delas também estão ameaçadas de extinção, como o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga trydetoclita).
Esses dados estão no Rima do projeto, que admite que os impactos da perda e fragmentação de habitat para esses mamíferos ameaçados serão potencializadas com a supressão da vegetação que se pretende fazer na propriedade rural, e por isso o documento apresenta uma série de medidas que tentam mitigar esse impacto. Essas iniciativas e programas podem ser conferidas no próprio estudo e também em reportagem publicada por ((o))eco.
A apresentação do Rima
Durante a audiência, os representantes do empreendimento informaram que a área de pastagem nativa da fazenda a ser desmatada para o plantio de pasto exótico é de 8,7 mil hectares e a de vegetação do Cerrado de 2,3 mil ha, o que totaliza 11 mil ha. O número é diferente do que consta no Rima divulgado em fevereiro pelo Imasul, que são de 10,5 mil ha de pastagem nativa e 1,8 mil ha de vegetação do Cerrado, ou seja, um total de 12,3 mil ha.
A fazenda tem uma área total de 24,6 mil ha. Se receber a autorização ambiental do Imasul, a propriedade passará a ter apenas 35,7% da sua área preservada, isto é, coberta por vegetação nativa. Isso porque a fazenda já tem 3,9 mil ha de pastagens exóticas implantadas, que somados aos 11 mil de vegetação que serão suprimidos, totalizam 14,9 mil ha. Ou seja, 60,72% da área da fazenda já não será de ambientes naturais no final do processo.
“As pastagens nativas são de baixa qualidade e por ter maior parte do projeto de área de pasto nativo, essa substituição de pastagem é interessante para o aumento da produtividade”, justificou Isabelly Rezende durante a audiência, sobre a motivação da supressão e substituição por pastagem exótica na Fazenda Santa Maria. Ela é engenheira agrônoma da Batistela e Carvalho, empresa consultora do projeto.
O aumento dessa “produtividade” provocado pelo pleno uso e ocupação do solo se traduziria em recursos financeiros para o proprietário, “mais impostos” e oportunidades de trabalho, segundo ela. A projeção de aumento do rebanho, por exemplo, com a supressão de vegetação e substituição por pasto exótico seria de 100%. “Ia passar de 11 mil para 22,2 mil cabeças. Um aumento significativo que vai impactar de forma positiva para o município, na geração de emprego e de receita pública”, disse a engenheira.
A geração de empregos, tido como impacto positivo do projeto, deverá ser 44 colaboradores diretos e 88 colaboradores indiretos, durante a execução do projeto. Já no pós-supressão, disse Rezende, 53 funcionários poderão ser contratados de forma direta. No levantamento feito pelo Rima, a fazenda tinha 33 funcionários contratados em 2017, sendo 20 deles fixos.
As informações sobre a fauna da propriedade também foram apresentadas durante a audiência, tendo inclusive o representante do empreendedor dito que, além dos programas ambientais já mencionados pela reportagem, não irá cortar os babaçus da propriedade, por conta do papel que estas palmeiras têm como fonte de alimento para a arara-azul (Anodorhynchus hyacinthinus).
Apesar de mencionar no Rima que quatro mamíferos que ocorrem na fazenda estão ameaçados de extinção no país – queixada (Tayassu pecari), lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) e anta (Tapirus terrestris) – essa informação não foi dita durante a reunião.
Durante a audiência, os resultados do Rima apresentaram as espécies ameaçadas da avifauna, mas não apresentaram as de mamíferos. Foto: Reprodução/Imasul/Youtube
((o))eco entrou em contato com o representante legal do projeto para questionar qual deve ser de fato a área nativa a ser desmatada para o plantio de pasto exótico – se a do Rima ou a apresentada nesta quarta –, assim como para saber se o novo número apresentado será atualizado no Rima. Ainda não houve resposta sobre o assunto. O espaço segue aberto.
Estudos por fazer
Um dos questionamentos feitos por especialistas durante a audiência pública foi se o projeto de diagnóstico de potencial arqueológico da região que será desmatada estava sendo feito. Muitos dos capões-de-mato e cordilheiras do Pantanal, que se apresentam como ilhas de vegetação, são sítios arqueológicos do tipo “aterros”, segundo especialistas consultados por ((o))eco. Muitos destes, porém, sequer são cadastrados no Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).
Sobre isso, a engenheira agrônoma disse que a consultoria que irá fazer esses levantamentos, e posteriormente, apresentar esses estudos ao Iphan, ainda está sendo selecionada. “Estamos nessa fase de contratação. Quando foram feitos os levantamentos e emitido o Termo de Referência (TR) não era solicitado a anuência do Iphan. Naquele momento foi feito um levantamento mais superficial”, disse Rezende.
A emissão de gases de efeito estufa também despontou como preocupação de quem assistia a audiência. Isso porque a emissão do gás metano pelo gado é considerada uma das intensificadoras do aquecimento global. O questionamento foi se esse fator foi considerado pelos empreendedores. “Na época que foram realizados os estudos, não eram exigidos os para emissão de gases de efeito estufa. Hoje em dia é solicitado e o projeto está sendo elaborado. Ele vai ser apresentado no processo para análise do órgão licenciador”, respondeu a engenheira à pergunta.
Os estudos que dão base para o Rima completam meia década neste ano. Entre quem assistia a audiência, esteve presente também a preocupação de que os números contidos no documento não fossem mais reflexo das comunidades de espécies que de fato ocorrem na fazenda.
“Nós estamos cientes desse fato, se o órgão ambiental achar necessário fazer modificações, a gente vai fazer e anexar ao relatório final”, disse Paulo Landgref Filho, biólogo da Batistela e Carvalho que integrou a equipe técnica responsável pela elaboração do Rima.
Impactos para a biodiversidade
Outro temor levantado por quem assistia a reunião foi a possibilidade do gado, que terá sua população duplicada com a supressão e plantio de pasto exótico, acessar as áreas de Reserva Legal da fazenda, o que poderia prejudicar negativamente a conservação da vegetação nativas dessas áreas – seja pelo pisoteio ou pelo pastoreio. “Apesar de permitida pela legislação, não será a intenção do empreendedor utilizar a Reserva Legal para o pastoreio do gado”, respondeu à pergunta o engenheiro sanitarista e ambiental Renan Abdala Carvalho, coordenador técnico do projeto.
A curta duração dos levantamentos de fauna apresentados no Rima também foi exposto pela sociedade civil, que questionou a ausência de informação sobre o tamanho das populações encontradas na fazenda antes da supressão. “Esse impacto seria medido pela diferença das populações de antes e depois da supressão”, disse um participante da audiência.
Filho disse que a equipe que realizou o diagnóstico ambiental apenas se norteou no TR que foi emitido pelo Imasul. “O objetivo era determinar a riqueza, a abundância da espécie e onde que elas ocorriam. Para isso, usamos essa informação de onde a espécie ocorre, em que ambiente, qual espécie, para montar essa matriz. Foi a partir da presença e ausência das espécies nos ambientes que a gente montou essa matriz de impacto”, disse o biólogo.
Confrontados sobre o impacto da perda e fragmentação de habitat, que é mencionado por diversas vezes no Rima, os empreendedores reconheceram que esse “impacto existe”. “Todavia, pautada na legislação, seguindo a legislação vigente, é possível que seja realizado o projeto de supressão e substituição de pastagem”, rebateu a engenheira agrônoma.
Legislação permissiva
Para o biólogo Gustavo Figueirôa, o pedido para a supressão de tamanha área de vegetação nativa em Mato Grosso do Sul demonstra a permissibilidade da legislação do estado, sobretudo por conta do Decreto 14.273/2015, também conhecido como Decreto do Pantanal, que regulamenta a supressão de vegetação nativa no bioma. “É um decreto sem embasamento técnico e super permissivo para o desmatamento”, disse ele, que é diretor de Comunicação e Engajamento do Instituto SOS Pantanal.
Segundo dados do MapBiomas analisados pela organização e compartilhados com ((o))eco, 90,4 mil hectares foram desmatados no Pantanal sul-mato-grossense entre 2019 e 2022. O número é quase 10 vezes maior do que o registrado no estado vizinho (10,1 mil hectares), Mato Grosso, onde as pastagens exóticas podem atingir no máximo apenas 40% da propriedade rural, segundo determina a Lei do Pantanal do estado.
“Com certeza, a legislação do Mato Grosso do Sul é super permissiva”, comenta o diretor da organização que integra o Observatório Pantanal – coalizão composta por 43 instituições socioambientais atuantes na Bacia do Alto Paraguai (BAP) no Brasil, Bolívia e Paraguai.
Retrato disso foram as afirmações feitas durante a audiência desta quarta, onde os representantes do projeto na Fazenda Santa Maria invocaram por diversas vezes a legislação ao serem questionados sobre a possibilidade de aliar a produção pecuária à conservação da biodiversidade, através da manutenção do pasto nativo – o que poderia agregar valor à carne pela produção sustentável.
“É possível realizar o projeto de supressão vegetal e substituição de pastagem porque ele está pautado na legislação, o projeto foi feito norteado por diversas legislações”, reforçou a engenheira agrônoma da consultora do projeto.
Em Mato Grosso do Sul, de acordo com o diretor da SOS Pantanal, aparentemente, os órgãos de estado são submetidos às orientações que vão no sentido contrário à questão da conservação ambiental. “Devia ser para conservar junto com o desenvolvimento econômico da região”, conclui Figueirôa.