José Tadeu Arantes | Agência FAPESP – Em estudo publicado na revista Flora, pesquisadores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) detalharam algumas das diferentes estratégias que as plantas do Cerrado desenvolveram ao longo da evolução para se proteger do fogo e rebrotar rapidamente após episódios de incêndio.
O artigo tem como primeiro autor o doutorando Marco Antonio Chiminazzo e foi reconhecido como Highlighted Student Research (Destacada Pesquisa de Estudante) pela revista. Aluno de pós-graduação da Unesp em Rio Claro, Chiminazzo recebeu apoio da FAPESP durante seu mestrado e doutorado.
Participaram da pesquisa sua orientadora, Alessandra Fidelis, professora do Departamento de Biodiversidade da Unesp-Rio Claro; sua coorientadora Aline Bombo, pós-doutora pela mesma instituição; e seu coorientador Tristan Charles-Dominique, pesquisador na Sorbonne Université e na Université de Montpellier, na França.
“Eventos de fogo fazem parte da história da vegetação savânica do Cerrado. E, para sobreviver às queimadas, as espécies vegetais desenvolveram diversas estratégias, que foram aprimoradas por diferentes linhagens ao longo da evolução. Desde os primeiros estudos feitos no bioma, é sabido que as plantas do Cerrado possuem cascas espessas, capazes de proteger seus tecidos internos. E também uma grande diversidade de órgãos subterrâneos, capazes de assegurar a rebrota a partir de estruturas protegidas abaixo do solo. Contudo, as duas estratégias exigem grande mobilização de recursos por parte das plantas. Nossa pergunta principal foi se elas poderiam realizar ambas ao mesmo tempo – isto é, se espécies típicas do Cerrado que possuem órgãos subterrâneos também seriam capazes de produzir quantidades significativas de casca acima do solo”, conta Chiminazzo.
Além disso, dado o potencial de espécies se propagarem de forma clonal, dependendo do tipo de órgão subterrâneo que possuam, o pesquisador buscou investigar se existe alguma diferença na produção de casca e proteção de gemas entre espécies com e sem capacidade de crescimento clonal. E, visto que plantas clonais geralmente são menores, pois dividem seus recursos entre crescimento em altura e crescimento lateral, buscou-se saber também se há relação entre a altura máxima que as plantas podem crescer e a capacidade de se propagar ou não de forma clonal.
“O que fizemos, em um primeiro momento, foi repassar a literatura, a fim de identificar espécies lenhosas do Cerrado cujos órgãos subterrâneos e taxas de produção de casca acima do solo haviam sido descritos. Em seguida, realizamos excursões de escavação e coleta em áreas de campo sujo e de cerrado stricto sensu a fim de analisar os órgãos”, conta Chiminazzo.
As excursões foram realizadas na Estação Ecológica de Santa Bárbara, no município de Águas de Santa Bárbara, interior de São Paulo.
“Posteriormente, as espécies foram agrupadas em relação aos seus tipos de órgãos subterrâneos e à capacidade de se desenvolverem ou não de forma clonal. Avaliamos três tipos de órgãos subterrâneos mais comuns encontrados em savanas: rizoma lenhoso, também conhecido como sóbole, responsável pelo crescimento clonal; e xilopódio e root crown, que não proporcionam crescimento clonal”, prossegue o pesquisador.
Por meio da comparação entre órgãos subterrâneos e taxa de produção de casca, o estudo mostrou que as espécies do Cerrado são capazes de produzir altas quantidades de casca, de até 0,9 milímetro por unidade de crescimento, e, ao mesmo tempo, apresentar órgãos abaixo do solo especializados para a rebrota. Ou seja, as espécies do Cerrado podem tanto se proteger do fogo acima do solo quanto esconder grande parte de sua biomassa abaixo do solo, que atua como isolante térmico durante as queimadas.
“Também encontramos uma divisão clara entre espécies que crescem de forma clonal e aquelas que ocupam um único espaço durante todo o seu ciclo de vida. Especificamente, vimos que espécies clonais que apresentam rizomas lenhosos geralmente possuem maior produção de casca, melhor proteção e um maior potencial de crescer em altura quando comparadas a espécies que possuem xilopódios e root crowns”, informa Chiminazzo.
Segundo o pesquisador, essas diferenças sugerem duas estratégias distintas de plantas capazes de rebrotar de gemas subterrâneas: o crescimento clonal, atrelado a um empenho considerável na proteção de ramos aéreos; e a persistência em um mesmo local, possivelmente ligada a um maior empenho em gemas presentes em órgãos subterrâneos.
“Este trabalho revela que espécies do Cerrado são capazes de ‘apostar’ em diferentes estratégias para se proteger do fogo. Geralmente, espera-se que a espécie ‘invista’ em estratégias acima ou abaixo do solo. Ou seja, uma coisa ou outra. O potencial de ‘investir’ em ambas as estratégias indica uma grande adaptação ao fogo por parte de plantas lenhosas do Cerrado. Por apresentarem estratégias de regeneração e persistência tanto aéreas quanto subterrâneas em relação ao fogo, essas espécies podem sobreviver a eventos de queimada de diferentes intensidades”, comenta Bombo.
Como explica a pesquisadora, os próximos passos envolvem compreender em quais regimes de fogo as estratégias de regeneração e persistência aéreas, subterrâneas ou a combinação de ambas são favorecidas.
“Isso talvez contribua para uma melhor compreensão dos diferentes estoques de carbono acima e abaixo do solo no Cerrado. Além disso, uma comparação com diferentes savanas ao longo do globo permitirá avaliar se os resultados deste estudo também se estendem a outros tipos de vegetação que são expostos a eventos de fogo”, afirma Bombo.
Bioma em risco
O Cerrado é hoje o bioma mais ameaçado do Brasil. Enquanto o desmatamento da Amazônia diminuiu de forma significativa em 2023, o desmatamento do Cerrado atingiu percentuais recordes. Nos cinco primeiros meses do ano, cresceu 35% em comparação com o mesmo período do ano anterior. Esse acréscimo corresponde a 3.532 quilômetros quadrados de destruição. E os números, divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), são extremamente preocupantes, pois, além de ser a savana mais biodiversa do mundo, detentora de 33% de toda a biodiversidade brasileira, o Cerrado abriga as nascentes das três maiores bacias hidrográficas da América do Sul.
Enquanto a destruição avança, importantes pesquisas científicas têm sido conduzidas com o objetivo de prevenir incêndios ou de utilizar adequadamente o fogo como estratégia de manejo. Outros estudos mostram também a incrível resiliência e poder de regeneração das espécies vegetais do Cerrado, que evoluíram durante milhões de anos na presença de eventos de fogo.