Michael Esquer, o Eco
Considerada como o melhor destino de ecoturismo do País, a cidade de Bonito, assim como a região que a circunda em Mato Grosso do Sul, tem no rio da Prata uma de suas principais atrações: as translúcidas e cristalinas águas, na qual mergulham milhares de turistas todos os anos. Afluente do rio Miranda, o curso d’água integra a bacia do Alto Paraguai (BAP), na qual também assenta-se a planície do Pantanal.
Esse atrativo, que integra o rol de atividades turísticas que movimentam a economia da região, entretanto, sofre com o escurecimento provocado pela combinação de chuvas intensas e o uso não planejado do solo, sobretudo pela expansão acelerada da soja.
Essa relação entre a transparência da água do rio da Prata e a expansão agrícola foi analisada por pesquisadores da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), Embrapa Pantanal e University College de Londres (UCL, da sigla em inglês), e tiveram os resultados publicados no final do ano passado, em estudo na revista científica Tropical Conservation Science.
Acesse o estudo aqui.
Para entender o que mais afetava o escurecimento das águas, os pesquisadores analisaram dados de uma década sobre mudança de uso do solo, transparência e precipitação da bacia do rio da Prata. “Nossa análise mostrou que plantações de soja saltaram de 4% na bacia do rio Prata em 2010 para 20% em 2020”, diz trecho do artigo.
Esse avanço foi divido em três períodos: de média (2010-2013), rápida (2014-2016) e lenta expansão (2017-2020). No período de rápida expansão da soja, quando choveu em média 145,3 mm por mês, uma empresa turística analisada pelos pesquisadores teve que interromper os passeios no rio da Prata em média 13,4 dias por mês por conta do escurecimento da água, ou seja, quase metade dele.
No período de lenta expansão, o número foi de apenas 8,3 dias por mês, mesmo com um índice médio de chuva semelhante ao registrado no período de rápida expansão: 142 mm por mês.
“Nós […] mostramos que enquanto a plantação de soja estava se expandindo rápido entre 2014 e 2016, ela desempenhou um papel significativo no aumento do número de dias em que a água do rio da Prata foi classificada como muito turva”, conclui o artigo.
Chuva, erosão e expansão agrícola
“A chuva é o principal fator que afeta a transparência do rio em Bonito, só que quando você tem uma aceleração da expansão da soja o efeito da chuva é multiplicado”, conta a ((o))eco sobre a conclusão da pesquisa o professor do departamento de Antropologia da UCL, Rafael Morais Chiaravalloti.
Primeiro autor do estudo, ele explica que sozinha a soja não é um problema, pelo menos não para a transparência do rio da Prata. Entretanto, o escurecimento da água ocorre a partir da combinação de chuvas torrenciais com a erosão, sendo esta última, sim, acelerada pela expansão desordenada e mal planejada das plantações do grão na região de Bonito.
Esse cenário é confirmado por outro estudo publicado em 2020, que apontou que as atividades da agropecuária foram as que mais influenciaram as mudanças do uso e ocupação do solo na bacia do ria da Prata, sendo as nascentes, a mata ciliar da margem dos rios e, ainda, os banhados as áreas mais afetadas.
“Na região, muitas plantações acabam removendo o solo para o plantio. Quando você faz esse processo para o plantio de soja, você aumenta a erosão”, diz Chiaravalloti ao se referir ao sistema indireto de plantio, também conhecido como convencional. Nesse modelo, retira-se a vegetação nativa ou os restos do plantio anterior para preparar o solo.
Se parece difícil de entender, apenas imagine o chão, coberto por vegetação. Essa cobertura, como dita a natureza, fornece a proteção necessária contra as intempéries de chuvas torrenciais. Isso porque são as raízes dessa vegetação que seguram o solo, não permitindo que este seja removido pela água. Sem essa cobertura, ou quando ela é substituída por monocultura, o solo fica vulnerável, desprotegido.
“É igual pegar um bolo e soprar. O bolo vai dar uma mexidinha, mas vai continuar firme. Agora se você pegar um prato de farinha e dar uma soprada, a farinha vai voar. O sopro é a chuva, o bolo é a floresta e a farinha é a soja”, simplifica o primeiro autor do estudo.
Dessa forma, a combinação entre chuva e um solo já vulnerável potencializa a erosão, que nada mais é do que o desfazimento da margem do rio pelo movimento da água. O resultado disso, por sua vez, é o maior escurecimento da água, a partir do contato com essa terra que cai. “A soja sozinha não faz nada, mas com a chuva e a má gestão do uso da terra, ela tem um grande efeito na quantidade de dias que a água fica escura”, explica Chiaravalloti.
Outro ponto sobre o qual o estudo chama a atenção é o de que essa combinação possa acabar criando um ambiente inviável para o turismo na região, que têm nas águas cristalinas do rio da Prata uma de suas principais atrações.
Uma rápida expansão da soja associada a um período de chuva forte, por exemplo, poderia fazer com que a empresa analisada tivesse que interromper os passeios no rio da Prata por até 26 dias no mês, devido ao escurecimento da água. Pelo menos foi esse o resultado de estimativa feita pelos pesquisadores, em um cenário de 300 mm de chuvas. “O problema principal é que estamos afetando um setor que gera grande parte dos empregos e do capital de Bonito”, aponta o professor da UCL.
O estudo ao mesmo tempo destaca que o impacto dessa combinação foi analisado apenas no rio da Prata, porque era esse o foco da pesquisa. Entretanto, em toda a região de Bonito, onde também se exerce a pressão da expansão agrícola, pelo menos 20 outros destinos turísticos dependem da transparência da água, como é o caso do rio Formoso, que tem assistido ao turvamento intenso de suas águas nos últimos dias.
Cinturões verdes contra a erosão
Entre passos importantes para mitigar o impacto revelado pelo estudo na bacia do rio da Prata, os pesquisadores destacam a necessidade do planejamento tanto da expansão da soja, considerando o melhor manejo do solo com o plantio direto — sistema conservacionista que busca agredir menos a terra e evitar a erosão —, quanto da localização de reservas legais, sendo este último fundamental para complementar as áreas de proteção ao longo dos rios.
“Quanto maior a área de floresta perto do rio, maior é a área do bolo e menor é a área de farinha, pensando no exemplo que eu disse”, explica o professor da UCL.
A ideia é que a localização de reservas legais sejam pensadas de modo a constituir, ao lado de áreas de preservação permanente (APP), uma grande porção de floresta, até que se chegue em um terreno que esteja produzindo soja, ou qualquer outra atividade agrícola.
“É bom porque você consegue aumentar o amortecimento da erosão”, argumenta Chiaravalloti.
O pagamento pelo sistema de serviços ecossistêmicos também é outro caminho possível para que se incentive a adoção de boas práticas no manejo do solo. “O Estado paga às pessoas para plantar mais árvores, pensando no aumento do amortecimento do rio da Prata”, esclarece o pesquisador ao relembrar que o curso d’água é o grande motor de geração de renda em Bonito.
Mudança pelo convencimento
A ((o))eco, Eduardo Folley Coelho conta que, mesmo sem a ocupação humana do solo, as águas dos rios da região de Bonito também ficavam escurecidas no passado. A diferença é que agora isso ocorre com maior frequência e por mais tempo do que antes. E a tentativa de reverter esse cenário faz parte da missão do Instituto das Águas da Serra da Bodoquena (IASB), organização que ele preside.
“O Cerrado, a mata, tem uma capacidade de absorção muito maior do que uma lavoura de soja, do que uma pastagem, mas a gente trabalha para minimizar isso”, conta ele. Fundado há 20 anos, o IASB une desde proprietários rurais e empresários do turismo a ribeirinhos em torno da busca da conservação das águas da Serra da Bodoquena, onde fica o rio da Prata e outras tantas nascentes de cursos d’água importantes para o Pantanal.
No projeto Águas de Bonito, por exemplo, o instituto atua com reforma de estradas, contenção de escavações provocadas pela água da chuva (voçorocas), instalação de caixas de retenção – reservatórios feitos no chão para infiltrar a água da chuva –, recuperação de mata ciliar e cercamento em APPs, entre tantas outras iniciativas que buscam mitigar os impactos da erosão sobre as águas de bacias de Bonito.
Desenvolvida desde 2020, a iniciativa é apoiada pelo Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPMS), Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (Imasul) e Sindicato Rural de Bonito, e se configura como uma das medidas indicadas pelo estudo recém publicado, que podem reduzir possíveis impactos econômicos e ambientais na região de Bonito.
“Se a fazenda é de agricultura e não tem cerca na APP, a pessoa não sabe onde é APP e vai gradear, não deixando a mata reconstituir, porque não sabe onde está o limite. Se é pecuária, quando o gado entra danifica a APP”, explica ele sobre o objetivo do cercamento, que nada mais é do que basicamente limitar o acesso a essas áreas protegidas para que depois elas possam se recuperar, seja de forma natural ou por meio de plantios.
No rio da Prata, esses plantios estão acontecendo a partir da ação do Instituto Amigos do Rio da Prata, organização que ele também coordena, somado ao apoio do IASB. “As mudas são produzidas pelo viveiro do rio da Prata, o IASB ajuda na coleta de semente ou no viveiro da Prefeitura de Bonito […]. Às vezes, vai e faz o plantio junto também”, comenta Coelho.
Já em outra frente, o instituto ainda atua com o convencimento dos produtores rurais de que o principal beneficiado pela conservação do solo, depois do meio ambiente, é ele próprio. “Quando ele perde o solo que vai para o rio, ele perde a camada mais fértil do solo dele. Ele é o que mais perde”, diz Coelho ao explicar que estes sedimentos erodidos carregam muitos anos de formação.
E para alcançar esse objetivo, o IASB conta também com a ferramenta da educação ambiental, que já ocorre com mais força tanto no rio Mimoso quanto no da Prata. “O meu sonho é colocar na cabeça das pessoas que ele tem que ir para uma agricultura sustentável, que tem o melhor planejamento do uso do solo”, comenta.
Para Coelho, nesse tipo de agricultura tanto se economiza em adubo quanto na aplicação de inseticidas. “É bom para o meio ambiente e para o bolso porque se produz a mesma coisa, ou mais, gastando menos”, diz ele. Esse plantio sustentável, porém, ainda concorre com o plantio convencional, não sustentável.
Se atualmente o rio da Prata leva em média três dias para recuperar a sua cristalinidade depois da turbidez de um dia de chuva, o objetivo no curso d’água, agora, é que ele retome o ritmo de transparência de 40 anos atrás: “Meu sonho é que daqui três anos ele volte a demorar só um dia”, enfatiza o presidente do IASB.