Uma idéia antiga, mas que sempre volta com ares de novidade, é a da “interiorização do Mercosul”, tendo como suporte a construção da hidrovia Paraná-Paraguai. O projeto original dessa via envolve os cinco países da bacia do rio da Prata -Bolívia, Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina- e prevê a execução de centenas de obras de dragagens, derrocamento, retificação de curvas -aumentando o raio- dos rios Paraná e Paraguai a partir de Cáceres, atravessando 1.300 quilômetros do Pantanal até Nueva Palmira, no Uruguai.
O propósito seria permitir o tráfego de barcaças “24 horas por dia, os 365 dias do ano”. Em 1988 o Ministério dos Transportes chegou a anunciar a aplicação de US$ 400 milhões na construção de um canal de navegação. Estudos demonstraram que as consequências negativas são extensas, apontando, inclusive, a possibilidade de secar algumas áreas do Pantanal, com reflexos sobre importantes atividades econômicas como o turismo e a pecuária.
Os muitos lances da hidrovia como “espinha dorsal do Mercosul”, sua inviabilidade econômica e os impactos no Pantanal são histórias já contadas, inclusive pela Folha. O que há de novidade é que os interessados no empreendimento mudaram suas estratégias e argumentos para diminuir a reação contrária da população.
A primeira dessas mudanças foi não mais apresentar a hidrovia em seu conjunto, com todas as suas intervenções no rio Paraguai, mas por partes. Esse é caso da proposta de construção de um porto na localidade de Morrinhos, 80 quilômetros abaixo de Cáceres, em plena região alagada do Pantanal, pela empresa americana ACBL. Essa obra, se executada, deverá ter em sua contabilidade impactos diretos e indiretos consideráveis. Quem conhece a região sabe que serão necessárias obras associadas, como estradas, as quais deverão abrir caminho entre as águas por meio de aterros para alcançar as margens do rio.
No campo econômico, o que há de novo é a apresentação da possibilidade de a hidrovia contribuir para diminuir a ociosidade da agroindústria argentina. A equação que apresentam é a seguinte: do Estado de Mato Grosso e do Centro-Oeste brasileiro sairia soja para ser esmagada na Argentina e daquele país viriam fertilizantes e produtos lácteos. Contaria a favor dessa idéia o fato de que a cidade de Rosário tem instalações industriais para esmagar 29 milhões de toneladas de soja e o país produz apenas 18 milhões de toneladas. Um dos principais defensores dessa proposta tem sido o governador de Mato Grosso, Dante de Oliveira.
A aposta na hidrovia com esse propósito de solução da ociosidade industrial de outras regiões e países é, na verdade, a continuidade do velho modelo e sua lógica perversa: desenvolver a infra-estrutura de transporte, avançando a agricultura e a pecuária sobre as florestas e o cerrado. Dessa maneira já se consumiram 93% da mata atlântica, 50% do cerrado e cerca de 14% da floresta amazônica.
Na sua esteira ficou a contaminação e o assoreamento dos córregos e rios e a degradação dos solos que muito custarão ao país recuperar. Para ter uma idéia da dimensão desse estrago: recentemente foi lançado um plano federal para recuperação de pastagens, tendo como um dos argumentos centrais o fato de que no cerrado cerca de 40 milhões dos 50 milhões de hectares destinados à atividade pecuária estão degradados. Estudos mostram a possibilidade de quadruplicar a produção de grãos no cerrado sem desmatar novas áreas.
No Pantanal, há que se considerar que milhares de pessoas encontram sua sobrevivência em atividades que dependem diretamente da manutenção de suas qualidades ambientais. Se forem feitas modificações no rio, construídos portos e permitido o tráfego intenso de barcaças, milhares de empregos diretos e indiretos, gerados pelo segmentos do turismo de pesca e o ecoturismo, serão sacrificados sem qualquer possibilidade de compensação. Se porventura a soja transportada pela hidrovia viesse a gerar novos postos de trabalho, esses estariam destinados a outras regiões agrícolas do Brasil da Bolívia e do Paraguai, e não ao Pantanal.
*Alcides Faria é biólogo e Diretor Executivo da Ecoa. O artigo foi originalmente publicado na Folha de São Paulo no dia 3 de julho de 2000.