Por Valor econômico
O biólogo Roberto Waack, 56 anos, recebeu um telefonema em dezembro – uma sondagem para presidir a Renova, a fundação criada no acordo de reparação dos danos do maior desastre ambiental do Brasil, o rompimento da barragem da Samarco em Mariana (MG). Pensou três meses até aceitar. “Não acho que o maior desafio é a questão da lama. Ela será resolvida e está, com a engenharia. A frente da governança, de como conseguir fazer que tudo aconteça de verdade, com o envolvimento das comunidades, é meu maior desafio.”
Assumiu em 2 de agosto. Nas primeiras semanas percorreu muitos dos quase 700 quilômetros ao longo do rio Doce para conhecer o estrago e poder administrar os R$ 4,4 bilhões que serão repassados à Fundação pela Samarco até 2018. Na operação que a Fundação irá herdar da mineradora há 3 mil pessoas envolvidas. A Renova tem sede em Belo Horizonte, Mariana, Linhares e Governador Valadares. “Temos que estar no local, esta não é uma organização de escritório.”
Waack tem prestígio no universo da sustentabilidade. Aos poucos vem abandonando seus chapéus nas organizações da sociedade civil – preside ou fez parte dos conselhos do WWF-Brasil, Ethos, Global Reporting Initiative (GRI) e da Coalizão Brasil Clima, que junta ambientalistas e empresas na pauta da mudança do clima. Estar diante de um cenário de terra arrasada é, para ele, uma oportunidade de desenvolver a região de outra forma. “A conservação terá de estar conectada à produção e ao resultado econômico. É tudo o que a gente acredita e é o desenho da nova economia.”
O rompimento da barragem de Fundão, na tarde de 5 de novembro, envolveu 55 milhões de m3 de rejeitos. Destes, 32 milhões de m3 foram levados pelas águas dos rios, provocando 19 mortes, destruindo vilarejos, sítios históricos, propriedades, meios de vida, biodiversidade e impactando gravemente o próprio rio Doce. Estima-se que 26,5 milhões de m³tenham ficado depositados no trecho até a hidrelétrica Risoleta Neves, conhecida por Candonga, e apenas 5,5 milhões de m³seguiram rio abaixo, até a foz, no Espírito Santo.
Em novembro começam as chuvas. A Samarco tem que garantir as obras de segurança, de retenção da lama, de água com qualidade para a população, enquanto a Renova supervisiona o cumprimento. O trabalho é gigante. Além das medidas emergenciais, Waack pensa nas ações estruturantes. Pretende contratar dois planos diretores – um para o tratamento da água, esgotos e resíduos dos 39 municípios, e outro, de uso da terra. A agenda da restauração florestal é complexa. “A pluviosidade da região mudou nos últimos dez anos. Era Mata Atlântica e está virando semiárido. Vou ter que buscar mudas de Cerrado? Da Caatinga? Estas respostas virão da sociedade.”
Waack reconhece atrasos nas obras e nos 41 programas do acordo. Admite que “vamos errar muito” e reconhece que muitas questões estão em aberto. “São fronteiras do conhecimento”, diz o biólogo. Uma das frentes, por exemplo, é aprender a lidar com os grandes desastres. “A gente sabe que vão ocorrer, com a mudança climática. Isso é governança, e é grade desafio.” A seguir, trechos da entrevista que concedeu na sede do Valor, na semana passada:
Valor: Por que o senhor aceitou o desafio? Se por um lado há enorme potencial, a bronca é gigante.
Roberto Waack: Existe a bronca da sociedade com as empresas relacionadas ao acidente e com a própria mineração. Isso é uma coisa. A outra é o desafio de recuperar tudo. São duas dimensões diferentes. Uma coisa é Samarco, Vale e BHP, e outra é a Fundação Renova, fruto do acordo entre União, Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, algumas prefeituras, Tribunal de Contas. É uma organização independente para cuidar das ações de restauração e recuperação.
Valor: Esta separação é clara?
Waack: Tem que ficar. Acho que a sociedade terá de aprender a superar essa situação incômoda e encarar o processo de recuperação dos danos da ruptura da barragem. Eu também vivi esse dilema. Pensei: “Vou me envolver com algo tão difícil de ser explicado?” Mas não estou me envolvendo com isso e sim com o processo de recuperação do rio.
Valor: Qual a independência que o sr. tem da Vale, Samarco e BHP?
Waack: Olhei muito para isso. A recuperação do rio é pré-definida no acordo, não tem jeito de ter interferência das empresas. Há um componente legal que tem que ser cumprido, com prazos, alocação de recursos e auditorias independentes. O escopo da ação são os 41 programas que terão que ser cumpridos: desde a retirada da lama, a recomposição dos sistemas de contenção, a reconstrução das três vilas, o tratamento de efluentes. E uma série de ações de compensação que não tem a ver com o desastre e estão ligadas à recuperação e restauração do rio Doce.
Valor: Como quais?
Waack: Recuperar nascentes que não têm lama e foram destruídas há muito tempo. Temos que recuperar 500 nos próximos meses. Isso já está andando.
Valor: O senhor não teme que sua imagem seja usada pelas empresas? A sua é uma chancela da sociedade civil no processo.
Waack: Acho que sim, mas temos que fazer. Para mim, o ponto central era a questão da independência. A estrutura de governança me deu segurança. E, sinceramente, acho que existe o compromisso das empresas em restaurar.
Valor: Como é a governança?
Waack: Hiper complexa. Há o Comitê Interfederativo que avalia se o acordo está sendo cumprido. É liderado pelo Ibama, tem representantes de órgãos federais, dos Estados, das 39 prefeituras e do Tribunal de Contas. É assessorado por 10 câmaras técnicas temáticas – cuidam da restauração, dos recursos hídricos, da questão social – e onde não há ninguém das empresas. Dentro da Fundação há o Conselho Curador, onde estão as empresas, e um Conselho Consultivo, que olha a execução dos projetos. As empresas têm interesse que os recursos sejam gastos nas finalidades do acordo, criado para evitar que a montanha de dinheiro seja destinada de forma inadequada.
Valor: Existe o fantasma da judicialização, o fato de o acordo não ser homologado. Qual o risco?
Waack: Isso é central. O fato de não ser homologado não muda em nada a existência do acordo. Não tem jeito de retroceder, é um acordo vinculante. As três empresas decidiram acelerar o encaminhamento de ações para restauração e recuperação do rio sem esperar o fim do processo judicial.
Valor: Se a Samarco não voltar a operar, o acordo continua em pé?
Waack: Continua. É um compromisso das acionistas da Samarco. São as signatárias do acordo.
Valor: O que o senhor viu ao viajar pela região?
Waack: Três tipos de situação. Onde houve a ruptura em Bento Rodrigues, é muito dramático. Doloroso. Vê-se a cidade soterrada, um impacto socioambiental monstruoso. É terra para todo lado e ao mesmo tempo um exército de caminhões, máquinas e gente trabalhando. Mas é uma região ao mesmo tempo favorecida pelas chuvas, com muito verde, pequenos produtores e potencial grande na microeconomia. É o turismo, o queijo que se faz, os pequenos rios que têm que ser recompostos, o artesanato. Ali é um desafio de reparação.
Valor: O que vai acontecer com Bento Rodrigues?
Waack: Discute-se se virará uma área de memória do acontecido. Em paralelo existe o reassentamento de quem morava ali e o debate de como será esta nova Bento. O conceito é que cada casa seja o mais parecida possível com a que a pessoa tinha. Devem ficar prontas no final de 2017, começo de 2018.
Valor: E o cenário perto de Governador Valadares?
Waack: É a terra ocupada por poucos bois, sem árvores, as nascentes secaram, o rio assoreado. Acho uma situação mais desoladora onde, creio, a população perdeu a conexão com o campo. É um desafio de restauração e onde vejo ações que vão levar mais tempo.
Valor: A terceira zona é a da foz?
Waack: Sim. É a do mar e da Mata Atlântica, onde a relação do homem com a natureza é maior. Exige uma ação ligada à pesca, à biodiversidade da costa.
Valor: Por que está demorando tanto para dragar a lama?
Waack: Porque não tem uma solução tecnológica trivial. É muita coisa complicada do ponto de vista de engenharia. Dois dos 41 programas se referem à infraestrutura, de responsabilidade da Samarco. A Fundação tem responsabilidade de garantir que as obras terminem e sejam adequadas.
Valor: Quais os problemas?
Waack: Quando se faz a dragagem, a turbidez da água aumenta de novo, porque há movimento. Como tratar a água? Qual produto pode ser usado? São produtos licenciados? Vai tirar a lama e colocar onde? Tem que ser em área nova e sem valor ambiental porque ali se causará dano. Tem que comprar a fazenda, negociar. Existe um tempo que é maior do que se imaginava. Ali perto de Candonga está a Fazenda Floresta, já comprada e agora em fase de sondagem. Não se pode colocar uma montanha de terra se não se sabe o que há embaixo. São situações mais complexas do que se pensava.
Valor: Mas há prazos e multas.
Waack: É. Mas não tem sentido criar mais situações de risco com o atropelo. Existe um conjunto de ações emergenciais, que estão ocorrendo, mas há um limite físico, de capacidade de operação e soluções tecnológicas que não estão prontas. Tem que fazer bem feito. Não vamos correr riscos.
Valor: As chuvas irão recomeçar e a lama irá se movimentar. O que vocês irão fazer?
Waack: O risco existe. Está sendo endereçado com um programa de ações emergenciais amplo que dependem do nível de chuva na cabeceira e do grau de turbidez. No limite, se distribui água potável de novo. Há várias ações de busca de água em regiões sem carreamento da lama. Estão se fazendo novas adutoras, sistemas de coleta e tratamento mais eficientes.
Valor: Como está a qualidade da água no rio Doce?
Waack: De Candonga para baixo, em vários pontos, o grau de turbidez é similar ao que era antes do acidente, porque o rio Doce tem muito assoreamento. Hoje a situação é de potabilidade da água em toda a região, mas isso pode mudar com a chuva.
Valor: A situação de Candonga preocupa porque 80% dos rejeitos estão parados antes da usina. Garante-se a segurança da barragem?
Waack: As informações de engenharia dizem que sim, mas isso não faz parte do escopo da Fundação. O que vejo é uma mobilização monstruosa para dar garantia. É inconcebível vivenciar outro desastre desta natureza.
Valor: Um estudo diz que 2 milhões de m3 chegarão em Candonga com a chuva e só se pode dragar 1,3 milhão. É enxugar gelo. E o resto?
Waack: Uma série de diques adicionais está sendo construída e ajudará a reter os resíduos em diferentes partes do trajeto. Isso alivia a pressão sobre Candonga. Está mais atrasado porque tem o problema de onde colocar o material. Os atrasos podem ser alguns dias ou metros, mas não significa que não está sendo construído. O conjunto de obras deve ficar pronto no primeiro semestre de 2017.
Valor: Dos 41 programas, o que a Fundação já fez?
Waack: Uma coisa é todo este processo, da Samarco, outro é a Fundação, que tem dois meses. A maior parte das obras de contenção já estão avançadas, os diques, a dragagem. O volume total de resíduos envolvidos é de 55 milhões de m3. Quando Fundão rompeu, uma parte disso ficou lá em cima. A estratégia é não deixar descer e reconstruir todas as barragens. São centenas de caminhões e muitas obras. Mais de 70% está pronto.
Valor: O que acontece de Bento a Barra Longa, a 40 km de Mariana?
Waack: Tem milhões de toneladas espalhadas ao longo de margem de rio. Talvez ali a melhor solução seja não retirar, semear e ver se cresce alguma coisa, se aquele solo pode vir a ser um solo fértil.
Valor: O programa de saúde não anda, nem a componente indígena.
Waack: É verdade. Ainda não sentei com os índios krenak. Na saúde, a fase emergencial, de evitar doenças, já passou. O desafio agora tem a ver com a saúde mental e isso vai levar tempo. Existe um dano moral altíssimo com o desalojamento, as perdas irreparáveis. Esta é outra fronteira de conhecimento. Queremos aprender com quem já viveu experiências do gênero, os terremotos no Chile e no Japão, os tsunami.
Valor: A grande briga no acordo foi sobre saneamento dos municípios. Como isso está?
Waack: Esta é uma situação crítica do rio, independente da ruptura da barragem. A Fundação tem o compromisso de melhorar todo o sistema de tratamento da água e esgoto ao longo do rio. A proposta é fazer um plano diretor, que começamos a contratar. Os R$ 500 milhões se referem a resolver o problema de água, resíduos e esgoto nos 39 municípios.
Valor: As comunidades não estão no conselho da Renova.
Waack: É. Não acho que o maior desafio é a questão da lama. Ela será resolvida, e está, com engenharia. As respostas estruturantes são as soluções da nova economia – a restauração faço com espécies nativas ou exóticas, quanto de cada? A terceira frente é como as decisões são tomadas. Temos que garantir que os indivíduos possam ser ouvidos. É inverter a pirâmide.
Valor: E a restauração vegetal?
Waack: Temos que fazer um plano diretor sobre o uso da terra. São 10 mil hectares de restauração ativa, 30 mil de regeneração natural ao longo do rio todo. É o maior programa de restauração do Brasil e tem recurso assegurado. Sabemos que temos que integrar agricultura com a restauração e a região do Vale tem enorme passivo de mata ciliar, reserva florestal. Mas qual o desenho dos 10 mil hectares? Vamos precisar de vários viveiros e envolver o pequeno produtor. Uma das características da região em Mariana é as pessoas terem quintais com pomar e horta. Por que não fazer parte de um viveiro de mudas nativas? Gera renda, conexão com o processo de restauração, e o mais importante, ação de longo prazo. A restauração só tem sentido se tiver sentido para o dono da terra. Este campo do experimento vale muito. Podemos contribuir para a NDC (a meta de redução de emissões de gases-estufa) brasileira.
Valor: Quais tipos de plantas?
Waack: Outra questão. A pluviosidade da região mudou de 1400 mm para 500 mm nos últimos 10 anos. Era uma região de Mata Atlântica que está virando semiárido. Isso não tem nada ver com a ruptura da barragem, é mudança climática. Em grande parte desta região não tem mais sentido sonhar em recuperar Mata Atlântica, por mais difícil que seja ouvir isso.Qual será o novo modelo? Vou ter que buscar mudas de cerrado? De Caatinga? Vamos errar muito. Essa resposta virá da sociedade.
Valor: Há avanços com a fauna?
Waack: São seis mil gatos e cachorros e gatos em situação de abandono. Foram vacinados, castrados, feito um trabalho de busca dos donos e de adoção. É um dos programas mais bem-sucedidos. Quanto aos animais de produção, tem a ver com o cadastro, saber quantas vacas tinha, recomprar. É uma estrutura de guerra. Houve perdas muito grandes na fauna silvestre, especialmente de peixes. Temos que estudar como recompor.
Valor: Qual o programa em relação a Mariana?
Waack: Estamos estudando programas de geração de renda, com escolas agrícolas, por exemplo, ou inovação no uso dos resíduos da mineração. A Fundação tem que promover algum impacto na mudança de práticas da mineração. É natural que Mariana e Ouro Preto sejam polos de inovação neste campo. O rompimento da barragem disparou um olhar sobre o Vale, sobre a forma como a nossa sociedade lida com o rio e também sobre a própria indústria da mineração.
Valor: Podemos ter esperança?
Waack: Tenho esperança porque as pessoas e as organizações estão conectadas com a ideia de que é preciso fazer algo. O rio Doce tem tudo para se recuperar. Ele vai ser diferente porque o clima mudou, sofreu muito, o curso dele mudou. Acho que o efeito concreto do desastre foi ser um gatilho e provocar uma chamada de atenção e de mobilização da sociedade. Tenho muito cuidado em dizer isso porque não torna o desastre positivo, de jeito nenhum, nunca. O que quero dizer é que o acidente, de alguma forma, reconectou as pessoas à natureza em uma área onde já estavam anestesiadas e há um êxodo rural impressionante.
Valor: A economia do baixo carbono aplica-se aqui?
Waack: É a frase da Christiane Figueres (ex-secretária da convenção do clima da ONU): o sinal está dado, é este o mundo que a economia vai seguir. Na agenda da restauração temos recursos. Vamos envolver o pequeno produtor. Temos que refazer Novo Bento, Paracatu e Gesteira. Vamos fazê-las autônomas, em geração de energia? Estamos estudando isso. Qual material vamos usar nesta reconstrução? Vamos conectar este esforço com a agenda de clima. É caro? Ainda não sei. Vamos analisar e saber.