O insustentável peso da água

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Texto originalmente publicado em: 03/10/06

Por Marcelo Leite*

Quanto pesa uma tonelada de soja exportada? Quem fizer a pergunta a Lester Brown, cérebro por trás da bíblia ambiental “Estado do Mundo”, arrisca ouvir uma resposta heterodoxa. Ele diria, provavelmente: mil toneladas – de água.

Há quem abomine Lester Brown por sua capacidade de manejar estatísticas em favor da causa ambiental. É o alvo preferido de Bjorn Lomborg, autor do best-seller “O Ambientalista Cético”, escrito para desconstruir cifras verdes. Mas Brown tem um mérito invejável: formular metáforas que simplificam assuntos intricados e abreviam sua compreensão.

“Exportar água na forma de grãos”, por exemplo. A figura se encontra no livro “Plan B 2.0”, que dedica um capítulo à escassez de água no mundo. Nele Brown explica que países como a China estão sacando a descoberto nas suas reservas do líquido, acima da capacidade natural de repô-las.

A agricultura consome 69% da água doce utilizada no mundo. Se for preciso poupá-la, eis aí um bom setor por onde começar. Para produzir uma unidade de peso de grãos, informa Brown, gastam-se mil de água. Ao diminuir sua produção de soja e importá-la do Brasil, a China na realidade está importando água.

Tudo bem, dirá o cabeça-de-planilha, de olho na balança comercial. O Brasil tem água de sobra. Pode muito bem desperdiçar o recurso por um bom punhado de dólares. A erosão dos solos, o desmatamento do cerrado e da Amazônia e o assoreamento dos rios vão de troco.

É a opção preferencial pelas commodities, enquanto a China nos inunda com bens industrializados.

Mas não, dirá o companheiro instalado em Brasília, o agronegócio vai exportar produtos beneficiados, como álcool de cana e biodiesel de soja, mamona, dendê etc. Com tanta água e terra para devastar, o país já entra como peso pesado no ringue bilionário dos biocombustíveis.

Melhor pôr as barbas de molho. De um ponto de vista energético, a obtenção de biocombustíveis de vegetais ainda pode ser considerada primitiva. A maior parte da biomassa, celulose, não contribui com nada para a composição dos substitutos renováveis dos combustíveis fósseis (petróleo, carvão, gás natural).

Os precursores de Brown, de Thomas R. Malthus a Paul R. Ehrlich, erraram algumas previsões por subestimar a tecnologia. Se ela conseguir aumentar a eficiência da conversão de plantas em combustível, capturando a energia química da celulose hoje desperdiçada, o Brasil pode acabar dependurado na brocha. E o cabo da brocha, infestado de cupins.

Bem, não exatamente de cupins, mas de enzimas que esses insetos empregam para digerir a madeira. Foi nos intestinos do bicho que a empresa Diversa, da Califórnia, encontrou inspiração para criar um coquetel de catalisadores da hoje ineficiente produção de etanol a partir do milho.

Os resultados ainda são módicos, mas mais gente trabalha na mesma linha. Tentam extrair lições de eficiência energética das entranhas de bactérias e outros germes. (Enquanto isso, luminares da biotecnologia brasileira se contentam em servir de garotos-propaganda da soja transgênica.)

Craig Venter, o visionário do projeto genoma privado, foi um dos primeiros a perceber de onde o vento do futuro vai soprar. Um de seus hobbies atuais é seqüenciar o DNA de microrganismos por atacado, atrás de genes envolvidos na conversão de energia (a grande especialidade da vida).

Quantas toneladas de água pesará um grama de enzimas ou bactérias, daqui a dez anos?

*Marcelo Leite é doutor em Ciências Sociais pela Unicamp, autor do livro paradidático “Pantanal, Mosaico das Águas” (Editora Ática) e responsável pelo blog Ciência em Dia (www.cienciaemdia.zip.net).

(Foto de capa de Jong Marshes via Unsplash)

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