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“Fio d’água” – Os efeitos cumulativos de barragens no rio Jauru

10 minutos de leitura

Artigo originalmente publicado por Pierre Girard* no documento Cenários Pantaneiros: Hidrelétricas na Bacia do Alto Paraguai (p. 27-29).

Sou pesquisador da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e do Centro de  Pesquisa do Pantanal (CCP). Minha área específica de pesquisa é sobre inundação no Pantanal.

Em recentes debates sobre os impactos cumulativos de barragens no Pantanal, ouvi diversas vezes que, como a grande maioria das barragens construídas e previstas são de tipo fio d’água, não haveria impactos cumulativos no Pantanal. O que me parece certo é que ainda não temos como afirmar isso.

Barragens fio d’água são essas que tem “como característica um pequeno reservatório, que opera praticamente em níveis constantes, admitindo pequenas flutuações devido a requisitos de variação de produção de energia, não havendo armazenamento de água para escoamento sazonal, como ocorre nas unidades que operam com reservatórios de acumulação” (REVISTA FURNAS, 2005). Isso não significa que não tem reservatório – eles podem atingir dimensões de vários quilômetros quadrados (e.g. usina Luiz Carlos Barreto de Carvalho na divisa SP e MG com reservatório maior de 46 km²), implicando a construção de um barramento que eleva em vários metros (10 ou mais) a linha d’água de um rio.

Os impactos de barragens sobre os rios e os ecossistemas ripários são bem conhecidos na literatura técnica. Eles podem ser resumidos assim:

– Impactos no regime hidráulico, no regime de sedimentos e nutrientes, provocando mudanças na morfologia fluvial e nas características ecológicas do rio.

– Impactos sobre a diversidade no próprio rio e na planície de inundação podendo causar perda de biodiversidade.

– Erosão a jusante provocada pelas“águas famintas” (sedimentos retidos pelos reservatórios).

– Impactos sobre a qualidade de água (temperatura, pH, composição química) tanto a jusante como a montante do represamento.

– Impedimento da migração de algumas espécies de peixe provocando alterações na população destas espécies (espacial e temporalmente).

Frente a estes impactos potencias de cada barragem é lógico que haverá efeitos cumulativos. O caso do rio Jauru, afluente do rio Paraguai e formador do Pantanal, serve para ilustrar este questionamento.

Visitei o rio Jauru em 2008, quando efetuava uma pericia técnica para o Ministério Público de MT. As figuras são tiradas do relatório produzido nesta época.

Quando a perícia foi feita, existiam cinco hidrelétricas no rio Jauru, sendo quatro pequenas centrais elétricas (PCHs) e uma usina hidrelétrica (UHE). Hoje são seis barragens, sendo uma PCH. Segundo a classificação nacional PCH produz entre 1 e 30 MW.

Mapa dos empreendimentos hidrelétricos no rio Jauru (Arquivo Ecoa)
Mapa dos empreendimentos hidrelétricos no rio Jauru (Arquivo Ecoa)

A figura acima mostra a localização destas hidrelétricas. Figueirópolis é a mais recente PCH e Jauru refere-se a UHE Jauru.

Cada uma das PCHs é do tipo fio d’agua. No entanto o barramento de cada uma é de tamanho diferente. Por exemplo, Brennand (22 MW) tem um reservatório de apenas 0,14 km². Ombreiras (26 MW) tem um reservatório de 2,9 km²  e Indiavaí (28 MW) um reservatório de 0,32 km². Cada uma destas usinas aproveitou uma queda d’água natural e a ampliou pela construção de uma represa o que elevou a linha d’água do rio. A UHE Jauru, por exemplo, aproveitou a Cachoeira da Fumaça – um desnível natural de ~40 m. Aumentou a linha d’água em mais ~50 metros para obter uma queda de perto de 100 m.

Em consequência alterou-se o perfil natural do rio que em seu trecho médio converteu-se numa sequência de reservatórios.

Considerando estas modificações na morfologia do rio, podemos pensar que haverá  eventualmente vários impactos cumulativos afetando o Pantanal:

1. Esta sequência de represamentos deve ter perturbado a migração dos peixes fluviais. Aliás, a queixa que levou o Ministério Público a pedir esta perícia foi justamente de uma associação de pescadores que reclamou do declínio de peixes fluviais.
2. Cada uma destas represas retém a produção de sedimentos no trecho de rio a montante dele causando uma diminuição incremental da carga sedimentar e de nutrientes. Após Figueiropólis, a carga sedimentar e de nutrientes atual é provavelmente apenas uma fração do que era antes da construção das hidrelétricas o que implicaria que a contribuição em sedimentos e nutrientes do rio Jauru para o Pantanal teria diminuído. Isso poderia ter impactos sobre a ecologia da planície, em particular a produção de peixes.
3. Pode se suspeitar que em reservatórios como os de Ombreiras e Jauru, a temperatura da água aumenta (um espelho d’água com pouca correnteza favorece aumento de temperatura), o que teria impactos sobre a química da água e em particular sobre a concentração de oxigênio dissolvido, na qual a concentração é ligada a decoada (mortandade de peixes) nos rios pantaneiros.
4. Enfim, mesmo sendo pequenos, é possível que reservatórios em cascata produzam uma amortização das ondas de cheia o que poderia afetar a temporalidade da onda de cheia no Pantanal.

O que estas indagações sugerem é que não é mais possível considerar de forma independente a construção de cada usina elétrica na Bacia do Alto Paraguai. Visto a importância nacional e internacional do Pantanal é bom refletir sobre a seguinte possibilidade: os impactos de cada nova barragem (PCH ou UHE) se adicionam a soma dos impactos das barragens já construídas o que implicaria que:

– Cada nova barragem em afluente do rio Paraguai diminui mais um pouco as possíveis rotas para peixes migratórios do Pantanal.

– Cada nova barragem diminui mais ainda a carga de sedimentos e nutrientes essenciais ao bom funcionamento ecológico do Pantanal.

– Cada novo reservatório tem o potencial de aumentar mais ainda a temperatura da água dos afluentes do Pantanal favorecendo episódios de decoada (mortandade de peixes).

– Cada novo reservatório aumenta a possibilidade de uma amortização da onda de cheia no Pantanal causando uma defasagem desta o que seria potencialmente prejudicial à várias espécies pantaneiras.

Além destas considerações puramente qualitativas, é necessário, para uma gestão inteligente da Bacia do Alto Paraguai e do Pantanal, desenvolver ferramentas que permitam prognósticos quantitativos. Somente com estas ferramentas poderemos saber quando mais uma barragem na bacia é uma barragem demais. Não se trata de impedir a produção de energia elétrica. Mas sim planejar a produção de energia de forma a minimizar os impactos ambientais e conservar o Pantanal.

*Pierre Girard é canadense, geólogo e doutor pela Universidade do Québec em Montreal (UQAM) sobre hidrologia isotópica. Co-fundador do Centro de Pesquisas do Pantanal (CPP), é professor da UFMT desde 2002, coordenou e coordena vários grandes projetos e pesquisa sobre a dinâmica de inundação no Pantanal.

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